segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Custo de tribunais impõe adequação à realidade fiscal

O Globo

Com gasto estimado em 1,6% do PIB, Judiciário e MPs brasileiros compõem a Justiça mais cara entre 53 países

Publicado no final do mês passado, o relatório do Tesouro Nacional classificando as despesas do governo confirma o que se sabe há tempos: o Brasil tem uma das Justiças mais caras do mundo, provavelmente a mais cara. Os tribunais e Ministérios Públicos (MPs) estaduais e federal custaram à sociedade 1,6% do PIB em 2022. Foi a proporção mais alta numa amostra de 53 países. O gasto brasileiro equivale ao quádruplo da média. Em termos absolutos, a Justiça custou perto de R$ 160 bilhões.

Para dar uma ideia da ordem de grandeza da cifra, basta lembrar que a despesa com todas as polícias foi de R$ 114 bilhões. Com serviços de proteção contra incêndios, R$ 8,8 bilhões. Com penitenciárias, R$ 26,3 bilhões. Em pesquisa e desenvolvimento sobre ordem pública e segurança, mirrados R$ 44 milhões. Quando são consideradas as despesas com “ordem pública e segurança” — incluindo a Justiça —, a despesa alcança R$ 311 bilhões, ou 3% do PIB, mais que na América Latina (2,6%) e nas economias emergentes (2,3%).

Associações de classe contestaram a metodologia usada pelo Tesouro para cotejar o gasto dos diversos países. Mas é a mesma adotada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para comparar gastos públicos. Ao mesmo tempo, tentaram justificar a despesa afirmando que o Judiciário brasileiro custa mais caro porque trabalha mais, tamanha a quantidade de temas que, pela Constituição, suscitam recurso aos tribunais. Pode até ser verdade. Há, porém, algo além do excesso de processos que distingue a Justiça brasileira.

Judiciário e MPs gastam sobretudo com salários, e a quantidade de benesses que usufruem juízes e procuradores brasileiros — como férias de dois meses, auxílios e verbas indenizatórias de todo tipo — é única no mundo. Tais “penduricalhos” inflam a remuneração, com frequência para além do teto constitucional, colocando as duas categorias da elite do funcionalismo no centésimo de maior renda no Brasil.

Não se trata de questionar a necessidade de remunerar de modo justo serviço tão essencial e relevante quanto a Justiça. Mas é preciso ter senso de medida. Apenas um exemplo de desconexão da realidade: em 2017, ficou decidido que as licenças-prêmio de 90 dias a que procuradores têm direito — em si um privilégio que deveria ser extinto — poderiam ser pagas em dinheiro. Só esse benefício custou quase meio bilhão de reais aos cofres públicos entre 2019 e 2022 . No ano passado, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu que juízes também poderiam reivindicar as mesmas benesses dos procuradores. Para não falar nas tentativas de restaurar promoções automáticas a cada cinco anos (quinquênio) e outras iniciativas do tipo.

Estudioso do assunto, o cientista político Luciano Da Ros, da Unicamp e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), creditou em análise de 2015 o “elevado grau” de independência — inclusive orçamentária — do Judiciário e dos MPs no Brasil ao esforço da sociedade na transição para a democracia. É verdade. Mas isso não justifica a profusão de benesses. Juízes e procuradores deveriam entender a realidade de um país com alta dívida pública e social, em que o Estado precisa promover o equilíbrio fiscal para o bem de todos. Os números do Tesouro revelam a urgência dessa discussão.

Racismo em estádios de futebol exige punição mais dura aos responsáveis

O Globo

Chaga não será debelada enquanto clubes, federações e cartolas forem lenientes com atitudes repugnantes

As manifestações repugnantes de racismo em estádios do mundo inteiro são episódios cujo absurdo todos reconhecem, mas que, a despeito da indignação, dos pronunciamentos oficiais protocolares, das inúmeras campanhas de conscientização e de punições ainda tímidas para os agressores, continuam acontecendo. Infelizmente, a julgar pela sucessão de casos em diferentes países, nada sugere que desaparecerão.

