Polícia se ressente da falta de efetivo e de integração
O Globo
Radiografia das forças policiais detectou
redução de quadros e deficiências em funções essenciais
O Brasil tem
dois policiais para cada grupo de mil habitantes, revelou o estudo
“Raio X das Forças de Segurança Pública”, uma radiografia das polícias Militar,
Civil e Guardas Municipais feita pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública
(FBSP). Não é um número muito distante dos índices nos Estados Unidos, que oscilam
entre 1,8 e 2,6 dependendo do estado, segundo a Associação Internacional de
Chefes de Polícia. As polícias brasileiras, porém, enfrentam dificuldades
próprias.
Entre 2019 e 2022, houve aumento de 23,5% no
número de Guardas Municipais (de 1.188 para 1.467, num país com 5.570
municípios). Mas a reação de prefeitos para suprir as limitações estaduais no
combate à violência tem
sido incapaz de compensar as deficiências das PMs e Polícias Civis. Tem havido
perda substancial nos efetivos dedicados ao policiamento, atividade em que a
mão de obra é fundamental para o êxito.
Mesmo nas Guardas Municipais, houve diminuição de 4,3% nos quadros, apesar do aumento dos municípios com força policial própria. Nas PMs, responsáveis pelo policiamento ostensivo, a redução entre 2013 e 2023 foi de 6,8%. Nas Polícias Civis, de 2%. Há mais de 30% de vagas abertas nas duas polícias. Isso significa que faltam 180 mil PMs e 57 mil agentes civis.
Apesar de haver menos PMs nas ruas, as
corporações continuam a ceder policiais a Tribunais de Justiça, Tribunais de
Contas, Assembleias Legislativas e Ministérios Públicos. Sem considerar São
Paulo, Piauí, Alagoas e Roraima, que não cederam essas informações ao estudo,
havia 11.336 PMs fora de suas funções em 2022, quase o equivalente a toda a PM
do estado de Mato Grosso. Só no Rio, onde essa prática é frequente há muito
tempo, eram 2.621, o maior contingente entre os estados.
Ainda que a perda de efetivo traga desafios
significativos, se as polícias operassem com integração e razoável base técnica
e tecnológica, é provável que a população não apontasse a insegurança entre
seus principais problemas. O levantamento do FBSP revela a indigência, em boa
parte do país, da “polícia técnica”. Nem todos os estados têm todas as
especialidades de peritos necessárias à investigação de crimes. Mato Grosso do
Sul e Paraná não têm médicos legistas. Acre, Amazonas, Piauí, Ceará, Bahia,
Maranhão, Rio Grande do Norte, Espírito Santo e Minas Gerais não contam com
papiloscopistas, especializados em colher indícios como impressões digitais.
Tudo isso resulta na baixa resolução de
crimes. O Instituto Sou da Paz obteve informações de 18 estados e constatou que
apenas 33% dos homicídios cometidos em 2020 e 35% dos perpetrados em 2021
alcançaram algum nível de esclarecimento. A mensagem enviada à sociedade é de
impunidade e incentivo ao crime.
É indiscutível que o aparato policial dos
estados precisa ser repensado e reforçado. Não se deve menosprezar a
importância da redução de efetivos das polícias. Mas não basta contratar. É
preciso também repensar a forma de operação das polícias, para que se tornem
cada vez mais integradas, no espírito do Sistema Único de Segurança Pública
(Susp), até hoje no papel. Sem isso, será mais difícil, e talvez não se
consiga, melhorar a qualidade das operações policiais como o país exige e
necessita.
Projeto do governo para trabalho por
aplicativo deixa a desejar
O Globo
Proposta não contempla entregadores e carrega
o ranço de uma visão ultrapassada das relações trabalhistas
O projeto que o governo Luiz Inácio Lula da
Silva enviou ontem
ao Congresso para regulamentar o trabalho por aplicativos —
promessa feita desde a campanha eleitoral — tem o mérito de criar regras para
um mercado que, a despeito do crescimento nos últimos anos, ainda opera no
limbo. Mas peca por contemplar apenas os motoristas, deixando de lado os
entregadores, e ainda carrega certo ranço de uma visão ultrapassada das
relações trabalhistas.
