Valor Econômico
Silvio Santos personificou e disfarçou o
atraso do nosso capitalismo inconcluso
A morte do empresário e comunicador Silvio
Santos tem tido a previsível repercussão que deve ter o desaparecimento de uma
pessoa com extraordinária influência na alteração de costumes mercantis. De
certo modo, ele foi o criador de uma versão da pós-modernidade brasileira.
Desmercantilizou a mercadoria, separou-a das
relações de compra e venda, situou-a no terreno antimercantil da incerteza, da
sorte e mesmo do acaso. Sobretudo o de um imaginário de festa.
Despiu-a da fria racionalidade própria do mercado para dotá-la de uma racionalidade tropical e calorosa, numa sociedade em que o dinheiro e a mercadoria, historicamente, são excepcionais, usados como se destituídos de seus atributos próprios, mesmo na vida cotidiana como se cotidianos não fossem. Silvio Santos chegou a isso de maneira meramente intuitiva.
Fez do comprador um cúmplice, em vez de mero
freguês, aliciado através de recursos próprios da televisão, em que é reduzido
à condição de coadjuvante das relações de compra e venda, espectador e ator de
um enredo de teatro e não de mercado.
Seus programas domingueiros tinham muito de
um encontro de feira livre, dominado pela performance teatral do camelô, que
reveste a mercadoria de características de um imaginário complexo. O que
mobiliza o comprador, muito mais do que é próprio do ato da compra e da venda.
Uma obra fascinante de artimanhas para
incluir multidões no mercado de consumo. Uma forma peculiar de inclusão social
fantasiosa do comprador realmente excluído pelas insuficiências da sua relação
com a mercadoria e o dinheiro. Em particular pela protelação e a demora em
fazer do pagador o dono do bem comprado. Em vez de pagar as prestações depois
da obtenção do que foi comprado, pagá-las antes de tê-las, usá-las ou
consumi-las, como se fosse um investimento.
Silvio Santos recalibrou o capitalismo
mercantil do varejo, ajustou-o às limitações de um país atrasado, cujo modelo
de economia possível é dominado por insuficiências. Ele conseguiu transformar
em grande negócio a economia do pequeno negócio.
Há cerca de 50 anos, presenciei quase na
esquina da rua Nova Barão com a Barão de Itapetininga, em São Paulo, um
encontro casual de Silvio Santos com uma espectadora de seus programas. No meio
da multidão, uma mulher de meia-idade exclamou bem alto, falando com ninguém:
“Olha o Silvio!”. E foi na direção dele para cumprimentá-lo, como se fosse
velho conhecido. Ele reagiu como ator bajulado por admiradora. Nem frio nem
empolgado, cortesmente, de maneira a não estimular nela nem a confirmação da
proximidade nem a desilusão da distância.
São poucas as sociedades que dispõem de personagens capazes de semelhante proeza. Porque o fenômeno Silvio Santos só é possível em sociedades economicamente atrasadas. Ele personificou e disfarçou o atraso do nosso capitalismo inconcluso.
Ocorre com Silvio Santos a mesma coisa que
ocorreu com Francesco Matarazzo, imigrante vindo para o Brasil nos finais do
século XIX, que aqui se tornaria um dos nossos maiores empresários industriais.
Benito Mussolini comia na sua mão, a quem fizera generosas doações pessoais,
sem contar suas contribuições financeiras para o movimento fascista. Foi o que
lhe valeu o título de conde.
Nos anos 1930, poucos anos antes de sua
morte, já circulava sua biografia pronta e acabada, que remontava à história de
sua família aos tempos de Carlos Magno. O mesmo está acontecendo nestes dias
com a biografia de Silvio Santos.
Quem morreu não foi o camelô de
extraordinário sucesso, mas o descendente de um judeu rico, Abravanel, do fim
da Idade Média. O milionário do passado é a esponja que remove da biografia do
falecido de agora a mácula de alguém que se fez pelo trabalho duro como
comerciante tosco e esperto.
Esse é o lado fascinante da história pessoal
de muitos novos ricos no Brasil. Expressão de um capitalismo de desenvolvimento
anômalo e lento, muito distante do capitalismo propriamente dito.
Já não é o camelô vulgar das ruas de São
Paulo, que comprava quinquilharias baratas para vender um pouco mais caras,
obrigado a artimanhas para escapar da polícia pelo comércio ilegal. Na época,
morador no porão da Pensão Maria Teresa, da família Fiora, no que é hoje um
belo casarão de um sindicato na avenida Duque de Caxias.
O camelô era uma combinação estranha e muito
popular de pequeno comerciante, artista de circo e trapaceiro, que mais vendia
ilusões do que objetos. Precisava enganar para vender.
Silvio Santos foi ator de uma versão brasileira do que clássicos dos estudos econômicos chamavam, no século XIX, de fetichismo da mercadoria. O dinheiro e a mercadoria despojados do pecado original da cobiça e da acumulação.
Um comentário:
" Um dia o Brasil chegará ao capitalismo. "
Ruy Castro, na Folha.
Ótima coluna.
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