Valor Econômico
O rei não reinventa o país, é por ele
reinventado como expressão da sua diversidade que permanece na tradição e se
transforma na atualização da sua realidade. Na Inglaterra, a lei e a tradição
submetem a pessoa
Em dias passados, no Palácio de Buckingham, o
rei Charles III desvelou para um pequeno público seu primeiro retrato oficial,
desde a coroação, pintado por Jonathan Yeo, que nele trabalhou durante quatro
anos.
Obra de arte contemporânea, distingue-se dos
retratos reais ingleses conhecidos de autores cautelosos no convencional e
monumental ao mesmo tempo. Inova e espanta, como se vê nas reações populares à
sua diferença em relação ao que tem sido o retrato dos reis ingleses.
Espanto porque o retrato é dominado por variantes da cor vermelha. Quando a elaboração da obra começou, Charles ainda era o príncipe de Gales e foi referência a sua túnica vermelha de quando foi ele feito coronel de regimento da Guarda Galesa, em 1975.
A faixa azul de membro da família real e
condecorações na veste sucumbem, difusos, nos tons da coloração vermelha de
fundo. Dele ressaem em terceira dimensão o rosto envelhecido do rei e suas mãos
igualmente envelhecidas, com uma serenidade madura de quem personifica um
mundo. Destacam-se como se a humanidade do soberano saísse da tela para situar
sua precedência contrapontística em relação ao que é um destino e não um
emprego, como disse sua mãe a um jornalista quando ainda jovem rainha.
Uma borboleta-monarca sobre seu ombro direito
simboliza sua metamorfose de príncipe de Gales em rei da Inglaterra durante a
elaboração da obra. É também um indício de sua pós-moderna paixão pela
natureza. Artista plástico ele mesmo, uma exposição de mais de 70 de suas obras
mostrou o quanto é artisticamente competente na expressão das minúcias da
beleza do mundo que nos rodeia.
Jonathan Yeo inventa o rei. Trata-se do que o
historiador Peter Burke, a propósito de Luís XIV, rei da França, define como a
fabricação do rei.
Na Inglaterra, a fabricação do rei é um
processo lento e complexo, a partir do próprio momento da constatação de que o
monarca reinante está morto. É quando o príncipe de Gales se torna o novo rei.
Cabe-lhe submeter-se a uma sequência extensa e complicada de ritos de
reconhecimento de suas obrigações como soberano em relação aos diferentes
sujeitos históricos que compõem a estrutura de poder do país e do império.
O poder é ali um conjunto politicamente
negociado de personificações de direitos e não, como aqui, um conjunto de
abstrações difusas, apenas juridicamente legítimas. Lá são também histórica e
sociologicamente legítimas.
Charles passou semanas a participar de ritos
de reiteração de compromissos de respeito pela legitimidade de diferentes
tradições, expressões de diferentes conflitos e guerras que construíram o país
politicamente, como um país caracterizado por significativa diversidade social,
histórica e política.
É o que faz do rei, propriamente, uma
instituição. Começa que o rei da Inglaterra é também rei da Escócia, que é
outro país, outro trono, outra coroa, outra religião. Nesse sentido, ele tem
duas religiões: é anglicano na Inglaterra, uma religião protestante porque não
subordinada ao papa.
Ritualmente, porém, pratica a missa em tudo
igual à católica, paramentos parecidos. Como convidado, assisti em Ely,
Cambridge, à ordenação do segundo grupo de mulheres que na Igreja Anglicana
ascenderam ao sacerdócio. Uma cerimônia igual à da ordenação dos padres
católicos.
Na Escócia, porém, o rei é presbiteriano, o
calvinismo para lá levado pelo escocês John Knox, auxiliar de Calvino em
Genebra. Religião difundida nos EUA, lá perdeu as características republicanas
e democráticas para chegar ao Brasil como expressão de uma fé autoritária e
distante dos princípios genebrinos.
O conjunto de ritos relativos à fabricação do
rei na Inglaterra recostura a diversidade social e histórica do país e do
império. O rei não reinventa o país, é por ele reinventado como expressão da
sua diversidade que permanece na tradição e se transforma na atualização da sua
realidade. Lá, a lei e a tradição submetem a pessoa, aqui a pessoa submete a
lei, como se viu durante o período da praticamente clandestina junta
governativa bolsonariana.
A mudança do rei não anula direitos
históricos da sociedade e do povo. Aqui, a mudança de um presidente pode
arrastar consigo indevidas alterações na concepção do poder. Um arrastão
eleitoral, como o de 2018, desfigura a concepção de mandato e o transforma em
mando.
Nossa Constituição de 1988 tem tantos
remendos que procuram atenuá-la para criar uma sublegislação de burla dos
direitos nela originalmente garantidos, que é difícil nela reconhecer sua
democracia de origem.
O retrato vermelho do rei situa-o, no
entanto, não na paralisia do tempo e nos mostra que a tradição é uma forma
dinâmica de inovação e diálogo político na democracia.
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