Em maio passado, o governo criou um grupo de
trabalho para discutir propostas para o setor. A expectativa era que houvesse
um esboço de regulamentação ainda no primeiro semestre. Depois de quase um ano,
o Planalto apresentou um projeto capenga, que não superou o impasse entre
empresas e entregadores. O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, promete retomar
as negociações com o setor num segundo momento. Mas não faz sentido um projeto
regulando apenas parte do trabalho por aplicativo.
Pesquisa recente estimou haver no Brasil 1,3
milhão de motoristas e 385 mil entregadores. Passou da hora de estabelecer
regras mínimas para reduzir a incerteza jurídica que paira sobre essas
atividades. Qualquer regulamentação precisa preservar a autonomia dos
trabalhadores e a flexibilidade do trabalho. Sem regras, os tribunais têm sido
levados a exercer um papel que cabe aos legisladores.
Em relação aos motoristas de aplicativos, o
projeto do governo avança ao estabelecer proteção previdenciária. Pela
regulamentação proposta, eles recolherão 7,5% para a Previdência, e as empresas
20%. Os percentuais incidirão sobre 25% do valor repassado aos motoristas pelas
plataformas. Com a contribuição, eles passarão a ter direito a aposentadoria
por idade, pensão por morte, auxílio-doença e outros benefícios sociais.
Ao mesmo tempo, o projeto revela como a visão
retrógrada das relações trabalhistas acaba por tolher a flexibilidade inerente
a esse tipo de atividade. A proposta prevê jornada de oito horas, podendo se
estender a 12 horas se houver acordo com sindicatos. Estabelece também um piso
de R$ 32,09 por hora rodada, com valores mínimos para as saídas. Tais medidas
engessam os custos para as empresas e reduzem a autonomia do profissional. A
perda de flexibilidade encarece o serviço e pode reduzir a oferta de trabalho.
Pelo menos, o projeto evita a armadilha de
criar vínculo empregatício entre trabalhadores e aplicativos, foco constante de
ações na Justiça. O texto estabelece “inexistência de qualquer relação de
exclusividade entre trabalhador e empresa”. A ideia é que os motoristas façam
parte de uma nova categoria, chamada de “trabalhador autônomo por plataforma”.
O governo ainda deve uma regulamentação para
os entregadores, que vivem situação tão incerta quanto a dos motoristas de
aplicativos. A proposta incompleta levada ao Congresso atesta a incapacidade do
governo na negociação. Ter alguma regra para serviços de entrega, ainda que não
a ideal, seria melhor do que não ter nenhuma.
Brasil entra na disputa por investimentos
verdes
Valor Econômico
País precisa oferecer ambiente macroeconômico
estável e relação dívida/PIB em queda
Já um tanto atrasado, o Brasil entrou na
disputa pelos investimentos privados estrangeiros para a transição para uma
economia descarbonizada. Os volumes de recursos necessários são grandiosos. O
investimento mundial em descarbonização somou US$ 1,3 trilhão no ano passado, e
apenas 6% disso foi gasto na América Latina, segundo estimativa do Glasgow
Financial Alliance for Net Zero (GFANZ), o que dimensiona o tamanho do desafio.
O GFANZ reúne 675 instituições financeiras em 50 países e foi criado para acelerar
a descarbonização da economia. A rede também avalia que as economias emergentes
precisarão investir US$ 1 trilhão por ano em energia limpa ao fim desta década.
O primeiro passo foi a parceria estabelecida
entre o BNDES e o GFANZ para a criação de uma plataforma que exiba os projetos
brasileiros de descarbonização para atrair a participação de investidores
nacionais e estrangeiros. A intenção é acelerar os investimentos necessários
para o Brasil cumprir a meta de zerar as emissões líquidas de gases de efeito
estufa até 2050, conforme acertado no Acordo de Paris.
Ainda não há data para o início do
funcionamento da plataforma brasileira, nem detalhamento do tipo de projetos
que serão abarcados, embora transição energética e recuperação de floresta
sejam dois focos. A Indonésia e o Vietnã são dois dos países em desenvolvimento
que já têm plataformas semelhantes no ar. Apesar de estar defasado em relação a
outros países que também brigam por recursos, o Brasil atrai pelo valor dos
projetos que pode oferecer.