No dia 20 de janeiro, durante partida entre Udinese e Milan pelo Campeonato Italiano, em Udine, o jogo teve de ser interrompido no primeiro tempo quando o goleiro Mike Maignan, do Milan, foi alvo de ofensas racistas de torcedores da Udinese. Os jogadores das duas equipes saíram de campo, mas a disputa foi retomada depois de cinco minutos. Os ataques não cessaram. Maignan passou a ser vaiado cada vez que tocava na bola. “Não podemos jogar assim, não é a primeira vez”, disse.

Em reação às cenas lamentáveis, o presidente da Federação Internacional de Futebol (Fifa), Gianni Infantino, chamou o episódio de “abominável” e defendeu a derrota automática para o time cujos torcedores cometerem atos de racismo, além da interdição de estádios e da abertura de ações criminais contra os acusados. “Precisamos que todas as partes interessadas relevantes tomem medidas, começando pela educação nas escolas, para que as gerações futuras entendam que isso não faz parte do futebol ou da sociedade”, afirmou em comunicado oficial.

Os protocolos adotados hoje pela Fifa, que preveem paralisação da partida e até abandono do jogo, não têm sido suficientes para coibir essa prática nefasta que se espalha por estádios do mundo inteiro. No mesmo dia em que torcedores da Udinese ofenderam Maignan, episódio semelhante de intolerância aconteceu em Sheffield, durante uma partida da segunda divisão do Campeonato Inglês.

Uma das dificuldades para combater o racismo no futebol é a falta de empenho de clubes, federações e autoridades esportivas para punir os responsáveis. Recentemente, um juiz de Pamplona, na Espanha, arquivou uma denúncia por insultos racistas sofridos pelo brasileiro Vini Jr., do Real Madrid, alvo constante de agressão. Os ataques haviam sido denunciados à Justiça pela Liga Espanhola (La Liga) depois de partida contra o Osasuna há um ano. O magistrado admitiu que os fatos podem constituir crime, mas alegou não ser possível determinar a identidade dos autores. Ora, em qualquer lugar do mundo estádios são repletos de câmeras que flagram episódios desse tipo.

Infantino tem razão em propor medidas mais enérgicas para varrer esse absurdo que envergonha o futebol. Mas não bastará mudar as regras. Será preciso mais. No Brasil, desde 2023 o regulamento da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) prevê perda de pontos para times cujos torcedores sejam acusados de racismo. Na prática, a punição não tem sido aplicada. Enquanto clubes, federações e cartolas forem lenientes com criminosos travestidos de torcedores, o racismo dará as caras nas arquibancadas.

STF precisa de decisão colegiada sobre penalidades da Lava-Jato

Valor Econômico

Se as empresas e empresários sofreram coação ilegal, nada devem à União nem deveriam pagar um tostão

O ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli, monocraticamente, abriu caminho para o fim das punições dos principais acusados nas investigações do maior escândalo de corrupção da história republicana, iniciadas pela Operação Lava Jato. Em setembro de 2023, Toffoli anulou as provas que deram base aos acordos de leniência firmados em 2016 pela Odebrecht, hoje Novonor - além de Marcelo e Emilio Odebrecht, 77 executivos atestaram em vídeos onde muitos aparecem sorrindo uma longa lista de malfeitos que resultaram em R$ 8,5 bilhões em multas. No fim do ano passado, Toffoli suspendeu o pagamento de multa de R$ 10,3 bilhões da J&F, dos irmãos Joesley e Wesley Batista, e agora fez o mesmo com o pagamento devido pela Odebrecht. O STF não se pronunciou colegiadamente sobre nenhuma dessas decisões. Dada a importância da decisão, Toffoli deveria levar o assunto ao plenário, evitando até mesmo a segunda turma.

