Maria Inês Nassif
DEU NO VALOR ECONÔMICO
O governo Lula há seis anos sobrevive a tormentas nadando em mar tranqüilo. Embora a imagem possa parecer estranha, é a que mais expressa um período histórico em que as crises políticas rodopiam pela superestrutura da sociedade sem contaminar a base social do governo; e a bonança econômica não apenas mantém a base social como impermeabiliza o mercado financeiro, que desde o início do governo Lula não se deixa levar pelas ondas de pânico engendradas no meio político-institucional, nem as alimenta. Por certo, esse período histórico terá que ser estudado a fundo no futuro, pela interessante soma de fatores exógenos e das escolhas feitas pelos agentes políticos. A crise financeira que se abateu sobre os EUA e causa rebuliço em todo mundo pode alterar a equação, mas os seis anos em que ela funcionou não serão apagados facilmente da história.
As escolhas do primeiro governo Lula foram responsáveis em grande parte pela neutralização do mercado financeiro, que alimentou ondas de pânico durante a campanha eleitoral até quase quebrar o país. De início, na era Antonio Palocci, uma política monetária ortodoxa e uma política fiscal apertada conviveram com uma política social mais universalista. O Bolsa Família, pelas suas características, teve grande impacto econômico em comunidades mais pobres e foi um fator dinâmico numa economia contida pela ortodoxia; o mesmo papel desempenhou o crédito consignado. A recuperação econômica começou de baixo, na base da pirâmide. As escolhas feitas pelo governo foram a de manter o status quo do setor financeiro, proporcionando juros reais em altos patamares, e não travar um ciclo de crescimento que se iniciava agora nas camadas mais pobres da população beneficiadas por programas sociais. A era Guido Mantega foi marcada por uma outra solução de compromisso: a mesma política monetária ortodoxa, garantida pela presença de Henrique Meirelles no Banco Central, que convive, todavia, com uma política fiscal mais elástica, que deu um espaço maior para o crescimento econômico e democratizou, de alguma forma, os benefícios de uma economia que antes crescia pouco e beneficiava preferencialmente o mercado financeiro, com juros fartos, e a população de baixa renda. É certo, todas essas escolhas foram ajudadas por uma conjuntura externa benéfica - mas o cenário interno favorável certamente tem se prolongado por conta das decisões de política.
Essa solução de compromisso na economia, todavia, não livrou o governo Lula de uma alta pressão política. O presidente está ilhado na sua alta popularidade de 64% (soma das avaliações ótimo/bom governo), segundo pesquisa Datafolha do último dia 12. A elite política e o quadro burocrático dos poderes da República (que não deixa de fazer parte da elite política) atuam intensivamente como agenciadores de crise e de "explosões de pânico", que são sistematicamente amplificadas e alguns momentos dão a impressão de que têm força suficiente para derrubar a República, para depois sumirem no espaço como bolhas de sabão. Lula tem uma maioria na Câmara obtida com um bloco de partidos inorgânicos e heterogêneos; uma relação de amor e ódio com o seu partido, o PT, que perdeu substância orgânica no governo mas ainda tem força suficiente para não ser considerado imprescindível; é minoritário no Senado e lá lida com uma oposição mais raivosa, que ecoa e alimenta as explosões de pânico; tem no Supremo Tribunal Federal (STF) uma militância exagerada do seu presidente, Gilmar Mendes; lida com uma divisão permanente nos quadros da Polícia Federal (PF), cuja atuação tem ganhado cada vez mais importância institucional.
Ainda assim, não se pode dizer que Lula sobreviva exclusivamente dos bons ventos na economia. O presidente tem um patrimônio político próprio, consolidado nas faixas inferiores de renda. O avanço de Lula sobre esse eleitor se deu na proporção direta do afastamento dessa parcela da população dos chefes políticos locais, que tradicionalmente dependiam desse voto. Houve um descolamento na política tradicional que beneficiou o presidente. Como a luta política se deu intensamente nas instâncias institucionais - um tiroteio constante entre partidos, governo, STF, polícias e mídia - essa população, descolada do político que antes era o agente local da crise, ficou à margem das ondas de pânico geradas pelos atritos entre os poderes e entre os agentes políticos.
Um presidente sobreviver a sucessivas ondas de pânico e, ao final, ostentar 64% de popularidade, é razão suficiente para que se considere esse momento histórico como o mais rico do período pós-democratização. Governistas ou não, petistas ou antipetistas, as pessoas envolvidas na política devem ficar atentas para o fato de que se vive um momento onde as relações sociais com a política estão encontrando outros paradigmas. O país pode encontrar, nesse momento, a oportunidade histórica de romper com tradições políticas que são deletérias e definir outros parâmetros de relação do eleitor com a política. Isso significa que o poder tem que aprofundar o processo de mudança de suas relações com o cidadão; e a oposição, assumir uma relação mais orgânica com seu eleitor. Quando as explosões de pânico não causam pânico, o mais inteligente é privilegiar relações políticas mais racionais. E mais racional entrar na luta política para ganhar o poder pelo voto.
Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras
DEU NO VALOR ECONÔMICO
O governo Lula há seis anos sobrevive a tormentas nadando em mar tranqüilo. Embora a imagem possa parecer estranha, é a que mais expressa um período histórico em que as crises políticas rodopiam pela superestrutura da sociedade sem contaminar a base social do governo; e a bonança econômica não apenas mantém a base social como impermeabiliza o mercado financeiro, que desde o início do governo Lula não se deixa levar pelas ondas de pânico engendradas no meio político-institucional, nem as alimenta. Por certo, esse período histórico terá que ser estudado a fundo no futuro, pela interessante soma de fatores exógenos e das escolhas feitas pelos agentes políticos. A crise financeira que se abateu sobre os EUA e causa rebuliço em todo mundo pode alterar a equação, mas os seis anos em que ela funcionou não serão apagados facilmente da história.
As escolhas do primeiro governo Lula foram responsáveis em grande parte pela neutralização do mercado financeiro, que alimentou ondas de pânico durante a campanha eleitoral até quase quebrar o país. De início, na era Antonio Palocci, uma política monetária ortodoxa e uma política fiscal apertada conviveram com uma política social mais universalista. O Bolsa Família, pelas suas características, teve grande impacto econômico em comunidades mais pobres e foi um fator dinâmico numa economia contida pela ortodoxia; o mesmo papel desempenhou o crédito consignado. A recuperação econômica começou de baixo, na base da pirâmide. As escolhas feitas pelo governo foram a de manter o status quo do setor financeiro, proporcionando juros reais em altos patamares, e não travar um ciclo de crescimento que se iniciava agora nas camadas mais pobres da população beneficiadas por programas sociais. A era Guido Mantega foi marcada por uma outra solução de compromisso: a mesma política monetária ortodoxa, garantida pela presença de Henrique Meirelles no Banco Central, que convive, todavia, com uma política fiscal mais elástica, que deu um espaço maior para o crescimento econômico e democratizou, de alguma forma, os benefícios de uma economia que antes crescia pouco e beneficiava preferencialmente o mercado financeiro, com juros fartos, e a população de baixa renda. É certo, todas essas escolhas foram ajudadas por uma conjuntura externa benéfica - mas o cenário interno favorável certamente tem se prolongado por conta das decisões de política.
Essa solução de compromisso na economia, todavia, não livrou o governo Lula de uma alta pressão política. O presidente está ilhado na sua alta popularidade de 64% (soma das avaliações ótimo/bom governo), segundo pesquisa Datafolha do último dia 12. A elite política e o quadro burocrático dos poderes da República (que não deixa de fazer parte da elite política) atuam intensivamente como agenciadores de crise e de "explosões de pânico", que são sistematicamente amplificadas e alguns momentos dão a impressão de que têm força suficiente para derrubar a República, para depois sumirem no espaço como bolhas de sabão. Lula tem uma maioria na Câmara obtida com um bloco de partidos inorgânicos e heterogêneos; uma relação de amor e ódio com o seu partido, o PT, que perdeu substância orgânica no governo mas ainda tem força suficiente para não ser considerado imprescindível; é minoritário no Senado e lá lida com uma oposição mais raivosa, que ecoa e alimenta as explosões de pânico; tem no Supremo Tribunal Federal (STF) uma militância exagerada do seu presidente, Gilmar Mendes; lida com uma divisão permanente nos quadros da Polícia Federal (PF), cuja atuação tem ganhado cada vez mais importância institucional.
Ainda assim, não se pode dizer que Lula sobreviva exclusivamente dos bons ventos na economia. O presidente tem um patrimônio político próprio, consolidado nas faixas inferiores de renda. O avanço de Lula sobre esse eleitor se deu na proporção direta do afastamento dessa parcela da população dos chefes políticos locais, que tradicionalmente dependiam desse voto. Houve um descolamento na política tradicional que beneficiou o presidente. Como a luta política se deu intensamente nas instâncias institucionais - um tiroteio constante entre partidos, governo, STF, polícias e mídia - essa população, descolada do político que antes era o agente local da crise, ficou à margem das ondas de pânico geradas pelos atritos entre os poderes e entre os agentes políticos.
Um presidente sobreviver a sucessivas ondas de pânico e, ao final, ostentar 64% de popularidade, é razão suficiente para que se considere esse momento histórico como o mais rico do período pós-democratização. Governistas ou não, petistas ou antipetistas, as pessoas envolvidas na política devem ficar atentas para o fato de que se vive um momento onde as relações sociais com a política estão encontrando outros paradigmas. O país pode encontrar, nesse momento, a oportunidade histórica de romper com tradições políticas que são deletérias e definir outros parâmetros de relação do eleitor com a política. Isso significa que o poder tem que aprofundar o processo de mudança de suas relações com o cidadão; e a oposição, assumir uma relação mais orgânica com seu eleitor. Quando as explosões de pânico não causam pânico, o mais inteligente é privilegiar relações políticas mais racionais. E mais racional entrar na luta política para ganhar o poder pelo voto.
Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras
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