Em seguida, o governo lançou o Programa de
Mobilização de Capital Privado Externo e Proteção Cambial Eco Invest Brasil
para incentivar a entrada de capital estrangeiro no país para investimentos em
transição energética. Para reduzir o custo dos empréstimos e os riscos de
oscilação do real ante o dólar, o programa vai oferecer mecanismos de proteção
cambial. Participam da iniciativa o Banco Interamericano do Desenvolvimento
(BID), o Banco Mundial e o governo britânico.
O BID será o principal parceiro no programa
de seguro cambial, comprometendo US$ 5,4 bilhões no total (R$ 27 bilhões),
sendo US$ 3,4 bilhões em derivativos cambiais e US$ 2 bilhões em operações de
swaps e linhas de crédito para empresas. O BID vai empregar os US$ 3,4 bilhões
na aquisição de instrumentos de proteção no exterior a custos mais favoráveis
para oferta no mercado brasileiro, aproveitando as vantagens de ter rating
“triplo A”. Os instrumentos serão repassados ao Banco Central (BC), sem acarretar
risco de crédito ou cambial.
A falta de proteção cambial a custos e prazos
adequados é uma barreira para a atração de recursos estrangeiros para o Brasil.
No mercado doméstico, os derivativos de proteção cambial geralmente têm prazos
curtos. Segundo o Ministério da Fazenda, em fevereiro, os contratos futuros de
câmbio em aberto com prazo de mais de 10 anos somam apenas R$ 1 bilhão. Até
cinco anos, são R$ 15 bilhões; outros R$ 44 bilhões estão em instrumentos de
proteção de até dois anos, e a grande maioria, R$ 134 bilhões, cobria apenas
até 12 meses.
Além da parceria para disponibilizar proteção
cambial, o Eco Invest Brasil vai ter quatro novas linhas de crédito com uso de
recursos do Fundo Clima, que será abastecido por US$ 2 bilhões do BID e mais
US$ 1 bilhão do Banco Mundial. Pelos critérios do Fundo Clima, os projetos
precisam ter como objetivo diminuir os impactos das mudanças climáticas. O
Fundo Clima também deverá ser reforçado em R$ 10,4 bilhões com a emissão de
títulos verdes pelo governo federal.
Uma das linhas do Eco Invest Brasil é a
chamada “blended finance” para baratear o preço da proteção. A linha pode
chegar a 25 anos, dependendo da estrutura do projeto. Uma segunda linha, a “FX
liquidity facility”, também tem prazo de até 25 anos e fica à disposição do
investidor que pagar uma taxa por isso, o que justifica todo esse período. Se
ocorrer um evento cambial, a linha vai prover liquidez para manter a capacidade
de o projeto honrar as obrigações em moeda forte sem afetar o fluxo de caixa.
Uma terceira linha é para instituições financeiras que desejem viabilizar
derivativos no mercado local. E a quarta apoia a estruturação de projetos
dentro da transição energética, com prazo de 12 anos e juros a serem definidos
pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).
Em artigo
no Valor (27/2), os economistas Winston Fritsch e Márcio
Garcia, que realizam pesquisa patrocinada pelo BID sobre mecanismos para trazer
financiamento privado estrangeiro para projetos de impacto na transição
climática no Brasil, salientam a importância de o país atrair capital externo
privado uma vez que possui potencial para investimentos verdes, mas baixo nível
de poupança interna e acesso limitado às fontes de bancos multilaterais.
Advertem, porém, que não basta ter bons projetos e proteção cambial, ressaltando a importância de o país oferecer um ambiente macroeconômico estável, uma relação entre dívida pública e PIB em queda e balanço de pagamentos administrável. Esses elementos determinam o risco de crédito do país e o custo do dinheiro, influenciando o apetite do investidor pelos projetos.
Verba de emendas deve seguir critérios
técnicos
Folha de S. Paulo
É democrático que o Congresso decida sobre o
Orçamento, mas prioridade para currais eleitorais prejudica a população
O governo federal estima que vá desembolsar
R$ 2,18 trilhões neste ano, excluídos os gastos com juros. Mais de 90% desses
recursos vão para despesas obrigatórias, como aposentadorias, salários e os
pisos constitucionais da saúde e da educação. Resta algo em torno de R$ 200
bilhões para custear a máquina, prestar serviços e investir.
