Até onde sei, o autor - que não conheço e de quem, por negligência minha, não li mais nada, além do texto citado - é professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, assim como Rubem Barboza Filho, este, um interlocutor e amigo, autor do livro “Tradição e artifício: iberismo e barroco na formação americana”, obra preciosa, publicada em 2000, pela Editora da UFMG, leitura imprescindível para quem pesquisa ou busca ter uma compreensão sobre a formação social brasileira e da Ibero-América, notadamente em suas dimensões política e cultural. A alusão a Rubem Barboza Filho é imperativa ao evocar o texto de Magalhães porque parte importante deste é controvérsia respeitosa e qualificada com outro precioso texto daquele autor, publicado no ano anterior (Barboza Filho, R. “A modernização brasileira e o nosso pensamento político” - Perspectivas, São Paulo, v. 37, p. 15-64, jan./jun. 2010).
Enquanto
Barboza formulava uma crítica aguda ao que terá sido a supressão da tradicional
linguagem dos afetos no pensamento construtor da nossa ordem institucional e da
nossa vida social e política, em prol de um uso excludente das linguagens
modernizantes da razão e do interesse (omissão essa que teria consequências historicamente
inibidoras da amplitude social e republicana da democracia futura), Magalhães enxergava
na modalidade de pensamento orientadora da formação política do país, desde
seus primeiros momentos, premissas republicanas de incidência histórica
distinta, senão oposta. Seriam o fio condutor que terminaria avalizando a
qualidade positiva da democracia da Carta de 1988.
É
preciso dar o devido desconto ao fato de que, em 2011, quando o texto foi
escrito, a visão benigna sobre a qualidade da nossa democracia e um razoável
otimismo sobre seu futuro ainda eram consensos amplos, mesmo não havendo
consenso geral. A percepção justificava-se pela participação eleitoral massiva,
pela representatividade auferida num sistema político aberto e competitivo, pela
dinâmica independente da imprensa e das instituições de controle sistêmico da
política. Suas mazelas e os riscos à
governabilidade não podiam ser facilmente detectados e quando o eram (casos
conspícuos da corrupção no Executivo e da fragmentação e patrimonialismo no
Legislativo) não iam além de impressões naturalizadas pelo grande público, para
o qual ainda contava mais o efeito socialmente progressivo de várias políticas
públicas. Algumas das mazelas eram invisíveis, outras se insinuavam, ou já eram
evidentes, mas a percepção de sua extensão, intensidade e profundidade só viria
mais adiante (e aqui 2013 é, sem dúvida, um marco), até porque, com a
emergência de uma conjuntura crítica, as mazelas seriam aprofundadas e exacerbadas
por vários atores políticos, recalcitrantes ou perplexos, mas unidos na negação
das evidências até quando o seu escancaramento converteu essa cumplicidade
morna num vale-tudo e daí num salve-se-quem-puder.
A
emergência desse longo momento de infortúnio (a teia na qual estamos enredados
há mais de uma década) pode ter desmentido o otimismo de Magalhães para com o presente
de 2011, mas não sua arguta percepção do passado em que surgimos como estado e
nação. Se seguirmos o fio do argumento veremos que mazelas atuais não são uma
mera - e muito menos óbvia – decorrência de uma "herança maldita" que
nos manteria atados a males a tratar e a injustiças a reparar. Elas (as
mazelas) têm muito a ver com imprudência e descuido para com um legado republicano
talvez incipiente, mas promissor, em suas ambiguidades. O texto ajuda a não
culpar a má fortuna ou os pecados do passado pelos impasses de um pensamento
enviesado, que naquele só enxerga iniquidades. A tradição conciliadora brasileira
nasceu monárquica na forma política, mas processualmente liberal, mesmo quando
politicamente conservadora. E republicana na atitude que faz do bem comum um
imperativo legitimador mesmo quando a reiteração oligárquica ameaça esse
imperativo com sua redução à retórica. A resultante desse jogo de ambiguidades
- cuja anatomia dialética, para além das pautas de cada época, Joaquim Nabuco
já percebera lá atrás – não pode ser conhecida de antemão porque é de processos
que se trata e não de essências. E processos cada vez mais sujeitos a uma
crescente incorporação democrática da sociedade – seja a sociedade civil, seja
o eleitorado informe – à política do país. A incorporação, por sua vez, rejeita
marcações ideológicas perenes. Ora “progressistas”, ora “conservadoras” essas
ondas são vinho novo. Em qualquer dos casos cumpre cuidar dos odres, para que o
envelhecimento não o inutilize.