O Supremo Tribunal Federal precisa definir posição única sobre o que fazer com a herança das condenações da Lava-Jato e operações derivadas. Decisões monocráticas estão beneficiando a principal construtora envolvida nos escândalos e os irmãos Batista - Joesley procurou gravar declarações que comprometessem um presidente da República, Michel Temer, em maio de 2017. A mudança do centro de gravidade das decisões do Supremo ocorreu após o juiz Sergio Moro, da 13ª Vara de Justiça Federal do Paraná, ser julgado parcial e os processos contra Lula, terem sido anulados porque Curitiba foi considerada incompetente para julgá-lo.

A base para a mudança de opinião, que liberou da prisão Sergio Cabral (com penas somadas de mais de 425 anos), Eduardo Cunha e outros, foi a invasão feita por de hackers nos celulares dos procuradores da Lava-Jato, que apontou promiscuidade entre o julgador, Moro, e os acusadores.

A gravação, obtida na Operação Spoofing, é ilegal e um de seus autores, Walter Delgatti, foi condenado a 20 anos de prisão. No entanto, Toffoli e outros ministros do Supremo Tribunal Federal a estão utilizando de forma oblíqua para anular condenações e multas. Um dos problemas é que as decisões de Toffoli podem ser questionadas em sua solidez. A outra, grave, é que se a Odebrecht e outros réus foram considerados vítimas de perseguição judicial ilegal, mesmo depois de terem confessado, todos eles terão direito não apenas a deixar de pagar as multas, mas a reaver tudo que já entregaram como compensação pelos crimes confessados. Poderão, no futuro, exigir compensações por danos morais e financeiros da União.

No caso da Odebrecht, Toffoli disse que “a declaração de vontade no acordo de leniência deve ser produto de uma escolha com liberdade” e que há indícios razoáveis para colocar em dúvida que este tenha sido o caso. O ministro usou argumento equivocado em setembro para anular as provas que ensejaram a delação, alegando que sua obtenção não havia, por exemplo, sido objeto de um acordo de colaboração com autoridades estrangeiras. Entretanto, foi a própria direção da empresa quem permitiu o acesso e a abertura do software que continha as planilhas que listavam mais de 400 políticos de todos os níveis que receberam dinheiro da empreiteira.

No caso da J&F, não há sequer rastros de Moro na decisão. A Operação Greenfield envolveu os irmãos nas falcatruas de desvios de recursos em fundos de pensão das estatais, em processo sob cuidados do juiz Vallisney de Oliveira, da 10ª Vara da Justiça Federal do Distrito Federal. Entre os pedidos da defesa havia um, negado, que levaria à anulação da venda da Eldorado Celulose, de sua propriedade, à Paper Excellence, causa na qual está envolvida Roberta Rangel, esposa de Toffoli.

Há defensores da ex-Odebrecht. Para o presidente Lula, todo o escândalo do petrolão não passou de uma conspiração americana para prejudicar a Petrobras e impedir que as construtoras brasileiras obtivessem obras no exterior. O ministro da Casa Civil, Rui Costa, empenhou-se para que as empreiteiras atingidas pela Lava-Jato pudessem pagar suas multas, acertadas nos acordos de leniência, concluindo elas próprias as obras superfaturadas que não terminaram. A Odebrecht, por seu lado, alegou coação nos acordos de leniência, mas não pediu sua anulação. Esses acordos lhe garantiram benefícios, como a de voltar a participar em licitações de obras públicas e contratar empréstimos com banco estatais.

O Supremo Tribunal Federal pode ter já feito um acerto de contas com a Lava-Jato, sem resolver um dilema igualmente bilionário. Se as empresas e empresários sofreram coação ilegal, nada devem à União nem deveriam pagar um tostão porque as provas que originaram o acordo foram anuladas por decisão de Toffoli. Em 2022, o Ministério Público contabilizou 43 acordos de leniência firmados, envolvendo R$ 24,5 bilhões. O resgate das construtoras poderia colocar em risco não só a visão que os cidadãos têm do Supremo Tribunal Federal, mas até mesmo o ajuste fiscal.