Por meio de emendas ao Orçamento, deputados e
senadores podem definir o destino de cerca de 23% desse montante, mas reclamam
da execução de tais dotações, da liberação e do gasto efetivo. Na verdade,
pressionam o governo com agressividade.
Chegam a pedir a saída de ministros, como
Nísia Trindade (Saúde), de quem
cobram relatórios sobre o uso do dinheiro —o que seria correto,
se o objetivo fosse meritório.
Demandar e obter as verbas aprovadas não
resulta, necessariamente, em corrupção, embora haja casos investigados pela
Polícia Federal. O fato de que parcela do Orçamento seja destinada a municípios
tampouco é motivo, por si só, de condenação. O conjunto da obra é que está em
questão.
O investimento federal não passou de R$ 60
bilhões em 2023. Parte relevante é pulverizada em despesas paroquiais, de
compra de caixas d’água a capacetes para a polícia, que bem podem ser
necessidades, mas não são
consideradas do ponto de vista do uso mais eficiente dos
recursos federais.
Não há plano geral de avaliação do mérito das
emendas e de uso alternativo do dinheiro a elas destinado. Ademais, a
pulverização dificulta a reunião de recursos para investimentos maiores, que
resolvam problemas de infraestrutura, sejam eles sanitários, de transporte, de
pesquisa científica ou de comunicações, por exemplo.
A distribuição política de verbas também
prejudica a conclusão de obras, já que é preciso agradar a mais currais
eleitorais, em vez de seguir a ordem de prioridade da execução de trabalhos.
O problema é histórico. Nos últimos cinco
anos, contudo, se agravou, dado o fortalecimento do Parlamento, que empareda o
Executivo por meio de pressão política e barganhas para aprovação de medidas.
Atualmente, o Congresso
controla ao menos 30% da verba de sete ministérios de Lula.
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL),
um dos grandes artífices dessa ofensiva, alega com ligeireza que, pela
Constituição, o Congresso tem o poder da emenda.
Por óbvio não se pretende cassar o direito do
Legislativo de manejar parte do Orçamento e monitorar sua execução. Trata-se
tão somente de fazer com que os recursos sejam distribuídos e fiscalizados de
modo republicano e eficaz.
O embrião do real
Folha de S. Paulo
URV completa 30 anos; plano deu certo pois
não se limitou a um lampejo criativo
Com o lançamento da Unidade Real de Valor
(URV), em 1º de março de 1994, foi posta em prática a primeira fase
da engenhosa reforma monetária que levaria ao lançamento da
atual moeda brasileira, o real, quatro meses depois.
O marco do plano mais presente na memória
coletiva foi a troca das cédulas, mas a
transformação teve início com a URV, mecanismo de indexação que
buscou o alinhamento dos preços —para que a população recuperasse a percepção
do valor dos bens e serviços.
Na época, 1 URV correspondia a US$ 1, com
reajustes diários na moeda de então, o cruzeiro real. Depois, as cifras em URV
foram convertidas em reais.
A consistência técnica e jurídica do Plano
Real foi um diferencial decisivo em relação às tentativas anteriores. Os
fracassos que o precederam proporcionaram um aprendizado fundamental.
A negociação para conversão dos salários em
URV foi talvez o maior desafio político da empreitada, dada a pressão dos
sindicatos por ganhos no poder de compra.
Para vencer o ceticismo, o governo Itamar
Franco e a equipe do então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso,
também inovaram ao fazer a opção política correta. Buscaram o apoio da opinião
pública e do Congresso com transparência, sem malabarismos, congelamentos ou
intervenções atabalhoadas.
O plano não se esgotou na reforma monetária.
Deu início a uma transformação institucional e econômica de grande envergadura.
Os passos seguintes foram esforços para o
equilíbrio do Orçamento, num percurso até hoje acidentado, saneamento do
sistema financeiro e das contas dos Estados, privatizações e abertura
econômica.
Socialmente, o impacto foi a proteção dos
salários contra a inflação, o que propiciou melhoria da distribuição de renda,
continuada nas décadas seguintes com a ampliação da rede de proteção social.