Mas há, ao mesmo tempo, a necessidade de não negar, nem subestimar, alterações de monta nessa tradição ciosa de si e também aberta à inovação e nos equilíbrios instáveis entre suas ambiguidades. São tempos de relevantes mudanças estruturais, em que a tecnologia várias vezes opera revoluções que, no passado nem tão longínquo, se via como missão do que Michael Oakeshott chamou “política da fé”. E são tempos de fortes pretensões por rupturas, por parte desses insaciáveis apetites de movimento que ficaram viúvos daquela febre de revolução. Mesmo não produzindo as rupturas que desejam, esses apetites promovem descentramentos. Fios estão a descoberto por toda parte e nesse ponto, é claro, não é possível falar apenas, nem principalmente, do Brasil. A tantas vezes denunciada hiperpolarização - política e ideológica, ou “cultural” – eletrifica e perfura o chão moderado da “política do ceticismo”, a outra banda da terra da política moderna tal como vista pelo já citado Oakeshott. Sem esse chão institucional tudo parece correr para se tornar apenas movimento oceânico. Com que barco faremos o resgate para viajar a algum porto? Sem o casco da embarcação não haverá timoneiro que nos leve a algum lugar, porque em alto mar, sem um barco, ele será um a mais tentando salvar a si próprio.
Diagnósticos
correntes e suas implicações
É
um equívoco ver esses perigos como fatos consumados. Tendem a ser mesmo, se
forem encarados somente com a ética da luta. Ela é uma ética cega para o papel
crucial dos isentos e dos indecisos em contextos críticos. Eles tenderão sempre
a acompanhar aqueles que ganham terreno e se apresentam como os virtuais
vencedores. Como a incerteza sobre esse
resultado é a regra, não é possível “ganhá-los” previamente. A comunicação não
tem como substituir a política e o saber prático da política numa democracia
como a brasileira ensina é que os isentos devem guiar, em vez de serem
guiados. Essa foi a mais dura das lições
que a esquerda brasileira precisaria ter tirado da agonia pública de Dilma
Rousseff.
Assim,
uma política de conciliação não é entre nós uma opção tática, mas uma atitude
política de quem não admite morrer de véspera, seja como vítima, ou como herói.
A busca da conciliação é uma política permanente, para quem não vê chances de boa
política através do confronto e entende a política como meio de solução
pacífica de conflitos e não como uma substituta "funcional" da
guerra.
Os
parceiros possíveis de uma política assim variam sempre, em quantidade e
qualidade, a depender das conjunturas. Mas a força progressista, republicana e
democrática é a primeira interessada nela, esse é o seu interesse "bem
compreendido". Sua autonomia política reside precisamente na capacidade de
sustentar essa atitude sem se deixar pautar pela estratégia do oponente que é,
notadamente, neste momento, a extrema-direita mundial. Não se pode prever o
resultado de cada processo, nem o grau de radicalidade do conflito. O principal
é não permitir resignadamente (muito menos interessadamente) que o oponente
dite os termos do debate e determine o campo e as armas dos embates.
O
"compromisso histórico" dos comunistas reformistas italianos tinha
esse sentido. Foi mantido nos piores momentos da guerra fria. A glasnost
de Gorbachev fazia sentido em si e não dependia do êxito ou do fracasso da perestroika.
A política de Mandela para enfrentar o apartheid foi da mesma estirpe e
a elite racista daquele regime, com a qual ele conciliou, não tinha traços de
interlocutor civilizado.
Ademais,
a conciliação não é apenas uma tradição política do Império e dos momentos
liberais de nossa República. Como a corroborar o argumento de Raul Magalhães, a
democracia brasileira da Carta de 88 é um regime cujo princípio motor é a
celebração de consensos. Ela para de funcionar ou, no mínimo, sofre grandes
abalos, se se tenta impor-lhe a lógica majoritária do "quem ganha leva
tudo". O princípio que a anima é o do compartilhamento do poder. E que
fique claro que se trata de compartilhamento de poder decisório e não apenas de
cargos e de outras prebendas.