Barca furada

Folha de S. Paulo

Plano para indústria naval não tem justificativa clara e está sujeito a vícios

Tudo indica que o governo ampliará aportes e subsídios para a indústria naval, uma década após o fracasso da última tentativa, que resultou em corrupção e prejuízos bilionários. Segundo o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, o país precisa voltar a fazer navios, pois já os fez antes e tem tecnologia.

Não poderia faltar o rótulo ambiental na iniciativa, que permitiria a redução das emissões de carbono da frota —com a construção do "navio do futuro". Para tanto, o programa BNDES Azul reduzirá os juros para financiamentos de novas embarcações, modernização de equipamentos e projetos de infraestrutura associados.

A meta do banco de fomento é elevar os aportes para R$ 2 bilhões neste ano, o dobro de 2023, canalizados pelo Fundo da Marinha Mercante, voltado à indústria de fabricação e recuperação naval. A carteira de projetos, implementados ou em andamento, da dita economia azul chegaria a R$ 22 bilhões.

O plano faz parte da nova política industrial, anunciada recentemente, que prevê desembolsos de R$ 300 bilhões até 2026, dos quais R$ 250 bilhões virão do BNDES.

Mercadante apontou a necessidade de aprendizado com os erros do passado e a cobrança por bons projetos. No entanto o histórico de gestões petistas não autoriza otimismo quanto à execução.

O país tem graves problemas de competitividade e escala numa indústria sofisticada e de capital intensivo, que impõem obstáculos até aqui nunca superados. Não há justificativa clara para concentrar recursos escassos nesse setor.

Tampouco é evidente que haja mecanismos de governança adequados para garantir disciplina e viabilizar projetos rentáveis, seja na indústria naval ou na política industrial de modo geral.

A reativação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial, órgão que deverá centralizar decisões, parece padecer de antigos vícios. Sua composição tripartite, com representantes do governo, associações empresariais e centrais sindicais, na melhor tradição varguista, é altamente suscetível à captura por interesses privados.

Qualquer política pública, industrial inclusa, implica experimentação e riscos. Por isso também demanda, além da necessária coordenação com o setor privado, a capacidade de avaliação independente e, sobretudo, a habilidade de priorizar e abortar rapidamente, a partir de critérios técnicos, iniciativas mal sucedidas.

Mas não é isso o que se depreende até aqui nos planos de Lula, que não disfarçam a velha crença de que tudo é possível desde que o governo injete dinheiro.
O risco é que o intervencionismo desenfreado novamente deixe o contribuinte a ver navios.

Passos de Milei

Folha de S. Paulo

Câmara aprova pacote desidratado, mas governo não mostra clareza no curto prazo

Graças ao apoio da oposição de centro-direita, a Câmara da Argentina aprovou uma versão desidratada do megapacote proposto pelo governo de Javier Milei. A votação inicial se referiu ao projeto como um todo e ainda terá de ser confirmada ponto a ponto, além de ratificada pelo Senado.

A maioria obtida, de 144 a 109, só foi possível após ampla negociação que reduziu o alcance das medidas. Restaram 386 dos 664 artigos da versão original maximalista, que buscava alterar no atacado as instituições econômicas e políticas do país, além de conceder poderes especiais ao presidente.

Na peça aprovada foram amputados itens importantes, como a permissão para alterar regras de reajuste das aposentadorias, que abriria espaço para correções por decreto abaixo da inflação, a alta de impostos sobre exportações e os capítulos que modificavam o imposto de renda e o sistema eleitoral.

Também foi reduzido o espaço para privatizações, com a retirada de grandes empresas como a petroleira YPF. Parte da oposição disposta a negociar também pretende que cada venda de estatal seja autorizada pelo Congresso.

Quanto aos poderes especiais do presidente, foram descartadas as concessões relativas às áreas social e de defesa. O período também foi reduzido de dois anos para um.

