O Globo
Naturalização da tarifa zero é realidade na
campanha eleitoral ora em curso
Se anos atrás alguém do futuro aparecesse
para contar que, em pleno 2024, os prefeitáveis do Rio de
Janeiro debateriam — à esquerda e à direita — tarifa zero no
transporte público e sistema de ônibus estatizado, gargalharíamos. Pois a
naturalização do tema é realidade na campanha eleitoral ora em curso. A troca
de ideias, de tão civilizada, dá a impressão de que a vida carioca foi
inoculada pelo (bem-vindo) vírus do Estado de Bem-Estar Social. Assim seja.
Nesta semana, a GloboNews entrevistou, no Rio, os três candidatos com as maiores intenções de voto da última pesquisa Datafolha. Passaram pelas sabatinas os deputados Tarcísio Mota (PSOL), Alexandre Ramagem (PL) e o prefeito Eduardo Paes (PSD), que pleiteia o quarto mandato. Todos eles apresentaram programas de governo em que o setor público é protagonista na mobilidade urbana; a tarifa zero, discutida; e a empresa pública Mobi-Rio, resultante da encampação por Paes do sistema de BRTs, bem-vista.
Não é comportamento trivial na segunda maior
metrópole brasileira. Em 1985, quando o então governador Leonel Brizola (PDT)
encampou 16 empresas de ônibus que circulavam na capital e em municípios da
Região Metropolitana, o mundo quase veio abaixo. O estado passara a controlar
um quarto do sistema de transporte coletivo. A medida, ainda que apoiada por
alguns prefeitos e muitos usuários, durou três anos. Sucumbiu, segundo
especialistas da época, ao inchaço da máquina pública e à depreciação da frota.
No Rio, o transporte sempre esteve entre as
prioridades de uma população — e de um eleitorado — sempre obrigada a vencer
grandes distâncias para acessar, além do trabalho, educação, cultura, lazer e
até unidades de saúde. A cidade integra o nada digno rol das capitais em que os
trabalhadores mais perdem tempo no deslocamento até o emprego.
As travessias são longas; o serviço,
ineficiente; o preço, alto. Na Região Metropolitana do Rio, o grupo Transporte
é o segundo de maior peso na inflação. São despesas que consomem 19,61% do
orçamento doméstico, atrás somente da alimentação (20,87%). A fatia que vai
para o transporte público (4,76%) é a maior entre as 16 áreas pesquisadas
pelo IBGE.
Na média nacional, consome 2,87% dos gastos.
Houve tempo de revolta popular. Em junho de
1987, um juiz da 2ª Vara da Fazenda Pública autorizou reajuste de 49% nas
passagens de ônibus, numa terça-feira, no horário de volta do trabalho. A
tarifa-padrão passaria de 4,80 para 7,20 cruzados, a moeda da época. O Centro
da cidade virou praça de guerra, 60 ônibus foram incendiados, e 50 pessoas
ficaram feridas. O juiz revogou a autorização, e nunca mais as passagens
subiram no meio da semana, somente aos sábados.
Em junho de 2013, ruas de São Paulo e do Rio
foram tomadas por manifestantes do Movimento Passe Livre em protesto contra o
aumento de R$ 0,20 nas passagens. Os prefeitos de então, Fernando
Haddad e Eduardo Paes, respectivamente, foram obrigados a rever
o reajuste. Os protestos multiplicaram-se país afora, incorporaram outras
agendas e grupos ideológicos e anabolizaram a impopularidade que culminou com o
impeachment da presidente Dilma Rousseff, três anos depois.
Pode ter ocorrido ali a mudança de paradigma
ora caracterizado pela naturalização das políticas de mobilidade sob controle
do Estado. Henrique Silveira, geógrafo e especialista em estudos
metropolitanos, vê a crise do sistema durante a pandemia da Covida-19 como
fator determinante:
— Também me surpreendo com quanto esse tema
entrou na paisagem política, está na mesa. O primeiro elemento foi a crise do
sistema na pandemia. A fragilidade do setor privado ficou exposta, o setor
público foi obrigado a entrar na equação. Além disso, é crescente o número de
cidades com tarifa zero. A solução foi implementada; e com sucesso. Além disso,
a mobilização da sociedade civil é permanente. Permitiu, inclusive, a
gratuidade em dia de eleição.
O Brasil tem atualmente 106 cidades com
tarifa zero universal, entre elas Maricá, Guapimirim, Casimiro de Abreu, São
João da Barra, Paracambi, São Fidélis, Tanguá, Silva Jardim, Conceição de
Macabu, Cantagalo, Carmo, Comendador Levy Gasparian, São Sebastião do Alto,
todas no Estado do Rio. A gratuidade plena ou parcial vigora em 135 municípios
no país, incluindo São Paulo
(SP), aos domingos, a um custo de R$ 300 milhões anuais à
Prefeitura. Em 365 cidades, há algum tipo de subsídio ao transporte coletivo.
Até a Covid-19, eram dez, segundo a Associação Nacional das Empresas de
Transportes Urbanos.
Nas sabatinas GloboNews, Tarcísio Mota
incluiu tarifa zero no programa de governo, a começar pelos domingos, chegando
às sextas e aos sábados. Paes não se compromete com a gratuidade, mas não fala
em transferir à iniciativa privada o sistema de BRTs, que encampou no atual
mandato. Sob gestão da Mobi-Rio, o número de ônibus articulados saiu de 120
para 533; o total de passageiros, de 100 mil para 467 mil, em junho passado.
Ramagem promete gradualmente trocar os ônibus por veículos sobre trilhos. Todos
defendem a integração dos ônibus, atribuição municipal, com trens e metrô,
regulados pelo governo do estado. Henrique Silveira lembra que, sem integração
tarifária e subsídio do sistema metropolitano, a gratuidade na capital
inviabilizaria os outros meios. Segue o debate.
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