Sem a URV, seria muito mais difícil conter a escalada dos preços no Brasil —peculiar devido aos mecanismos arraigados de correção monetária— com os instrumentos tradicionais de política fiscal e de juros. O plano foi bem-sucedido, porém, porque não se limitou a um lampejo de criatividade.
O absurdo tribunal racial
O Estado de S. Paulo
As ‘bancas de heteroidentificação’ se converteram em tribunais raciais nas universidades do País, decidindo subjetivamente quem é negro e, portanto, titular de direito à vaga como cotista
Um espectro ronda a política de cotas adotada
no Brasil para democratizar o acesso ao ensino superior: as bancas de avaliação
fenotípica. Essas comissões, chamadas “bancas de heteroidentificação”, estão no
epicentro da crise que estourou na Universidade de São Paulo (USP) no caso do
cancelamento da matrícula do estudante Alison dos Santos Rodrigues, após a
banca rejeitar sua autodeclaração como pardo. Alison e pelo menos mais um aluno
processaram a universidade por terem perdido as vagas para as quais foram
aprovados. A USP não está sozinha: houve casos similares em outras
universidades que adotam o mesmo modelo – caso da Universidade de Brasília
(UnB), por exemplo.
Não há outra forma de definir tais comissões
senão como uma espécie de “tribunais raciais”, compostos por pessoas chamadas a
decidir a raça de um estudante e selar seu destino de ingresso ou recusa numa
universidade. Parece algo muito mais afeito a regimes racialistas do que a um
país que pretende genuinamente compensar, de alguma forma, os séculos de
escravidão e discriminação racial.
Desde o início da sua adoção, em 2004, as
cotas permitiram ao Brasil quase quadruplicar o ingresso de pessoas negras nas
universidades. Em 2023, na revisão da política, o Congresso ampliou as ações de
inclusão nas universidades. As cotas também foram fundamentais para que o País
avançasse no debate sobre as relações sociais.
Tais conquistas, assim como a chancela do
Legislativo e do Judiciário, não isentam o debate de erros, desvios e excessos.
Integram esse grupo de equívocos as tais “bancas de heteroidentificação”.
Criadas por pressão de movimentos negros – preocupados com as denúncias de
fraudes nos processos seletivos –, essas comissões avaliam a cor da pele, os
cabelos e a forma da boca e do nariz de jovens que se declaram pretos ou pardos
e foram aprovados pelo regime de cotas. Uma primeira avaliação é feita com base
na foto dos candidatos, considerando a análise fenotípica. Se rejeitada a
matrícula, os candidatos são convocados para uma oitiva presencial ou virtual.
No caso do estudante Alison, a oitiva durou apenas o suficiente para ele ler
sua autodeclaração.
Na prática, a tal banca tratou esse estudante
como mentiroso e não suficientemente negro para reivindicar uma cota. E tudo
isso é feito sem a menor objetividade. Qual a medida que determina a cor da
pele? Quantos centímetros tem um nariz que se considera adequado para a cota? E
qual o tipo certo de lábio para avaliar se o candidato está apto? No século 19,
Lombroso e
Gall achavam que era possível determinar se
alguém tinha propensão ao crime apenas pelo formato e as saliências do crânio.
Nas “bancas de heteroidentificação”, a frenologia se atualizou, agora para
saber se alguém é negro o bastante. A pseudociência a serviço das boas causas
determina quem segue adiante e quem fica pelo caminho.
Ocorre que nada disso encontra respaldo na
Constituição, que estabelece a igualdade de todos perante a lei e condena
veementemente o racismo.
O Brasil decidiu incluir pardos à população
negra – que, segundo a classificação oficial, é formada por pessoas pretas e
pardas. Parte dos movimentos identitários costuma considerá-los em sua
contabilidade racial para celebrar os números de uma maioria negra, como
atestou o Censo do IBGE divulgado no ano passado. Segundo os dados, o número de
pessoas pardas pela primeira vez superou o número de brancos, tornando-se o
maior grupo étnicoracial do Brasil. Os pardos passaram a somar 92,1 milhões de
habitantes, equivalente a 45,3% da população. Brancos somam cerca de 43,5% e
pretos são apenas 10,2%. No país da miscigenação, pardos estão mais confiantes
para se declararem como tal, mesmo que a maioria desse grupo não esteja imune,
assim como os pretos, à discriminação.