A vitória parcial do governo não deixa de ser relevante, mas decorre da boa vontade das forças políticas e de parte da população cansada da crise quase permanente.

Milei ainda oscila entre a disposição a negociar das últimas semanas e arroubos populistas contra o que chama de casta política.

O mais preocupante é que não se consegue distinguir um plano para lidar com a crise mais imediata, que não dá sinais de arrefecimento. Mudanças de longo prazo são necessárias, mas cumpre lidar com a emergência cotidiana.

Com a eliminação de controles de preços e a desvalorização do câmbio oficial, a inflação acelerou para mais de 200% ao ano, gerando dramático impacto social.

Não deve haver melhora tão cedo, uma vez que parcela expressiva do inevitável ajuste fiscal dependerá da combinação indigesta de mais impostos com contenção de aposentadorias e salários do funcionalismo, além da prometida redução gradual dos subsídios nas contas de luz e gás.
A falta da clareza mostra um governo ainda tomando pé da situação, que não dá margem a erros.

A fumaça do mau direito

O Estado de S. Paulo

A incúria ou a má-fé de agentes públicos pode converter a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito em seu oposto: um instrumento de agressão à democracia e violação de direitos

No dia 10 de janeiro, 25 pessoas foram detidas em uma manifestação na capital paulista contra o aumento das tarifas de trem e metrô. Alegando o porte de objetos com potencial ofensivo, como facas, porretes ou garrafas de álcool e gasolina, a polícia indiciou 7 delas pelo crime de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito. A flagrante ausência de base jurídica para esses indiciamentos alerta para os riscos de emprego abusivo da Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito.

As liberdades de expressão e de reunião são direitos fundamentais, mas, obviamente, não absolutos. Há limites intuídos pelo senso comum e consagrados em lei a protestos de rua, seja na forma (como obstruções ao direito de ir e vir, perturbação da ordem pública, vandalismo), seja no conteúdo (incitação ao crime).

A este propósito, a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito (14.197/21) estabeleceu no Código Penal tipos específicos, entre eles “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. Já antecipando interpretações espúrias, a lei distinguiu o que é crítica e manifestação de pensamento do que é ameaça ou agressão às instituições democráticas, explicitando que “a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política” não constitui crime.

Num protesto contra o aumento das tarifas de transporte, o recurso à violência pode constituir a prática de diversos crimes, mas não, pelo seu próprio conteúdo, de tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito. A lei até tipifica a sabotagem de serviços essenciais – “destruir ou inutilizar meios de comunicação ao público, estabelecimentos, instalações ou serviços destinados à defesa nacional” –, mas desde que com o propósito de “abolir o Estado Democrático de Direito”. É obviamente descabido imputar essa intenção a um protesto contra um ato administrativo.

Ao fazê-lo, as autoridades em questão arriscam-se inclusive a incidir em crime de abuso de autoridade, isto é, “requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício de prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa”.

A Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito foi criada para sanar distorções da Lei de Segurança Nacional que davam margem à perseguição e criminalização de opositores políticos. Com base em um artigo da antiga lei que tipificava crimes contra a honra dos presidentes dos Três Poderes, o Ministério da Justiça do então presidente Jair Bolsonaro pediu a abertura de diversos inquéritos criminais para intimidar seus críticos – por exemplo, chegou a acusar os responsáveis pela instalação de outdoors que pediam seu impeachment de atentar contra a segurança nacional.

A tentação autoritária não é monopólio de um espectro político, e mesmo após a revogação da Lei de Segurança Nacional houve tentativas de confundir maliciosamente a defesa das instituições democráticas com a defesa das autoridades. No ano passado, o então ministro da Justiça, Flávio Dino, insinuou que supostas agressões morais e físicas ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, deveriam ser punidas como crimes contra o Estado Democrático de Direito. Essa elasticidade hermenêutica, perturbadora em todos os sentidos, preocupa ainda mais por ter sido elaborada por um futuro ministro do Supremo.

