O Estado de S. Paulo
Só masoquistas têm paciência para se ocupar do que dizem e fazem os 594 cavalheiros que detêm mandatos eletivos no Congresso Nacional
A genialidade do filósofo Thomas Hobbes
(Leviatã, 1651) pode ser aquilatada pelo fato de ele ter claramente antecipado
um fenômeno que ainda se encontrava distante no tempo: o surgimento da opinião
pública.
“Pública”, ele escreveu, é uma manifestação que uma coletividade (Commonwealth) proclama “como uma pessoa”.
Nesse sentido, a comunicação entre indivíduos, mesmo volumosa, não merece tal denominação. Desdobrando a intuição de Hobbes e transpondo-a para a linguagem moderna, o historiador Hans Speier (American Journal of Sociology, abril de 1950) conferiu-lhe uma forma impecável: “Entendemos por opinião pública opiniões referentes a questões de interesse para a nação, expressas de modo livre por indivíduos externos ao governo, que demandam o direito de que suas opiniões influenciem ou determinem as ações, a burocracia ou a estrutura de seu governo”. Ou seja, a expressão opinião pública diz respeito a comunicações dos cidadãos a seus governos, e só muito secundariamente comunicação entre os cidadãos, por importantes que sejam ações coletivas autonomamente encetadas por eles.
Lembremos que tais reflexões precederam o
Iluminismo, tendência de ideias que predominou no século XVIII. Precedeu por
larga margem o aparecimento de jornais e revistas. No século XVII, na Inglaterra
como na França (mas não na Alemanha), o modo por excelência pelo qual a opinião
pública ganhava seus primeiros contornos eram encontros em cafés, restaurantes,
teatros e similares. Estima-se que 2 mil locais desse tipo funcionavam
regularmente em Londres na época a que nos estamos referindo. O cerne do
conceito de opinião era, pois, que os governos não poderiam conduzir suas ações
de forma secreta. Nessa linha de pensamento, Jeremy Bentham exigiu plena
publicidade para todos os atos de governo. Com o correr do tempo, essa noção,
defendida por todo o Iluminismo, com evidente destaque para Jean-Jacques
Rousseau, estendeu-se à própria área das relações internacionais; a Liga das
Nações deu-lhe seu apoio, com o objetivo de impedir a inserção de cláusulas
secretas em negociações entre países.
Do exposto, pode-se diretamente inferir que
a importância do conceito de opinião pública ganharia forte impulso em razão de
dois fatores: sua extensão ao campo das finanças públicas e a formação de uma
classe média robusta. O primeiro desses dois elementos surgiu como pressão
contra empréstimos públicos, mas Jacques Necker (pai de Madame de Staël e três
vezes ministro das Finanças de Luís XVI) conferiu-lhe consistência ao sublinhar
que o apoio da opinião pública seria um forte aliado em seu objetivo de
conduzir sua política econômica com eficiência e sobriedade. Defendeu que a
política fiscal haveria de ser executada com “franqueza e publicidade”. Sua
grande contribuição, além do reforço que a opinião pública traria à sua gestão,
foi a exigência de que os relatórios fiscais fossem publicados, a fim de que os
méritos e as falhas do governo pudessem ser apropriadamente avaliados pela
nação.
Escusado dizer que o impulso dado à opinião
pública por homens de Estado como Necker foi complementado pelo crescente poder
econômico da classe média, a partir do fim do século XVII na Inglaterra e do
século XVIII na França. No que toca à classe média, é mister lembrar o
vertiginoso aumento da escolaridade que teve lugar desde a reforma calvinista,
exigido pela obrigação de ler a Bíblia sem a interferência do clero. Assim, a
população rapidamente se escolarizou na maior parte da Europa.
Que dizer, porém, de um país no qual o
Congresso regride da publicidade das contas fiscais para o “orçamento secreto”,
cuja classe média é sabidamente anêmica, onde os próprios cidadãos duvidam de
si mesmos como unidades daquele “todo” que Thomas Hobbes considerou essencial à
noção de opinião pública, e, não menos importante, onde homens públicos do calibre
de um Necker surgem só uma ou duas vezes a cada século?
Claro, a indagação acima é retórica. No
tempo de Hobbes, isso aqui era um mataréu. Releguemos, pois, o “orçamento
secreto” ao campo em que ele se ajusta melhor, o da pilhéria. Sérias são as
três outras questões: a exiguidade da classe média, fruto da tirania e da
escravidão do período colonial. Mesmo na República, quando era imperativo
proporcionar-lhe ensino técnico e bases econômicas para médias e pequenas
empresas, o que sucessivos governos lhe deram foi o Estado cartorial, ou seja,
o garrote de um emaranhado burocrático virtualmente irremovível. Não estranha,
pois, que nos situemos na antípoda do calvinismo.
No mínimo 30% dos brasileiros são
analfabetos e carecem da mais elementar autoestima. Não abrem a boca para
tratar de assuntos “relevantes para a nação” (na expressão de Speier) e,
sejamos francos, mesmo no plano privado, só masoquistas têm paciência para se
ocupar do que dizem e fazem os 594 cavalheiros que detêm mandatos eletivos no
Congresso Nacional. Lá, quem tiver ânimo para procurar um Necker bem fará em,
primeiro, pedir emprestada a lâmpada de Diógenes.
*SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS
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