segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Pedro Estevam Serrano e outros* - A PEC da ameaça

Folha de S. Paulo

Limita-se a Suprema Corte para afrontá-la, não para aprimorar a democracia

O debate em torno da PEC 8/2021, que limita decisões individuais dos ministros do Supremo Tribunal Federal, tem sentido e carga histórica, mas seus motivos não são republicanos. Com a redemocratização, o STF viu seus poderes serem ampliados. De um tribunal amedrontado por ditaduras, tornou-se o regente das grandes decisões políticas do país, atuando como guardião da institucionalidade.

Essa mudança gerou debates entre juristas sobre os limites da corte e de sua interferência na política. De um lado, há quem afirme que o espaço natural para o exercício da democracia é o Legislativo, composto por representantes eleitos pelo povo. Do outro, defensores do Supremo defendem seu papel de filtro da constitucionalidade, sobretudo em um país marcado pela ditadura e violação de direitos.

Ou seja, o debate em torno dos limites do STF é legítimo e salutar.

Porém, numa democracia, os motivos importam. Por vezes, importam mais que o próprio resultado de eventuais reformas. Mesmo positivas, decisões que impactam as instituições devem ser lastreadas por razões públicas.

O mesmo raciocínio vale para a proposta de emenda à Constituição 08/2021, aprovada pelo Senado, e que estabelece limitações à corte.

O conteúdo da PEC é positivo. É importante que o Legislativo retome o locus da política. O avanço do Supremo no campo político preocupa juristas e cientistas políticos. O tribunal padece de disfuncionalidade há décadas: há exercício abusivo do poder de agenda, pedidos de vista para fins estratégicos, decisões fulanizadas, votos indecifráveis, vaidades afetadas e hermenêuticas criativas. Tudo isso faz o STF derreter sua imagem perante a sociedade, fragilizando sua legitimidade.

É, pois, desejável uma reação legislativa. Não há impeditivo para que o Congresso se manifeste após uma decisão do Supremo. Numa democracia, não há "última palavra": hoje o Congresso afirma; amanhã o STF modula; depois de amanhã o Congresso pondera. E o diálogo segue em rodadas deliberativas.

Porém, as razões da PEC 08/2021, em que pesem corretas, são insalubres. Não são republicanas e não têm a finalidade de aprimorar o desenho institucional nem de fortalecer o diálogo entre os Poderes —muito menos reajustar o espaço político ocupado pela "ministocracia".

Seus reais motivos são de política com "p" minúsculo. Num país em que parte significativa da população repudia o STF, ameaçá-lo gera voto. Não só: inflama setores reacionários simpatizantes com a depredação física do tribunal no fatídico 8 de janeiro e demonstra a força do Senado para impichar ministros. Não à toa, o Senado Federal sinaliza outra intervenção na corte, já que a PEC que impõe mandato fixo aos ministros será colocada em pauta.

Além disso, as decisões que culminaram na retaliação por parte do Senado têm uma característica peculiar: não foram más decisões. Pelo contrário: a Casa se insurgiu contra decisões que fizeram avançar direitos fundamentais, missão precípua da corte, como é o caso do reconhecimento das uniões homoafetivas (ADI 4.277 e ADPF 132); da descriminalização do aborto (ADPF 442); da descriminalização do porte de maconha para uso próprio (RE 635.659); e da rejeição da tese do marco temporal (RE 1.017.365).

Ou seja, limita-se a Suprema Corte para afrontá-la, não para aprimorar a democracia.

Os motivos não estão à altura de um ambicioso redesenho das instituições, ainda que tenham apelo popular. Democracias descontentam sob a égide das leis, tiranias apaixonam pelo arbítrio. Rebaixadas as razões, macula-se até mesmo boas ideias e possíveis bons resultados práticos.

*Pedro Estevam Serrano

Advogado e doutor em direito do Estado (PUC-SP), é professor de direito constitucional e de teoria do direito (PUC)

Rômulo Garzillo

Advogado, é professor e doutorando em direito do Estado (USP)

Laura de Azevedo Marques

Advogada criminalista e especialista em processo penal

 

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