Em relação aos indiciamentos dos manifestantes em São Paulo, não há motivo para alarmismo. Ainda são só inquéritos, e o Judiciário tem as condições e o dever de saná-los o mais rapidamente possível. Mas o fato de que autoridades no alto escalão da República tenham também flertado com abusos acende um sinal de alerta. Sem a devida vigilância, a incúria ou a má-fé de agentes do poder público pode subverter uma norma de defesa do Estado Democrático de Direito em seu exato oposto: um instrumento de agressão à democracia e violação de direitos fundamentais dos cidadãos.

O ecossistema da corrupção

O Estado de S. Paulo

O Índice de Percepção da Corrupção não mensura o estado da corrupção no Brasil, mas sugere o desamparo do cidadão ante a corrosão do Estado de Direito

Segundo o Índice de Percepção da Corrupção (IPC) da Transparência Internacional, em 2023 o Brasil caiu 10 posições, ficando na 104.ª colocação entre 180 países, com 36 pontos, abaixo da média global (43), da das Américas (43) e da dos Brics (40), bem abaixo das do G-20 (53) e da OCDE (66) e também da sua melhor pontuação na série histórica, 43, em 2012. Tais “pontos” e “colocações” devem ser tomados com ressalvas. Afinal, trata-se de um índice de “percepção”, mensurado em enquetes com especialistas, acadêmicos e empresários.

O resultado parece paradoxal. Após os dois grandes escândalos recentes, o mensalão e o petrolão, não houve indícios de esquemas dessa magnitude. O Supremo Tribunal Federal (STF) erradicou um dos grandes canais de abastecimento desses esquemas, o financiamento de campanhas por empresas, e o Congresso aprovou novos mecanismos de controle sobre a interferência política em estatais ou autarquias.

Não obstante, a percepção registrada pela Transparência Internacional talvez reflita uma sensação de insegurança sobre a governança da coisa pública e da aplicação dos princípios de administração: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Parte dessa sensação talvez decorra da ressaca pós-Lava Jato. Passada a euforia, as arbitrariedades verificadas no devido processo legal e o ingresso dos protagonistas da operação na política geraram em parte da população um ceticismo sobre sua idoneidade.

Após validarem a operação no início, as instâncias judiciais ativaram um processo de desconstrução generalizada, que culminou com decisões monocráticas no STF suspendendo provas e multas a réus confessos, o que lançou as piores suspeitas sobre a Corte, como se fosse órgão instável, imparcial e submisso a ventos políticos e lobbies corporativos.

Apesar dos marcos legais recentes e de não se terem verificado grandes escândalos, há uma sensação de que a corrupção, se não no sentido estrito de desvio de dinheiro público para bolsos privados, no sentido amplo da corrupção moral e cívica, nas formas do patrimonialismo, do clientelismo, do corporativismo, está sendo institucionalizada.

É um fenômeno curioso que, concomitantemente à percepção de aumento da corrupção sugerida no IPC, haja uma profusão de libelos acalorados em favor da ética nas instâncias do poder. Agitando a bandeira da “lei e da ordem”, o governo de Jair Bolsonaro debilitou órgãos de controle, ocultou dados públicos, disseminou desinformação. Sob a bandeira da “justiça social”, o governo lulopetista também manobra para debilitar mecanismos de controle e reeditar, sob o manto “desenvolvimentista”, o aparelhamento do Estado que criou um ambiente fértil a desvios de recursos e ao uso da máquina estatal para fins privados.

A cada ano aumenta a provisão de emendas parlamentares distribuídas de maneira opaca, paroquiana e arbitrária, corrompendo a governabilidade e o Orçamento público e criando condições para uma corrupção miúda e pulverizada. Fundos partidários e eleitorais crescem exponencialmente, desequilibrando a competição democrática em favor daqueles instalados no poder.

