sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Fernando Abrucio* - Pactuação é melhor que polarização

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Conselho da Federação pode ser canal para experimentar uma forma de governar que saia tanto do belicismo bolsonarista como dos conchavos patrimonialistas

A palavra federal deriva do latim foedus, que significa pacto. Foi esse sentido que guiou a criação, em maior ou menor medida, de boa parte das federações que nasceram como uma forma de distribuir o poder político territorial, mas também de salvaguardar a diversidade sociocultural dessas nações. O Brasil republicano optou pelo federalismo, mas na maior parte do tempo não conseguiu transformar a pactuação no estilo predominante de se governar o país. A reunião entre os governadores e o presidente Lula gerou a proposta de se criar um Conselho da Federação, instituição que pode incentivar e fortalecer uma lógica mais pactual de governança.

Não se pode confundir a ideia de pactuação com conciliação, que muitas vezes imperou na história brasileira. Conciliar, aqui, significou evitar o conflito e, geralmente, a cooptação de parte dos parceiros por elites que concentravam o poder. Um pacto democrático, ao contrário, supõe alianças que não tirem os direitos e identidades dos pactuantes. Esse é o sentido almejado pelo federalismo: criar uma nação que depende da interdependência das partes territoriais, mas que seja capaz de garantir a diversidade e a autonomia dos entes federativos.

Essa discussão é estratégica para o sucesso do governo Lula e, muito mais importante, para a reconstrução do Brasil, após a tragédia do bolsonarismo. A centralidade dessa questão se deve a dois fatores. Um é a força da polarização e da fragmentação no sistema político atual. E o outro tem a ver com o fato de o federalismo ser um dos principais eixos organizadores do Estado brasileiro.

Será muito difícil construir um futuro melhor se o Brasil não sair da dupla lógica que impera atualmente. Ou o jogo político é moldado por um comportamento e um discurso polarizadores, de um modo que não abre nenhum espaço para a negociação e o compromisso entre os divergentes, chegando-se ao ponto de a aniquilação do outro ser o objetivo de certos atores, como crê o bolsonarismo; ou então há o predomínio da fragmentação de interesses políticos e econômicos, cada qual buscando privilégios e um quinhão do orçamento e da administração pública, sem se preocupar com o efeito coletivo dessa barganha centrífuga e particularista.

Reconstruir a governança do país é fugir destas duas lógicas. Claro que o modelo polarizador é o mais perverso, visto que coloca em questão a democracia e o sentido de pertencimento dos diferentes a uma mesma nação. É preciso vencer essa polarização nutrida pelo ódio que o bolsonarismo espalhou entre políticos e, pior, para parcela da população brasileira. Só que também é fundamental encontrar uma outra forma de construir consensos e compromissos políticos para garantir que os pactos, discutidos às claras e respeitosos com todas as partes, possam guiar o sistema político.

O Conselho da Federação pode ser um canal especial para experimentar uma forma mais pactuada de governar, saindo tanto do belicismo bolsonarista como dos conchavos patrimonialistas. Mais do que isso, pode também ter um papel mais específico e extremamente estratégico: ajudar na resolução dos problemas brasileiros que dependem de maior coordenação e cooperação entre a União, os estados e os municípios. Houve muitas melhorias no federalismo brasileiro a partir da Constituição de 1988, gerando estruturas bem-sucedidas na criação de um amplo Estado de Bem-Estar Social, como é o caso da experiência do SUS. É verdade que ainda havia fragilidades e dificuldades nas relações intergovernamentais que impediam maiores avanços, mas o caminho em prol da cooperação parecia ser o mais adequado.

Tal trajetória positiva foi destruída pelo governo Bolsonaro. Ele vendeu a ilusão do slogan Mais Brasil, Menos Brasília e entregou, de fato, o abandono e o confronto com os estados e municípios, aumentando a desigualdade territorial no país sem deixar de se guiar por uma sanha centralizadora típica de uma autocracia unitária. Destruir a lógica pactuada do federalismo foi um maiores desastres produzidos pelo bolsonarismo, pois isso teve efeitos múltiplos na qualidade de vida do brasileiro e no funcionamento da democracia.

Aumentar o sentido pactuado do federalismo é uma das soluções para a crise atual. Neste sentido, é preciso pensar a estrutura federativa como a coluna vertebral do Estado brasileiro, cuja resolução não está no embate centralização versus descentralização. A chave certa para aprimorar a Federação está na ampliação da coordenação e cooperação entre os entes federativos, garantindo tanto o sentido nacional do processo como a autonomia e a diversidade dos governos subnacionais.

