Folha de S. Paulo
Democracia e corrupção numa encruzilhada
No que se refere à corrupção e à
democracia, o Brasil é uma imagem invertida de Singapura. À frente
da Suécia e da Suíça, no ranking da Transparência Internacional (TI), Singapura é um
dos países menos corruptos do mundo. Mas o país não é uma democracia; seu
escore no Índice da Freedom House é idêntico ao de Moçambique e Gâmbia. O
escore do Brasil é quase o dobro (44 vs 74, na média), mas a corrupção é alta.
A publicação do Relatório Geral da entidade gerou protestos. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, atacou-a: "de transparente só tem o nome". O governo da Rússia também. O procurador-geral do país emitiu nota quando o relatório anual do ano passado foi divulgado: "a organização é uma ameaça à ordem constitucional e segurança da Federação Russa". Também Maduro já disparou contra a TI e disse que nenhum outro governo fez mais no combate a corrupção que o seu ou o de Chávez. A Venezuela lidera o ranking da corrupção na América Latina há anos.
Este contraste entre os dois países é
contraintuitivo: em geral, assume-se que democracia e percepção baixa da
corrupção caminham juntos. Quando há um processo de democratização, há mais
exposição da corrupção e, portanto, há um aumento na corrupção
percebida, mesmo que a corrupção real aumente, diminua ou permaneça a mesma.
(veja um estudo clássico aqui)
Entretanto, no médio ou longo prazo,
esperamos que ocorra um efeito dissuasório, pois, com a democracia, há mais
transparência, menos impunidade e menos aceitação da corrupção. Se a
democracia implica o fortalecimento do Estado de direito, esse efeito levará a
um declínio da corrupção, pois os controles eficazes inibem a prática da
corrupção.
Mas sim, a democracia (regra da maioria) e
governo limpo (onde não há uso de recursos públicos para ganhos privados) podem
estar separados. É o que ocorre no Brasil: a intolerância em relação a abusos
autoritários e violação de direitos aumentou, enquanto a intolerância com a
corrupção diminuiu. O que se observa não é prática direta da corrupção mas o
enfraquecimento brutal de seu combate. A OCDE expressou preocupação neste sentido nos últimos anos. O
risco é a volta para o equilíbrio secular anterior de impunidade atávica. O futuro está
aberto.
Os tribunais superiores refletem esta tensão.
O STF enfrentou uma escolha entre controlar abusos de um líder iliberal e
apoiar a Lava Jato, como vinha fazendo (como mostrei
aqui). Optou pela primeira. A escolha implica a impunidade de
malfeitos. Mas a defesa da democracia pode chegar ao ponto de se utilizar meios
não democráticos para defender a própria democracia. Uma espécie de tiranofobia
seletiva: autoritários serão punidos e democratas corruptos tolerados.
*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
Um comentário:
Verdade,corre-se esse risco,apesar que no Brasil,os autoritários também são corruptos.
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