Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO
De uns tempos para cá, a expressão "republicano" entrou em moda entre nós. Inspirada, em seu uso acadêmico, na visão idealizada da Atenas clássica e da república romana, ela tem sido usada para indicar a conduta virtuosa na política, em contraste com a corrupção de destaque constante no noticiário de todos os dias.
Mencionei aqui, há algumas semanas, a distinção de Wolfgang Schluchter, em "O Surgimento do Racionalismo Ocidental", entre moralidade, tomada como algo que diz respeito ao indivíduo, e ética, entendida como correspondendo ao plano coletivo. Há um sentido bem claro em que o desafio é o de criar a ética apropriada, em que normas de vigência geral conformem as disposições morais dos indivíduos e atenuem o primado irrestrito do interesse próprio e a corrupção em suas várias formas.
Mas os estudos sobre o processo de desenvolvimento moral, de que trata o próprio Schluchter, mapeiam de maneira bem mais complexa o tema da moralidade. Eles costumam distinguir (Lawrence Kohlberg é um nome a ser salientado) três fases. A primeira seria a da moralidade pré-convencional, em que prevalecem o egocentrismo e a orientação hedonista e egoísta - de fato, portanto, uma fase "pré-moral". A segunda seria a da inserção acrítica na moralidade convencional do grupo ou coletividade e da adesão às normas que ela propõe ou, na verdade, impõe. Mas o ponto mais alto corresponderia à moralidade "pós-convencional", distinguida pela autonomia dos agentes individuais, vistos como capazes de uma postura reflexiva e de "descentrar-se" (na expressão usada por Jean Piaget) em relação à coletividade, o que resulta em que as normas seguidas por eles sejam, em boa medida, de sua própria escolha e responsabilidade, como indicado pela etimologia mesma do vocábulo "autonomia". Esta é, naturalmente, a moralidade que reúne ao individualismo uma perspectiva universalista, aberta e tolerante.
É possível colocar as duas últimas "fases" em correspondência com a distinção entre "republicano" e "liberal" em política. Assim, o modelo republicano consagra as normas solidárias e a virtude "cívica" que viria com o sentido do dever perante a coletividade incutido por elas. Já a visão característica do modelo liberal supõe o equilíbrio entre o "enquadramento" cívico feito pela exigência coletiva da virtude e o valor "civil" da autoafirmação e da autorrealização pessoais, envolvendo redefinição ambiciosa - e moralmente "nobre" - da própria ideia de interesse como ingrediente indispensável da autonomia como valor. Nessa redefinição, o caráter mais "estreito" do particularismo dos interesses - que pode mostrar-se não só no nível estrito dos interesses individuais, mas também, no limite, na identificação fanática e beligerante com "a comunidade da fé compartilhada" (E. Gellner) - se vê substituído pelo empenho de articular sóbria e lucidamente o interesse próprio com a busca de valores ou objetivos maiores de qualquer natureza e com a consideração do interesse dos demais e a tolerância perante o "outro", mesmo o outro como "estranho".
Duas observações. A primeira é que, do ponto de vista da distinção de Schluchter entre moralidade e ética, a condição que cabe almejar corresponderia à vigência de uma moralidade (individual...) reflexiva sustentada por uma ética (coletiva...) de características afins àquela moralidade; em outras palavras, o paradoxo aparente de um convencionalismo (uma ética, que como tal é necessariamente convencional) que estimule a autonomia moral, capaz precisamente de contrapor-se ao convencionalismo e superá-lo numa ética adequadamente flexível e universalista. A outra observação é que os requisitos intelectuais patentemente difíceis da posição aqui descrita como liberal, se evidenciam certo simplismo do "republicanismo" corrente, deixam ver também o que há de insatisfatório na contraposição que se costuma encontrar entre liberalismo e socialdemocracia. Pois é impossível pretender garantir o substrato social minimamente apropriado à sofisticação requerida pela moralidade pós-convencional sem tratar de reduzir as desigualdades sociais a que o liberalismo tal como comumente entendido tende a mostrar-se insensível - mesmo abrindo mão de destacar a lassidão moral e a tendência ao comportamento fraudulento e corrupto trazidas pela investida recente desse liberalismo em plano mundial, como a crise econômico-financeira atual revelou de maneira dramática. Para formulá-lo em termos de um outro aparente paradoxo, só políticas socialdemocráticas efetivas garantiriam as condições de um liberalismo consequente.
Naturalmente, o investimento intenso em educação surge como recomendação fatal. Pois a educação é não só ela mesma um valor a ser desfrutado igualitariamente, mas também um meio decisivo de acesso à política como instrumento da luta contra as tiranias privadas de que falava Henry Fairlie, que também citei recentemente. O x do problema, porém, está em mais um paradoxo: o de que contar com a política, num país como o nosso, como o veículo que eventualmente nos aproxime da complexa condição político-moral esboçada significa contar com que ela possa cumprir tal papel na ausência justamente do substrato intelectualmente mais rico que a educação como meio representa.
Tanto pior: não resta como receita senão a de fazer política democrática, e fazê-la com os recursos de bordo, com os olhos postos pacientemente num futuro que abarca o passar de gerações. Bem ou mal, desdobrando-se a crise mundial, de repente os precários avanços políticos recentes permitem ver, por exemplo, formas de regulação do sistema financeiro que, com todas as reservas que justifiquem, situam o Brasil como modelo para países supostamente menos expostos aos nossos vícios. Talvez acabemos aprendendo a lidar de fato bem com corrupções de tipos maiores e menores. E a fazer bom liberalismo.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
DEU NO VALOR ECONÔMICO
De uns tempos para cá, a expressão "republicano" entrou em moda entre nós. Inspirada, em seu uso acadêmico, na visão idealizada da Atenas clássica e da república romana, ela tem sido usada para indicar a conduta virtuosa na política, em contraste com a corrupção de destaque constante no noticiário de todos os dias.