Aos defensores dos tribunais raciais, no
entanto, importa restringir ao máximo as vagas disponíveis aos estudantes
considerados suficientemente pretos. Em nome desse imperativo, a discriminação
racial, malgrado ser ilegal e imoral, é considerada perfeitamente válida.
A farra das armas
O Estado de S. Paulo
Grau de negligência do Exército na emissão de
licenças para compra de armas por CACs, como revelou o TCU, é inadmissível num
país já tão subjugado pelas organizações criminosas
O Brasil não é particularmente conhecido pelo
alto padrão de qualidade de seus serviços públicos, à exceção de algumas ilhas
de excelência. Contudo, mesmo para um Estado com esse histórico de negligência
em determinadas áreas da administração, até pouco tempo atrás era inimaginável
a mera possibilidade de homicidas, traficantes e membros de organizações
criminosas receberem uma licença para comprar legalmente armas de fogo e
munições – inclusive de grosso calibre. Pois isso aconteceu no País. Não uma
vez nem duas: foram milhares de vezes ao longo dos quatro anos do tenebroso
governo de Jair Bolsonaro.
O plano de armar a população até os dentes
por meio da concessão de licenças para Caçadores, Atiradores e Colecionadores
(CACs) pelo Exército – executado com denodo por Bolsonaro sob a falácia de que
“um povo armado jamais será escravizado” – era temerário por si só, ainda que a
autorização para compra de armas de fogo fosse massificada apenas entre os
cidadãos com ficha criminal imaculada. Não foi o caso. Um detalhado relatório
feito por técnicos do Tribunal de Contas da União (TCU), ao qual o Estadão teve
acesso, revelou que pistolas, fuzis e metralhadoras foram comprados legalmente,
pasme o leitor, por criminosos condenados pela Justiça – uns cumprindo pena;
outros, foragidos – por meio da apresentação de certificado de CAC.
A frouxidão do Exército no processo de
concessão desse documento a torto e a direito durante o governo passado não é
novidade. Em julho de 2022, quando vieram a público informações sobre fraudes e
erros no processo de emissão dos certificados de CAC para cidadãos que
claramente não poderiam recebêlos, alertamos para o problema duas vezes nesta
página (ver Incúria perigosa, de 23/7/2022, e CAC, bom negócio para o PCC, de
27/7/2022). O TCU, contudo, tem o mérito de revelar a dimensão desse descuido,
pois o relatório da Corte de Contas abrange a emissão dos certificados entre
2019 e 2022, ou seja, durante todo o mandato de Bolsonaro, quando o armamento
desenfreado da população foi convertido em política de governo.
Segundo o TCU, nada menos que 5.235 pessoas
receberam novos registros de CAC ou renovaram registros anteriores mesmo
havendo processo de execução penal contra elas por crimes como tráfico de
drogas, homicídio e lesão corporal, entre outros. Quase 2,7 mil pessoas
obtiveram do Exército licença para comprar armas de fogo mesmo sendo alvo de
mandados de prisão em aberto. Num recorte que seria risível se não fosse
trágico, o TCU apontou ainda que 94 pessoas declaradas mortas no período
“compraram” 16.669 munições em 67 processos registrados.
Por fim, a partir de um perspicaz cruzamento entre as bases de dados do Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma) e o CadÚnico, os técnicos do TCU identificaram que 22.493 cidadãos que constam na base do governo federal para concessão de benefícios destinados à população de baixa renda foram autorizados pelo Exército a comprar armas e munições cujos valores são sabidamente altos. Como é óbvio, tudo indica que essas pessoas foram usadas como “laranjas” por organizações criminosas – e sabe-se lá qual é e onde está todo o poder de fogo adquirido em seus nomes por meio de fraude.
