Valor Econômico
Governo federal que proclama “mais livros”
deve ser mais atuante
Na sexta-feira (1), veio a público a censura
ao livro “O avesso da pele”, de Jeferson Tenório, por ato da 6ª Coordenadoria
Regional de Educação do Rio Grande do Sul, que mandou recolher exemplares da
obra das escolas de Santa Cruz do Sul. Foi uma resposta à reclamação da
diretora de uma escola estadual de ensino médio do vocabulário de “tão baixo
nível” do livro.
Publicado pela Companhia das Letras, o
romance debate o racismo estrutural na sociedade brasileira por meio da
história de Pedro, que teve o pai assassinado em uma abordagem policial.
O protesto da diretora surpreendeu por envolver uma obra aclamada pela crítica e leitores. Venceu o Prêmio Jabuti (um dos mais prestigiados) em 2021, foi traduzida para mais de dez países, inclusive Estados Unidos, China e França, e foi incluída no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) do Ministério da Educação (MEC).
Após a repercussão negativa, a Secretaria de
Educação do Rio Grande do Sul determinou a manutenção do livro nas bibliotecas
das escolas de Santa Cruz do Sul.
O episódio é carregado de simbolismos porque
a censura é ato que remete aos governos totalitários de Getúlio Vargas e da
ditadura militar, afronta a Constituição Federal de 1988, contrasta com o
regime democrático em vigor, com um país de poucos leitores, e, especialmente,
com a palavra de ordem que marcou a campanha do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva em 2022: “mais livros, menos armas”.
A gravidade do episódio aprofunda-se porque
ocorreu três dias antes da abertura da 4ª Conferência Nacional de Cultura, em
Brasília - evento cuja edição anterior ocorreu em 2013. A conferência
inaugurada na noite dessa segunda-feira, com a presença de Lula e da ministra
da Cultura, Margareth Menezes, reúne delegados regionais que debaterão as
propostas a serem incluídas no Plano Nacional de Cultura, que definirá as ações
estratégicas do setor nos próximos anos.
O episódio da censura emerge ainda mais
alarmante ao abalar os pilares de uma indústria cultural lucrativa e respeitada
no exterior. Se a cultura dialoga diretamente com a democracia, contribui,
igualmente, em números expressivos, para o Produto Interno Bruto (PIB)
brasileiro.
No ano passado, o Observatório Itaú Cultural
divulgou o “PIB da Cultura”: o setor movimentou R$ 230,1 bilhões no ano de
2020, cifra equivalente a 3,1% do PIB nacional. O número superou, por exemplo,
a indústria automotiva, que naquele ano respondeu por 2,1% do PIB. A
metodologia desenvolvida pelo instituto baseou-se em microdados da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad/IBGE), prestações de contas da Lei
Rouanet, entre outros levantamentos. Em breve, será divulgado o “PIB da
Cultura” relativo a 2021.
Causa perplexidade que a censura à obra de
Tenório não foi um ato isolado em pleno governo que ovaciona a democracia.
“Salvamos a democracia”, discursou Lula no dia 8 de janeiro de 2024, em
solenidade que relembrou um ano da tentativa de golpe de Estado, em
investigação pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Em novembro, a Secretaria de Cultura de Santa
Catarina retirou vários livros de circulação, inclusive uma obra de Stephen
King, mestre do suspense. Um deles foi “Laranja mecânica”, de Anthony Burgess,
livro igualmente censurado no regime militar. A obra consta de uma lista da
revista “Time” dos 100 melhores romances em língua inglesa do século XX.
No ano passado, a professora Sandra Reimão,
da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo
(EACH-USP), lançou o livro “Resistência - leitores, autores, livreiros,
editores e censura a livros no Brasil de 2019 a 2022”, com os professores João
Elias Nery e Flamarion Maués.
A obra enumera fatos sucessivos na gestão do
ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) de restrição a obras literárias. Por exemplo,
em 2020, a Secretaria de Educação de Rondônia elegeu 42 títulos considerados
“conteúdos inadequados às crianças e adolescentes”. Entre eles, o clássico dos
clássicos “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis.
Em outro episódio, em 2021, a diretoria da
Fundação Palmares eliminou dezenas de títulos da biblioteca da instituição de
cultura, ligada ao governo federal. Entre eles, obras de Eric Hobsbawn (de “A
era dos extremos”), e dos historiadores Caio Prado Júnior e Nelson Werneck
Sodré.
À coluna, Sandra Reimão observou que, para
além da censura de “O avesso da pele”, causou espanto que a diretora gaúcha
tenha se incomodado mais com os palavrões do que com a “crueza de estarmos em
uma sociedade racista”. Ela vê o gesto da diretora em “um conjunto de ações
estratégicas da extrema direita para tumultuar o ambiente escolar e cultural e
marcar posição contra o governo”.
Margareth Menezes disse repudiar “qualquer
tipo de censura em relação a nossa literatura”, e que o estiver dentro do
escopo do ministério, dentro da legalidade, ela fará para combater esse tipo de
ação. “Afetar a cultura é o primeiro ato de governos com pautas extremas”,
criticou.
A postura da ministra é louvável, mas é
preocupante que a censura tenha sido revogada após pressão da sociedade civil e
recuo do governo gaúcho. Um governo federal que proclama “mais livros” deveria
ter sido mais atuante neste episódio.
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