Em nome da defesa do Estado Democrático de Direito, a Justiça lança mão de heterodoxias processuais, como os inquéritos sigilosos e intermináveis do STF. O fenômeno recente e agudo de um Judiciário politizado se sobrepõe à doença crônica de uma magistratura habituada a acumular escandalosos privilégios.

Some-se a tudo isso a profusão de indícios de infiltração do crime organizado no mercado legal e no Estado.

O IPC não mensura (e nem pretende mensurar) o estado objetivo e quantitativo da corrupção, em sentido estrito, no Brasil. Talvez ela tenha diminuído. Talvez tenha aumentado e esteja escamoteada sob disfarces mais sofisticados. Mas é possível que a percepção registrada no IPC reflita o desamparo do cidadão ante um estado de coisas ainda mais grave, do qual a corrupção criminal é só uma consequência: a corrupção (corrosão, erosão, degradação ou deterioração, como queiram) dos pilares do Estado de Direito.

A Europa precisa acordar

O Estado de S. Paulo

UE aprova ajuda à Ucrânia, mas é evidente que ainda não entendeu o tamanho da ameaça russa

A União Europeia aprovou um pacote de ¤ 50 bilhões para a Ucrânia. Foi uma demonstração de união, que expôs os limites da influência de Viktor Orbán, o premiê húngaro simpático à Rússia, e dissolveu um dos pretextos de vários congressistas norteamericanos – o de que a Europa não estava cumprindo a sua parte – para não aprovar um novo pacote de ajuda dos EUA.

Mas isso é suficiente? Para muitos especialistas, os recursos bastam para impedir que a Ucrânia perca a guerra, mas não para ajudá-la a vencer. Isso satisfaz os que querem forçar Kiev a entregar seus territórios em nome da paz. Mas é uma satisfação por sua conta e risco. O histórico e as declarações de Vladimir Putin evidenciam que ele não quer a paz. Sua retórica maximalista não arrefeceu. Em contraste, nos líderes europeus, em comparação com um ano atrás, há uma clara falta de resolução.

Além do argumento moral do apoio a uma democracia – com todas as suas falhas – que quer prosperar livre e soberana, os líderes europeus deveriam convencer suas populações que enfrentar Putin diz respeito à sua própria segurança. Mas eles mesmos não parecem convencidos.

Em seus discursos de fim de ano, os líderes do Reino Unido e da Alemanha mal tocaram no assunto. Em contraste, o presidente finlandês disparou: “A Europa precisa acordar”. A premiê dinamarquesa não mediu palavras: “Falta munição à Ucrânia. A Europa não entregou o que ela precisa. Nós pressionaremos por mais produção europeia. É urgente”. Não à toa, os países que, na proporção do PIB, mais estão dirigindo bilateralmente recursos à Ucrânia são pequenas nações que sofreram na carne o jugo do imperialismo russo, como Lituânia, Estônia ou Letônia.

Os ¤ 50 bilhões serão dispersos por quatro anos e representam só 0,08% do PIB do bloco neste período. Uma fração irrisória comparada aos ¤ 750 bilhões do fundo de recuperação da pandemia ou ao ¤ 1 trilhão anual para a transição energética. Mas, se a maior potência revanchista desde a Alemanha de Hitler vencer, o que virá depois? O Báltico? O Leste Europeu? Isso para não falar do reforço da doutrina da “lei do mais forte” para outras autocracias, como China ou Irã.

“Se alguém pensa que isso é só sobre a Ucrânia, está errado”, disse um exasperado Volodmir Zelenski, o presidente ucraniano, em Davos. “Dando-nos recursos e armas, vocês apoiam a si mesmos. Vocês salvam seus filhos, não só os nossos”, disse em outra ocasião.