Alguns exemplos estratégicos revelam como a Federação é uma peça-chave para a reconstrução país. A educação piorou muito nos últimos quatro anos por conta do casamento de um desastre natural - a covid-19 - com um desastre político, o bolsonarismo. Para reverter esse quadro e garantir o desenvolvimento educacional das crianças e jovens brasileiros, será fundamental fazer três coisas. A primeira é criar o Sistema Nacional de Educação para que os entes federativos discutam e escolham as prioridades nas quais atuarão de forma cooperada nos próximos anos. A segunda é construir formas colaborativas de fortalecimento das capacidades estatais locais num país muito desigual, por meio de ações do MEC para o território nacional e dos governos estaduais junto aos seus municípios, estabelecendo as condições para a implementação de projetos estruturantes, como a escola de tempo integral, a reforma curricular da educação básica e o aprimoramento das carreiras do magistério. Por fim, deve-se estimular o debate e a disseminação de boas práticas entre estados, municipalidades e arranjos intermunicipais.

Constata-se, assim, que o fortalecimento das formas pactuantes presentes no federalismo é a maior força motriz em prol da melhoria da educação brasileira. O mesmo ocorre em outros temas, como a política socioambiental na região amazônica, uma vez que o governo federal precisará dos estados e municípios para garantir a sustentabilidade e um novo padrão de desenvolvimento - e aqui a reconstrução do Conselho da Amazônia será fundamental. Linha similar de raciocínio pode ser usada em todas as políticas sociais, muito dependentes do federalismo cooperativo para seu sucesso, e para garantir a própria democracia. Os três Poderes federais foram estratégicos para evitar o golpe bolsonarista, mas a consolidação do regime democrático precisará do apoio local - dos cidadãos e dos políticos. Ressalte-se que governadores e deputados estaduais, bem como prefeitos e vereadores, são duplas essenciais para garantir o Estado de Direito, numa trajetória que abarca os rincões e as áreas metropolitanas antes de chegar a Brasília.

Apostar no Conselho da Federação como um articulador estratégico de um amplo modelo pactuado envolve levar em conta cinco fatores. Primeiro, há outras estruturas federativas prévias que não podem ser substituídas pela nova instituição, como os sistemas nacionais de políticas públicas e os consórcios públicos, de modo que será preciso aprender com as experiências já existentes e articulá-las com o Conselho da Federação. Uma única estrutura não é adequada para lidar com o mosaico de interesses, direitos e desafios ligados ao Estado brasileiro.

Em segundo lugar, o Conselho da Federação precisa efetivamente ser estruturado por uma lógica pactual. Assim, o correto é ter a participação plena de todos os níveis de governo nesta concertação federativa, garantindo salvaguardas aos governos subnacionais, que precisam ter mecanismos para defender seus direitos. Qualquer centralização indevida ou pulverização decisória dará errado. O modelo de pacto tem mais chances de respeitar as peculiaridades locais e disseminar boas experiências dos governos estaduais e municipais.

Deve ser levada em consideração, em terceiro lugar, a experiência de outros países federativos, não para copiá-los, mas para construir um mapa dos caminhos virtuosos e dos maiores desafios e limites desse modelo institucional. Uma perspectiva internacional não reduz a necessidade de ouvir os atores estratégicos locais. E aqui, como quarto elemento, vale não só incluir a experiência e as demandas dos entes federativos, como ainda é essencial incluir o Congresso Nacional nesta empreitada. De alguma maneira, seria muito interessante a participação institucional do Legislativo no Conselho da Federação, mesmo que com um status diferenciado dos estados e municípios. Seria uma forma de começar a mudar a lógica do orçamento fragmentado e clientelista em direção a uma outra forma de diálogo e participação legítima dos congressistas na distribuição de recursos federais.

Um último desafio deve ser colocado: é essencial que o Conselho da Federação tenha empoderamento político e um modelo de gestão que oriente a pactuação por meio de metas, indicadores, estímulos ao desempenho e formas de apoio aos governos subnacionais que tiverem mais problemas. O pacto só se consolidará caso todos os pactuantes, mesmo que em condições assimétricas, se sintam participantes e beneficiados pela cooperação. Dada a amplitude de questões que poderão ser atingidas pela decisões do Conselho da Federação, seu sucesso pode ser um caminho para a reconstrução do país e de nossa democracia.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas

Um comentário:

Anônimo disse...

Excelente análise e proposta de uma nação federativa.
É um alívio saber que o país pode dar certo.
Grato ao articulista e ao blog que divulgam análise de qualidade