Sei
que é inócuo esperar do PT ou de Lula esse tipo de compreensão. Mas não se pode
descuidar da necessidade democrática de que surja e se firme - no Brasil e em
todo lugar - outro tipo de esquerda. Não temos ideia do tempo que isso leva e é
muito provável que gente da minha idade não o testemunhe. O momento de os
atuais idosos fazerem isso passou e não haverá chance de revisão pelas nossas
mãos. Essa constatação não torna razoável o desejo de fazer nossas ilusões
perdidas brotarem diretamente da dureza estéril das pedras que passamos a
carregar nas costas para evitar coisa pior.
A
perspectiva, no entanto, será vital para as novas gerações buscarem o que foi
deixado pela metade. Construiu-se a democracia, mas não uma esquerda política
comprometida com a sua qualidade. Fazer isso a médio prazo, passado o tempo de
vida política do Lula atual – esse que, entre vários caminhos possíveis, está infelizmente
se consumando e consumindo no populista emulador do anacrônico na tradição da
esquerda – só será possível se o lulismo não for um legado hegemônico sobre a
esquerda brasileira. Esse seria (e em parte tem sido) a antessala, não o
contraponto, do populismo obscurantista através do qual o extremismo de direita
pode acessar o poder do estado e a direção moral da sociedade.
Opções
de conduta
Apesar
de tudo isso, se Lula resolver compartilhar, de fato, o poder decisório do
Executivo com aliados como o MDB e o PSD e ajustar seu discurso para a
sociedade na direção da conciliação com percepções e visões de mundo que nela
se firmam - buscando a imagem de governo de coalizão partidária e não de
“governo em disputa”, há chance do centro democrático que o apoiou e ainda
vacila em romper com ele ter caminho de volta na marcha batida em que se acha
para se tornar satélite da centro-direita em 2026. A conjuntura eleitoral pode
ganhar autonomia em relação aos entraves e desafios mais perenes da esquerda e
no limite até contribuir para acelerar a busca de alguma solução para eles.
Abandonar
o discurso populista já seria um caminho para evitar a sangria no ânimo da
aliança. Ele fomenta um crescente mau humor contra o governo até em setores
políticos e sociais simpatizantes. O tom, retoricamente patético e
politicamente esotérico, de oradores governistas em eventos como o recentemente
ocorrido no Amapá é sintoma de desorientação. O clima de exasperação não chega
a equivaler ao do barco à deriva dos últimos meses de Dilma. Mas Lula já está
sangrando em público.
À
desorientação doméstica, sem calma e sem horizontes e à insatisfação de aliados
ao centro soma-se a agressividade da oposição. Coloco os fatores nessa ordem
porque, por mais que essa agressividade seja um fato, ela seria impotente se
não fosse o incentivo recebido dos outros dois aqui mencionados. Caso um ou
ambos os fatores sejam mantidos, a direita reunida tende a colonizar o centro
político e a fazer a extrema-direita entrar no seu campo de gravitação, sem
prejuízo de uma radicalização que acenda o ânimo da sua bolha. No mundo real,
importa pouco a ordem dos fatores adotada numa análise. A sua combinação já
mostra desdobramento no humor do eleitorado. A pauta populista não está sendo
capaz de deter uma erosão mais acelerada da aprovação do governo, que bateu o
patamar inédito, para governos Lula, de apenas 24% de bom e ótimo,
aproximando-se mais do patamar do governo Dilma em 2015. Dá tempo de reverter?
Não sei. Mas o Poder Executivo, mesmo nas atuais condições institucionais que o
obrigam a compartilhar poder, ainda tem razões que nenhuma razão pragmática
desconhece.
E
aqui há um ponto relevante que de há muito esta coluna ressalta. O Congresso
não é uma “força da natureza”, nem um artefato dos demônios. Foi eleito pelo
mesmo povo que elegeu Lula. Tem tanta legitimidade democrática quanto o
presidente. E sua composição (por mais incremental que forçosamente seja
qualquer mudança) é assunto estrategicamente tão relevante para o governo do país
quanto a eleição presidencial. O dito centro democrático – que vive contente
com altas votações para o Legislativo, as quais só lhe rendem influência coadjuvante
no Congresso e no governo - e a esquerda oficial, que não consegue mais se
conectar com o eleitorado, precisam de reciclagem já, para se atualizarem sobre
o caráter agora realmente bidimensional (Executivo e Legislativo) do governo do
país, que passa por reforma relevante da longeva tradição de atuar sob
distintas modalidades de proeminência do Executivo. Já a direita não tem por que mudar, enquanto
estiver ganhando na competição sistêmica um poder de governar efetivo, tão somente
em razão da maioria legislativa que detém. Ela tem sido hegemônica no
Legislativo em grau acima daquele que seu peso numérico impõe, graças à
fragilidade de um governo vítima da nostalgia do seu chefe e da inclinação
hegemonista de um partido empoderado artificialmente, agindo sem interlocução
de qualidade com a sociedade civil e de costas para a realidade política que
mostra uma força cadente da esquerda junto ao eleitorado.
