domingo, 1 de fevereiro de 2009

Perdidos na crise

Fernando Henrique Cardoso
DEU EM O GLOBO

Os governos precisam atuar, mas com um olhar para o futuro

A crise financeira estourou nos Estados Unidos em agosto de 2007. Subitamente, o mundo tomou conhecimento de que havia um problema: hipotecas sobre a compra de imóveis dadas com garantias precárias. De início, os bancos americanos diziam não ter nada com o assunto. Logo depois, foram obrigados a reconhecer que os "veículos especiais" que eles criaram eram, sim, de sua responsabilidade. Reconheceram para o Banco Central americano, o FED, poder dar-lhes dinheiro para cobrir os buracos, posto que os financiadores de hipotecas, não sendo bancos, não teriam acesso ao socorro federal. O susto não serviu de lição. De degrau abaixo a degrau abaixo, desfez-se o castelo de cartas. Hoje todo mundo reconhece que o sistema financeiro estava muito "alavancado", quer dizer, emprestava com uma base de capital próprio muito pequena, com o dinheiro dos outros. Os depositantes, quando descobriram a ligação dos bancos com as hipotecas, correram para retirar depósitos de bancos com poucos fundos próprios. De novo veio o socorro do FED, dessa vez trilionário. O mundo que ainda não se acostumara ao "bilhão de dólares" teve que ver "trilhão" no horizonte, mas de dívidas...

Daí em diante, houve mil "soluções criativas" para sair da crise. A "laborista", de Gordon Brown, saudada por todos, foi a de dar dinheiro aos bancos, comprando ações, em vez de, como fez o Fed, absorver títulos podres e conceder empréstimos a juros baixos e com prazo de devolução infinito. Tesouro e bancos ingleses ficaram associados, e não se sabe até que ponto estes foram "nacionalizados". O governo americano continuou "inovando": deu créditos com dinheiro do contribuinte, não só aos bancos, mas às empresas, e considera a possibilidade de dar recursos diretamente aos cidadãos pendurados em hipotecas impagáveis. O próprio Fed concedeu empréstimos a outros bancos centrais e, mais espantoso ainda, absorveu títulos "tóxicos" de empresas não financeiras. Os demais países europeus garantiram depósitos, enquanto os do mundo em desenvolvimento puseram-se às pressas a distribuir dinheiro público aos magotes para resolver problemas financeiros ou para ajudar empresas que se enrolaram na crise especulando com o valor das moedas.

Enfim, a velha e boa "socialização das perdas". Essa foi a breve história financeira do ano 2008.

O pior é que, com catadupas de dinheiro público, a crise não cede. Ela deixou de ser "financeira" para ser "econômica": as empresas não investem, os bancos não emprestam, e, quando o fazem, é com muito cuidado. Os empresários olham em volta e têm medo de expandir seus negócios: mais do que crédito, faltam compradores solventes. Os mercados estão encolhendo e encolherão ainda mais porque, com ou sem socialização das perdas, houve perda substancial de riqueza ou, como Marx diria, está havendo queima de mais valia. A riqueza financeira virou pó, porque ela é pó quando falta a confiança. Pulvis est et in pulvis revertere, como acontece com o corpo quando a alma some dele. Nestas situações "o mercado", isto é os empresários e investidores, só acreditam no governo. Mais grave ainda, os governos acreditam que podem resolver a crise. Como? Dando dinheiro ao mercado e investindo. Só que para fazê-lo se endividam e não resolvem de imediato as aflições de todos porque o medo pauta o consumo, e a economia contemporânea fez o casamento entre mercados voláteis e consumidores ávidos, movidos a propaganda. Sem consumidores, não há salvação, e o principal consumidor para a saída da crise não são as pessoas, mas as empresas. Isto é, o investimento.

Como convém dispor de uma autoridade intelectual insuspeita justificando abrir o cofre, o pobre lord Keynes é usado como se fosse o pai da socialização das perdas e da gastança pública indiscriminada. E como também é sempre bom ter um culpado, a "globalização" é indigitada como responsável pelo que é inerente ao capitalismo, a especulação, e pela falta de controle em uma economia, a principal, a americana, por cujos desmandos, aí sim, pagaremos todos. Como o diagnóstico é precário, as barreiras protecionistas somadas à gastança pública seriam o antídoto aos malefícios da "globalização". E com isso, em vez de resolver-se a crise (a solução virá com dor e lágrimas, sobretudo dos desempregados, vítimas inocentes dos desmandos, pela continuada queima de mais valia até que, atingido o fundo do poço, a "alma" dos capitalistas tenha novo sopro de vida), espicha-se o sofrimento e se sonha com um mundo não globalizado, como se isso fosse possível com o desenvolvimento tecnológico e a inter-relação comunicativa existente.

Isso não quer dizer que não haja nada a fazer, que basta esperar que o próprio mercado purgue seus pecados. Os governos precisam, sim, atuar. Mas olhando para o futuro, ajudando o investimento produtivo, seja ele público ou privado. E não endividando o povo (que pouco sabe que pagará as custas...) para salvar quem é insalvável. Sem esquecer que a poupança pública (em nosso caso ela é negativa) é insuficiente para dinamizar um sistema que é capitalista e que a ajuda às custas de endividamento futuro resultará em mais aperto ou em inflação. Em qualquer caso haverá redução das chances de uma retomada saudável do crescimento econômico.

Por fim é bom dizer que a redução da riqueza global oferece a todos, inclusive e principalmente aos governos, a chance de repensar o futuro. Ou se aumentam as regulações financeiras globalmente (sem sufocar a capacidade de inovação, mãe do desenvolvimento) e se repensa o modelo cultural de consumismo desenfreado e de dilapidação da natureza, ou a retomada de amanhã pode ser ainda mais danosa do que foi a etapa que se está esgotando.

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