sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Vera Magalhães - O golpe chinelão

O Globo

Não será possível conter o extremismo se Bolsonaro seguir protegido de prestar contas à Justiça pelo que urdiu

Em pouco mais de um mês, o Brasil assistiu a dois ataques terroristas, à tentativa de um terceiro, à descoberta de uma minuta de golpe de Estado na casa de um ex-ministro da Justiça e, agora, à confissão de um senador de que foi levado ao encontro do então presidente da República, por um deputado federal, e de que discutiram a três uma conspiração para prender um ministro da Suprema Corte e anular o resultado das eleições. E há quem, diante de um conjunto de acontecimentos dessa gravidade inimaginável, tente encontrar atenuantes. Elas não existem.

É preciso que em algum momento se dê um “basta” à permanente mania de colocar Jair Bolsonaro como um personagem coadjuvante ao golpismo bolsonarista. É dele que partem todas as investidas contra as instituições democráticas desde que foi eleito.

Sem ele, não existiriam Daniel Silveira, indultado depois de conspirar contra a democracia; Carla Zambelli ameaçando atirar em plena luz do dia; Roberto Jefferson recebendo agentes da Polícia Federal a tiros de fuzil; os generais Augusto Heleno e Braga Netto endossando discurso que deslegitima o processo eleitoral; nem a turba que invadiu os prédios dos Três Poderes em 8 de janeiro.

Como alguém espera que cole a versão que o senador Marcos Do Val tentou vender, de um Bolsonaro de calção e chinelos que ouve dentro do Palácio da Alvorada placidamente um plano aloprado para grampear um ministro do STF e nada faz? Isso horas depois de dizer que o próprio Bolsonaro havia tentado “coagi-lo” a “dar um golpe de Estado junto com ele”.

É nítido o pânico do clã Bolsonaro de que, finalmente, não seja mais possível ao patriarca se esquivar das responsabilidades pelo legado de destruição ao longo de quatro anos. Conseguiu se safar na pandemia, mesmo diante das inúmeras vezes em que abertamente desdenhou a gravidade do vírus, boicotou medidas sanitárias, atrasou a compra de vacinas, comprou medicamentos sabidamente ineficazes, ouviu denúncias de corrupção na compra de vacina por atravessadores — e nada fez.

Não foi responsabilizado pelas muitas vezes em que, do alto de palanques, ameaçou ministros do Supremo, disse que não cumpriria decisões judiciais, usou palácios para divulgar fake news contra o sistema de votação e convocou aliados para atos antidemocráticos.

Por ora, está se esquivando de responder pelas ações deliberadas de seu governo para permitir a entrada de garimpeiros em terras ianomâmis e retirar a fiscalização da região, o que resultou numa tragédia humanitária.

Está cada dia mais claro que a fuga de Bolsonaro para a Flórida se deve a uma tentativa de se desvincular não de um, nem dois, mas de uma sequência de atentados à democracia desde sua derrota para Lula nas urnas. Acontece que, no episódio Silveira-Do Val, ele deixou digitais que não serão apagadas.

Do envio de carro descaracterizado entrando no Alvorada sem registro a, no mínimo, uma clara prevaricação ao ouvir alguém a quem concedeu indulto tramando na sua frente cometer novos crimes contra o Estado Democrático de Direito sem nada fazer.

Não será possível conter o extremismo se Bolsonaro seguir protegido de prestar contas à Justiça pelo que urdiu. Quem seria o maior beneficiado pela eventual prisão de Moraes e anulação das eleições? O ex-deputado, a quem o presidente amigo já havia livrado da prisão? Ou o próprio Bolsonaro?

O duro discurso de Rosa Weber na abertura do ano judiciário deu conta da gravidade da quadra histórica que quase levou à supressão da democracia. Algo dessa magnitude não se dá por geração espontânea. Parte de um projeto bem engendrado naquilo que tem de aparentemente tosco e desconexo. O senador capixaba forneceu o fio da meada que precisa ser puxado pelas instituições para punir Bolsonaro e acabar com as ameaças que ainda pairam contra a ordem constitucional brasileira.

 

6 comentários:

Anônimo disse...

Excelente texto

Anônimo disse...

"Parte de um projeto bem engendrado naquilo que tem de aparentemente tosco e desconexo."

Rá, boa piada essa.
Aparentemente tosco e desconexo o projeto do bozo.
Não percebi isso.

Não percebi q o projeto NÃO deu certo porque excessivamente BEM engendrado.

Anônimo disse...

Marcos 'Tabajara' do Val...
Valgabundo da República

Fernando Carvalho disse...

O nazifascismo bundalelê tem esses dois lados: um lado normal que é o lado assassino. Lembro o tesoureiro do PT que comemorava aniversário e teve sua festa e vida acabada com os tiros de um patriota a dizer "Aqui é Bolsonaro!". A menina Yanomami estuprada e morta por um bolsonarista da esquina. E um lado assassino-comédia que é quando não se leva à sério quando o boçal diz que petistas tem que ser fuzilados, quando latifundiários são armados para "caçar javalis" quando o objetivo é militante do MST e índios. O fascismo trumpo-bolsonarista precisa de um mundo onde realidade e ficção se confundam e as pessoas chamem urubu de meu louro e deem bom dia a cavalo.

ADEMAR AMANCIO disse...

Fernando Carvalho arrasando nos comentários.

Fernando Carvalho disse...

Obrigado, ADEMAR AMANCIO !!!