Já a aposta populista é contrato com a
ingovernabilidade, uma fuga para a frente que só poderá fazer algum sentido, para
Lula, se for para mantê-lo competitivo num cenário em que a direita abra mão do
espaço ao centro que vem ampliando e caia de novo nos braços de Bolsonaro, caso
ele recupere a elegibilidade. Mas tudo ficará mais arriscado se, além do
populismo permanecer, dobrar-se a aposta na polarização ideológica com a
extrema-direita. A conduta do STF no caso do intento de se revisar a lei da
anistia pode cutucar os militares, alimentar paixões disruptivas dos grupos de extrema-direita,
podendo alimentar, simetricamente, em áreas governistas mais radicalizadas e em
setores ativistas da sociedade civil, a esperança desarrazoada de que,
reinstalada a sensação de perigo, será possível tentar reunir, de novo, para a
reeleição do presidente, a frente que ora começa a se esgarçar e lhe escorrer
pelos dedos.
E agora?
A pergunta mais pertinente é como antecipar-se
a um eventual recrudescimento da hiperpolarização, resgatando o que há de melhor
na nossa tradição política. É o caso de explorar a dignidade política da
experiência republicanista primordial para extubar, plenamente, a democracia
atual, depois da sua distensão pelas urnas, em 2022. Melhor caminho que voltar
a viajar na maionese da hiperpolarização, cujo rumo é ditado pelos cálculos
mais extremos e na qual a esquerda pode, no máximo, emular - retoricamente,
envergonhadamente e invejosamente - a coragem disruptiva do oponente, enquanto faz,
para sobreviver como facção sistêmica da elite política, o jogo da pequena
política populista.
Esse último cenário ainda pode ser evitado por
uma política governamental mais sintonizada com a maioria eleitoral e
conciliada com a maioria parlamentar, bem como por uma conduta da liderança
legislativa menos fisiológica e mais comprometida com a solução do problema
fiscal do Estado.
O realismo manda indicar e, ao mesmo tempo,
duvidar dessa guinada virtuosa, especialmente em caso de recuperação da
elegibilidade de Bolsonaro, ao lado da confirmação da candidatura de Lula à
reeleição. Mantidas as dificuldades atuais do governo e elevadas as condições de temperatura e pressão
intrínsecas a esse embate exaustivamente fulanizado, uma possível inversão do
resultado de 2022, após uma campanha governista recheada de apelos cívicos agonísticos,
não será necessariamente o canto do cisne da democracia, mas um largo passo
atrás, pela postura imperial de um extremista que retornaria ao poder provavelmente
com nova estratégia para dobrar o Congresso, já num contexto internacional tensionado
pela reassunção de Trump. A remodelagem da democracia brasileira pela
introdução de um viés majoritarista e plebiscitário seria uma interdição - mais
radical que a ocorrida entre 2019 e 2022 - da sua conexão respiratória com os fundamentos
conciliadores da nossa república, vigentes na infância e adolescência do estado
nacional e retomados pela Constituição liberal de 1946 e em patamar
liberal-democrático mais avançado, pela de 1988.
Nessa hipótese mais pessimista restaria, então,
mais uma vez, o STF? Deveremos tomar noção precisa dos riscos, para a confiança
pública na democracia, de sua reentubação por uma quase guardiania judiciária após
o eleitorado fazer uma opção pela direita mais radical, que inclua a extremista.
Dispensar a política nunca é uma boa solução. Espera-se que democratas mobilizem
forças e instrumentos políticos agregadores para persuadir os eleitores. A
inquietude que paira provém de não se estar enxergando esse movimento, nem no
governo, nem num centro democrático independente.
*Cientista político e professor da UFBa
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