A fadiga na população era previsível e é compreensível. Mas, por isso mesmo, em seus líderes ela é imperdoável. Não há risco para soldados europeus. Os ucranianos já mostraram que estão dispostos a derramar “sangue, suor e lágrimas”. Mas precisam de mais ajuda. “Tudo o que é necessário para nós é um pensamento claro, determinação sóbria e uma alocação de recursos totalmente manejável. Além disso, os investimentos urgentemente necessários para a indústria de defesa criarão empregos em casa, assim como fortalecerão a nossa segurança”, disse, em apelo a seus confrades europeus, o historiador britânico Timothy Garton Ash. “Será pedir demais?”.

Que briguem as ideias

Correio Braziliense

É um alívio constatar que o país vai, aos poucos, retomando uma certa harmonia entre governantes, com atitudes republicanas e estadistas, marcadas pelo respeito entre os cargos e à liturgia

Já um político experiente e experimentado, o ex-presidente Tancredo Neves (1910-1985), diante de um impasse, costumava aconselhar os seus colegas com uma frase que se tornou um bordão da moderação: "Não são os homens, mas as ideias que brigam". Apesar de curta, a sentença carrega uma lição gigantesca de moderação, bom senso e equilíbrio, aspectos fundamentais na política. Afinal de contas, a disputa de propostas, de pontos de vista e de opiniões é absolutamente necessária em uma sociedade democrática e plural, e o amplo acesso ao contraditório é pilar óbvio de um debate justo. Mas isso não pode interditar a busca por um meio-termo razoável, tendendo ao equilíbrio, não importando o assunto. Ou seja: os homens públicos, independentemente de qual cargo ocupem, podem - e devem - discordar entre si quanto a propostas, visões de mundo e meios de se chegar a um objetivo, mas não devem jamais entrar em conflitos pessoais.

Apesar de datar de mais de meio século, o ensinamento de Tancredo não estava sendo absorvido e respeitado pela classe política recentemente. Talvez por isso, causou polêmica quando foi aplicado na última sexta-feira, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), durante um evento que contou com a presença do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), no porto de Santos. No aniversário de 132 anos do entreposto comercial, os dois decidiram fazer, em conjunto, o anúncio de um investimento em parceria entre os governos federal e estadual para a construção de um túnel ligando Santos e Guarujá, promessa antiga de várias gestões e que nunca saiu do papel. Porém, assim que subiu ao púlpito, o governador paulista foi recebido com aplausos tímidos e uma sonora vaia, já que boa parte da plateia era formada por apoiadores do petista.

Foi o que bastou para que o presidente passasse um pito nos próprios seguidores. Lula repreendeu o público, criticou as vaias ao governador e defendeu que Tarcísio, pelo cargo que ocupa, merece ser tratado com muito respeito. Garantiu ainda que ele terá todo apoio do governo federal, já que comanda o estado mais importante da Federação, e concluiu dizendo que o evento se tratava de um retorno do país à normalidade. "Normalidade é a gente respeitar o direito à diferença", finalizou Lula, diante de um Tarcísio visivelmente satisfeito, e em uma evidente interpretação do ensinamento de Tancredo. Ou seja, apesar das divergências, ambos se respeitam e pretendem, cada um ao seu modo, trabalhar por melhorias.

No que se pese a preferência política por um ou outro, é um alívio constatar que o país vai, aos poucos, retomando uma certa harmonia entre governantes, com atitudes republicanas e estadistas, marcadas pelo respeito entre os cargos e à liturgia. Afinal, o ensinamento de Tancredo de que oposição é uma coisa e criar inimigos e dificultar o andamento do país e das políticas públicas é outra, andava esquecido nos últimos anos. Tomados por um baixíssimo nível de debate, políticos de todas as classes estavam mais preocupados com ataques pessoais e brigas selvagens do que com a discussão de ideias, projetos e objetivos para melhoria do país.

É possível que o espanto que a situação causou seja reflexo da divisão política e ideológica profunda que o país ainda atravessa. Mas a atitude do presidente e do governador deixam claro que ainda há espaço para um caminho que deixe a briga entre os homens de lado e promova, tão somente, a briga de ideias. Assim, com respeito à divergência, ganham todos —principalmente a democracia.

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