sexta-feira, 24 de maio de 2024

José de Souza Martins - O retrato vermelho do rei

Valor Econômico

O rei não reinventa o país, é por ele reinventado como expressão da sua diversidade que permanece na tradição e se transforma na atualização da sua realidade. Na Inglaterra, a lei e a tradição submetem a pessoa

Em dias passados, no Palácio de Buckingham, o rei Charles III desvelou para um pequeno público seu primeiro retrato oficial, desde a coroação, pintado por Jonathan Yeo, que nele trabalhou durante quatro anos.

Obra de arte contemporânea, distingue-se dos retratos reais ingleses conhecidos de autores cautelosos no convencional e monumental ao mesmo tempo. Inova e espanta, como se vê nas reações populares à sua diferença em relação ao que tem sido o retrato dos reis ingleses.

Espanto porque o retrato é dominado por variantes da cor vermelha. Quando a elaboração da obra começou, Charles ainda era o príncipe de Gales e foi referência a sua túnica vermelha de quando foi ele feito coronel de regimento da Guarda Galesa, em 1975.

A faixa azul de membro da família real e condecorações na veste sucumbem, difusos, nos tons da coloração vermelha de fundo. Dele ressaem em terceira dimensão o rosto envelhecido do rei e suas mãos igualmente envelhecidas, com uma serenidade madura de quem personifica um mundo. Destacam-se como se a humanidade do soberano saísse da tela para situar sua precedência contrapontística em relação ao que é um destino e não um emprego, como disse sua mãe a um jornalista quando ainda jovem rainha.

Uma borboleta-monarca sobre seu ombro direito simboliza sua metamorfose de príncipe de Gales em rei da Inglaterra durante a elaboração da obra. É também um indício de sua pós-moderna paixão pela natureza. Artista plástico ele mesmo, uma exposição de mais de 70 de suas obras mostrou o quanto é artisticamente competente na expressão das minúcias da beleza do mundo que nos rodeia.

Jonathan Yeo inventa o rei. Trata-se do que o historiador Peter Burke, a propósito de Luís XIV, rei da França, define como a fabricação do rei.

Na Inglaterra, a fabricação do rei é um processo lento e complexo, a partir do próprio momento da constatação de que o monarca reinante está morto. É quando o príncipe de Gales se torna o novo rei. Cabe-lhe submeter-se a uma sequência extensa e complicada de ritos de reconhecimento de suas obrigações como soberano em relação aos diferentes sujeitos históricos que compõem a estrutura de poder do país e do império.

O poder é ali um conjunto politicamente negociado de personificações de direitos e não, como aqui, um conjunto de abstrações difusas, apenas juridicamente legítimas. Lá são também histórica e sociologicamente legítimas.

Charles passou semanas a participar de ritos de reiteração de compromissos de respeito pela legitimidade de diferentes tradições, expressões de diferentes conflitos e guerras que construíram o país politicamente, como um país caracterizado por significativa diversidade social, histórica e política.

 

É o que faz do rei, propriamente, uma instituição. Começa que o rei da Inglaterra é também rei da Escócia, que é outro país, outro trono, outra coroa, outra religião. Nesse sentido, ele tem duas religiões: é anglicano na Inglaterra, uma religião protestante porque não subordinada ao papa.

Ritualmente, porém, pratica a missa em tudo igual à católica, paramentos parecidos. Como convidado, assisti em Ely, Cambridge, à ordenação do segundo grupo de mulheres que na Igreja Anglicana ascenderam ao sacerdócio. Uma cerimônia igual à da ordenação dos padres católicos.

Na Escócia, porém, o rei é presbiteriano, o calvinismo para lá levado pelo escocês John Knox, auxiliar de Calvino em Genebra. Religião difundida nos EUA, lá perdeu as características republicanas e democráticas para chegar ao Brasil como expressão de uma fé autoritária e distante dos princípios genebrinos.

O conjunto de ritos relativos à fabricação do rei na Inglaterra recostura a diversidade social e histórica do país e do império. O rei não reinventa o país, é por ele reinventado como expressão da sua diversidade que permanece na tradição e se transforma na atualização da sua realidade. Lá, a lei e a tradição submetem a pessoa, aqui a pessoa submete a lei, como se viu durante o período da praticamente clandestina junta governativa bolsonariana.

A mudança do rei não anula direitos históricos da sociedade e do povo. Aqui, a mudança de um presidente pode arrastar consigo indevidas alterações na concepção do poder. Um arrastão eleitoral, como o de 2018, desfigura a concepção de mandato e o transforma em mando.

Nossa Constituição de 1988 tem tantos remendos que procuram atenuá-la para criar uma sublegislação de burla dos direitos nela originalmente garantidos, que é difícil nela reconhecer sua democracia de origem.

O retrato vermelho do rei situa-o, no entanto, não na paralisia do tempo e nos mostra que a tradição é uma forma dinâmica de inovação e diálogo político na democracia.

 

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