Folha de S. Paulo
Limita-se a Suprema Corte para afrontá-la,
não para aprimorar a democracia
O debate em torno da PEC
8/2021, que limita decisões individuais dos ministros do Supremo Tribunal
Federal, tem sentido e carga histórica, mas seus motivos não são
republicanos. Com a redemocratização, o STF viu seus
poderes serem ampliados. De um tribunal amedrontado por ditaduras, tornou-se o
regente das grandes decisões políticas do país, atuando como guardião da
institucionalidade.
Essa mudança gerou debates entre juristas
sobre os limites da corte e de sua interferência na política. De um lado, há
quem afirme que o espaço natural para o exercício da democracia é o
Legislativo, composto por representantes eleitos pelo povo. Do outro,
defensores do Supremo defendem seu papel de filtro da constitucionalidade,
sobretudo em um país marcado pela ditadura e
violação de direitos.
Ou seja, o debate
em torno dos limites do STF é legítimo e salutar.
Porém, numa democracia, os motivos importam. Por vezes, importam mais que o próprio resultado de eventuais reformas. Mesmo positivas, decisões que impactam as instituições devem ser lastreadas por razões públicas.
O mesmo raciocínio vale para a proposta de
emenda à Constituição 08/2021, aprovada pelo Senado, e que
estabelece limitações à corte.
O conteúdo da PEC é positivo. É importante
que o Legislativo retome o locus da política. O avanço
do Supremo no campo político preocupa juristas e cientistas políticos.
O tribunal padece de disfuncionalidade há décadas: há exercício abusivo do
poder de agenda, pedidos de vista para fins estratégicos, decisões fulanizadas,
votos indecifráveis, vaidades afetadas e hermenêuticas criativas. Tudo isso faz
o STF derreter sua imagem perante a sociedade, fragilizando sua legitimidade.
É, pois, desejável uma reação legislativa.
Não há impeditivo para que o Congresso se
manifeste após uma decisão do Supremo. Numa democracia, não há "última
palavra": hoje o Congresso afirma; amanhã o STF modula; depois de amanhã o
Congresso pondera. E o diálogo segue em rodadas deliberativas.
Porém, as razões da PEC 08/2021, em que pesem
corretas, são insalubres. Não são republicanas e não têm a finalidade de
aprimorar o desenho institucional nem de fortalecer o diálogo entre os Poderes
—muito menos reajustar o espaço político ocupado pela "ministocracia".
Seus reais motivos são de política com
"p" minúsculo. Num país em que parte significativa da população
repudia o STF, ameaçá-lo gera voto. Não só: inflama setores reacionários
simpatizantes com a depredação física do tribunal no fatídico 8 de janeiro e
demonstra a força do Senado para impichar ministros. Não à toa, o Senado
Federal sinaliza outra intervenção na corte, já que a PEC que impõe mandato
fixo aos ministros será colocada em pauta.
Além disso, as decisões que culminaram na
retaliação por parte do Senado têm uma característica peculiar: não foram más
decisões. Pelo contrário: a Casa se insurgiu contra decisões que fizeram
avançar direitos fundamentais, missão precípua da corte, como é o caso do reconhecimento
das uniões homoafetivas (ADI 4.277 e ADPF 132); da descriminalização
do aborto (ADPF 442); da descriminalização
do porte de maconha para uso próprio (RE 635.659); e da rejeição
da tese do marco temporal (RE 1.017.365).
Ou seja, limita-se a Suprema Corte para
afrontá-la, não para aprimorar a democracia.
Os motivos não estão à altura de um ambicioso
redesenho das instituições, ainda que tenham apelo popular. Democracias
descontentam sob a égide das leis, tiranias apaixonam pelo arbítrio. Rebaixadas
as razões, macula-se até mesmo boas ideias e possíveis bons resultados
práticos.
Advogado e doutor em direito do Estado
(PUC-SP), é professor de direito constitucional e de teoria do direito (PUC)
Rômulo Garzillo
Advogado, é professor e doutorando em direito
do Estado (USP)
Laura de Azevedo Marques
Advogada criminalista e especialista em
processo penal
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