Eis o grau de irresponsabilidade de
autoridades militares na emissão dessas licenças para aquisição de armas no
Brasil, muitas das quais decerto foram parar nas mãos de quem atenta contra a
vida de agentes do Estado e dos cidadãos em geral. Diante de números tão
alarmantes, resta evidente que o Exército é incapaz de seguir fiscalizando a
emissão de certificados de CAC nos moldes atuais, seja por falhas sistêmicas,
seja por falta de mão de obra, como alega a instituição.
Algo tem de ser feito já. Para a sociedade,
pouco importa se essa fiscalização permanecerá a cargo dos militares, o que
implica rigorosa revisão de processos, ou se passará a ser responsabilidade da
Polícia Federal, como querem alguns delegados. Um serviço público como esse tem
de ser prestado por quem quer que se mostre à altura de sua relevância social.
Navalni e o ‘vírus da liberdade’
O Estado de S. Paulo
O Ocidente precisa retribuir a coragem dos dissidentes russos integrando-os à sua segurança
No sábado foi enterrada em Moscou a melhor
esperança de uma ressurreição da liberdade na Rússia. Mas, parafraseando o que
sobre a Igreja disse Tertuliano, o apologeta das primeiras comunidades cristãs,
o sangue dos mártires é a semente da democracia. Mesmo sob a mira do Estado
policial de Vladimir Putin, milhares de russos compareceram ao funeral do
ativista Alexei Navalni na igreja Alivie Minhas Dores, cantando refrões como
“Não à guerra” e “Putin assassino”, no maior desafio ao regime desde os protestos
após a invasão da Ucrânia, em 2022. Após a morte de Navalni, pelo menos 450
pessoas foram detidas. Essa prova de coragem é o maior tributo a Navalni e
também seu maior legado.
A morte de Navalni numa prisão no Ártico
prova o quanto Putin teme essa coragem. Mas as sementes legadas por Navalni
precisam ser cultivadas. “(Putin) se sente confiante de que não haverá
repercussões”, disse o ativista Garry Kasparov. “Se provarem que ele está
certo, sua confiança assassina aumentará.” Em 2021, o presidente americano, Joe
Biden, prometeu consequências “devastadoras” se algo acontecesse com Navalni.
“Se o sr. Biden e o restante do mundo livre quiserem dar esse golpe
‘devastador’”, disse Kasparov, “só precisam fornecer às mãos ucranianas as
armas que elas precisam para desferi-lo.”
O Ocidente precisa assumir que a repressão na
Rússia e a agressão à Ucrânia são parte da mesma guerra. “No meu tempo”,
advertiu em artigo na Economist Natan Sharanski, que sobreviveu a 9 anos num
gulag soviético, “políticos ocidentais compreendiam a escala da luta histórica
e viam o destino dos prisioneiros políticos soviéticos como parte de sua
própria segurança. Hoje não compreendem. E este é um erro de proporções
históricas.”
Dissidentes catalisam a deterioração de
regimes podres e por isso são aliados cruciais do mundo livre. Como disse
Navalni em uma carta a Sharanski, eles são um “vírus da liberdade”. Sharanski
lembrou o quão importante foi a política ocidental em três compartimentos nas
relações com o Império Soviético: segurança, comércio e direitos humanos. Os
soviéticos acreditaram poder tratar o último com palavras vazias. Mas “foi o
elo entre o terceiro compartimento e os outros dois que levaram à morte do
regime”. Para ele, é essencial que o Ocidente retome essa política: “O seu
confronto com o regime de Vladimir Putin deveria consistir em fortalecer a
dissuasão militar nas fronteiras com a Rússia, aumentar o apoio à Ucrânia e
desenvolver uma política em relação aos dissidentes na própria Rússia”.
Esses dissidentes precisam ser considerados
como prisioneiros da guerra de Putin. Isso significa condicionar, nos termos
mais duros possíveis, a troca de espiões russos e as relações com a Rússia à
sua libertação.
Por muito tempo Putin se acostumou a sorrir a cada manifestação de “grave preocupação” dos líderes ocidentais com as atrocidades cometidas por ele. Mas Navalni mostrou que esse tempo precisa ser sepultado. “Navalni foi um homem de coragem e ação”, disse Kasparov, “e somente coragem e ação podem honrá-lo agora.