Mencionei aqui, há algumas semanas, a distinção de Wolfgang Schluchter, em "O Surgimento do Racionalismo Ocidental", entre moralidade, tomada como algo que diz respeito ao indivíduo, e ética, entendida como correspondendo ao plano coletivo. Há um sentido bem claro em que o desafio é o de criar a ética apropriada, em que normas de vigência geral conformem as disposições morais dos indivíduos e atenuem o primado irrestrito do interesse próprio e a corrupção em suas várias formas.
Mas os estudos sobre o processo de desenvolvimento moral, de que trata o próprio Schluchter, mapeiam de maneira bem mais complexa o tema da moralidade. Eles costumam distinguir (Lawrence Kohlberg é um nome a ser salientado) três fases. A primeira seria a da moralidade pré-convencional, em que prevalecem o egocentrismo e a orientação hedonista e egoísta - de fato, portanto, uma fase "pré-moral". A segunda seria a da inserção acrítica na moralidade convencional do grupo ou coletividade e da adesão às normas que ela propõe ou, na verdade, impõe. Mas o ponto mais alto corresponderia à moralidade "pós-convencional", distinguida pela autonomia dos agentes individuais, vistos como capazes de uma postura reflexiva e de "descentrar-se" (na expressão usada por Jean Piaget) em relação à coletividade, o que resulta em que as normas seguidas por eles sejam, em boa medida, de sua própria escolha e responsabilidade, como indicado pela etimologia mesma do vocábulo "autonomia". Esta é, naturalmente, a moralidade que reúne ao individualismo uma perspectiva universalista, aberta e tolerante.
É possível colocar as duas últimas "fases" em correspondência com a distinção entre "republicano" e "liberal" em política. Assim, o modelo republicano consagra as normas solidárias e a virtude "cívica" que viria com o sentido do dever perante a coletividade incutido por elas. Já a visão característica do modelo liberal supõe o equilíbrio entre o "enquadramento" cívico feito pela exigência coletiva da virtude e o valor "civil" da autoafirmação e da autorrealização pessoais, envolvendo redefinição ambiciosa - e moralmente "nobre" - da própria ideia de interesse como ingrediente indispensável da autonomia como valor. Nessa redefinição, o caráter mais "estreito" do particularismo dos interesses - que pode mostrar-se não só no nível estrito dos interesses individuais, mas também, no limite, na identificação fanática e beligerante com "a comunidade da fé compartilhada" (E. Gellner) - se vê substituído pelo empenho de articular sóbria e lucidamente o interesse próprio com a busca de valores ou objetivos maiores de qualquer natureza e com a consideração do interesse dos demais e a tolerância perante o "outro", mesmo o outro como "estranho".
Duas observações. A primeira é que, do ponto de vista da distinção de Schluchter entre moralidade e ética, a condição que cabe almejar corresponderia à vigência de uma moralidade (individual...) reflexiva sustentada por uma ética (coletiva...) de características afins àquela moralidade; em outras palavras, o paradoxo aparente de um convencionalismo (uma ética, que como tal é necessariamente convencional) que estimule a autonomia moral, capaz precisamente de contrapor-se ao convencionalismo e superá-lo numa ética adequadamente flexível e universalista. A outra observação é que os requisitos intelectuais patentemente difíceis da posição aqui descrita como liberal, se evidenciam certo simplismo do "republicanismo" corrente, deixam ver também o que há de insatisfatório na contraposição que se costuma encontrar entre liberalismo e socialdemocracia. Pois é impossível pretender garantir o substrato social minimamente apropriado à sofisticação requerida pela moralidade pós-convencional sem tratar de reduzir as desigualdades sociais a que o liberalismo tal como comumente entendido tende a mostrar-se insensível - mesmo abrindo mão de destacar a lassidão moral e a tendência ao comportamento fraudulento e corrupto trazidas pela investida recente desse liberalismo em plano mundial, como a crise econômico-financeira atual revelou de maneira dramática. Para formulá-lo em termos de um outro aparente paradoxo, só políticas socialdemocráticas efetivas garantiriam as condições de um liberalismo consequente.
Naturalmente, o investimento intenso em educação surge como recomendação fatal. Pois a educação é não só ela mesma um valor a ser desfrutado igualitariamente, mas também um meio decisivo de acesso à política como instrumento da luta contra as tiranias privadas de que falava Henry Fairlie, que também citei recentemente. O x do problema, porém, está em mais um paradoxo: o de que contar com a política, num país como o nosso, como o veículo que eventualmente nos aproxime da complexa condição político-moral esboçada significa contar com que ela possa cumprir tal papel na ausência justamente do substrato intelectualmente mais rico que a educação como meio representa.
Tanto pior: não resta como receita senão a de fazer política democrática, e fazê-la com os recursos de bordo, com os olhos postos pacientemente num futuro que abarca o passar de gerações. Bem ou mal, desdobrando-se a crise mundial, de repente os precários avanços políticos recentes permitem ver, por exemplo, formas de regulação do sistema financeiro que, com todas as reservas que justifiquem, situam o Brasil como modelo para países supostamente menos expostos aos nossos vícios. Talvez acabemos aprendendo a lidar de fato bem com corrupções de tipos maiores e menores. E a fazer bom liberalismo.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
Nenhum comentário:
Postar um comentário