Pela equidade, menos machismo e mais educação
Correio Braziliense
Na Alta Corte, a realidade é notória. Ao
longo dos seus 133 anos, só três mulheres chegaram ao cargo de ministra — Ellen
Gracie, Cármen Lúcia e Rosa Weber
A Constituição de 1988, resultado de um amplo
pacto social, estabeleceu que todos são iguais perante à lei, não cabendo
nenhum tipo de discriminação por raça, cor, etnia e gênero. Portanto, as
oportunidades deveriam ser equânimes em todos os setores públicos ou privados.
Mas a determinação da Carta Magna nem sempre foi obedecida tanto em relação à
raça,cor e gênero, até mesmo pelo Judiciário. Nesse espaço, 40% dos juízes
brasileiros são mulheres, mas só 25% são desembargadoras, e 18%, ministras. Homens
brancos detêm a maioria dos cargos.
Na Alta Corte, a realidade é notória. Ao
longo dos seus 133 anos, só três mulheres chegaram ao cargo de ministra — Ellen
Gracie, Cármen Lúcia e Rosa Weber. A pressão para que outra mulher substituísse
a ministra Rosa Weber, aposentada no ano passado, não surtiu efeito. O
presidente Luiz Inácio Lula da Silva escolheu o então ministro da Justiça
Flávio Dino para o cargo. A atual composição do STF tem 10 homens e uma mulher,
a ministra Cármen Lúcia.
Às discussões sobre paridade nas instâncias
do Judiciário seguem acesas. Ante a proximidade do 8 de Março — Dia
Internacional da Mulher —, cresce a expectativa do Movimento pela Paridade no
Poder Judiciário de que o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos
Territórios (TJDFT) indique mulheres para as vagas abertas. Nenhuma mulher
chegou a presidir a Corte. Entre os 47 desembargadores, 12 são mulheres. Em
Minas Gerais, a paridade de gênero também está distante. As mulheres somam 33%
no Tribunal de Justiça, 9% na Justiça Militar; 33% na Justiça Eleitoral e só
23% nos tribunais superiores. Realidades semelhantes estão reproduzidas na
maioria dos estados.
Quando presidiu o STF e esteve à frente do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a ministra Cármen Lúcia, criticou a
desequilíbrio de gênero e de raça a composição do Judiciário. Ela reconheceu a
ausência e de juízes e juízas negras nos tribunais brasileiros. A então
ministra Rosa Weber marcou sua despedida do CNJ e do STF defendendo maior
presença feminina nas camadas superior da Justiça. Não foram poucas as mulheres
advogadas ou integrantes do Judiciário que foram reconhecidas pelos colegas
como merecedoras de ocupar elevados cargos na Justiça. Mas, por motivos
inexplicáveis, foram preteridas no processo de escolha às vagas em aberto.l
Até agora, o Judiciário, nas suas mais
diversas instâncias, não conseguiu avançar o suficiente para se tornar exemplo
às demais instâncias de Poder, sobretudo ao Legislativo. A legislação eleitoral
impõe cotas raciais, étnicas e de gênero. Ao fim das eleições, fica patente que
a maioria das legendas partidárias não cumpriu as normas estabelecidas pela
Justiça Eleitoral. As mulheres são minorias nas bancadas da Câmara e do Senado.
O mesmo ocorre nas capitais, nas grandes e pequenas cidades. Em resumo, ainda há
uma longo caminho para que a equidade e paridade estabelecidas pela
Constituição sejam respeitadas. Que o Estado, por meio dos poderes centrais,
seja exemplo para o restante do país.
Esse filtro por gênero e raça. identificado
no Judiciário, éo mesmo adotado por outros setores do país. Cotas racia,
sociais e tantos mecanismos para a construção de uma sociedade com mais
igualdade e menos discriminação permanece como desafio a ser vencido no Brasil.
As mulheres, mesmo conscientes de seus direitos, enfrentam obstáculos. O
corporativismo masculino, em vários momentos, é barreira quase instransponível.
Ainda que não prevaleça velho adágio:
“Atrás de um grande homem, há sempre uma grande mulher”. Hoje, ao lado, ou à
frente, de um grande homem há uma grande mulher. Para isso, seja real é
preciso mais educação, menos machismo e regras afinadas com a Lei Maior.
Nenhum comentário:
Postar um comentário