De Itamar a Lula, passando por FH, vivemos os melhores anos da República brasileira, em quase todos os sentidos
A humanidade vive em crise e é natural que seja assim. A crise é o estado humano por excelência, o momento em que a mudança precisa se impor, a vitória da insatisfação. Às vezes, no entanto, este estado de crise sofre uma exacerbação, torna-se desumano, produz guerra. Todo cuidado é pouco.
Insisto em que de Itamar a Lula, passando por FH, vivemos os melhores anos da República brasileira, em quase todos os sentidos. Nesses anos, consolidamos nossa jovem democracia, conquistamos a liberdade de todos, consagramos a ideia de direitos humanos no país, estabilizamos a moeda, fizemos crescer nossa economia, iniciamos uma importante distribuição de renda, nos tornamos internacionalmente emergentes. Até voltamos, depois de um jejum de 24 anos, a ser campeões do mundo, em 1994 e 2002.
Nada disso aconteceu num mar de rosas, na paz de um lago suíço. As respectivas oposições a esses governos foram sempre duras e implacáveis, injustas ou não. Das privatizações de FH ao mensalão de Lula, as crises se sucederam entre os partidos, os homens que os representavam e as organizações sociais que os apoiavam. Até junho do ano passado, o povo não organizado parecia estar apenas assistindo em silêncio ao teatro político da nação.
O mandato de Dilma começou com um horizonte de paz. O país andava bem e havia uma espécie de wishful thinking de que, sendo ela antes de tudo uma gestora, seu governo se passaria sem graves conflitos políticos, num patamar de entendimento e compreensão superior ao dos presidentes precedentes. Mas de repente, sem aviso prévio, “o gigante acordou”.
Foi bom que ele acordasse. Além de ser um sinal de que os benefícios do passado recente haviam produzido, pelo menos em parte da população, o sentimento adormecido de cidadania, as manifestações punham em discussão temas públicos nem sempre novos, mas sempre indispensáveis, como os da corrupção, da crise da representação popular, da mobilidade urbana, da educação e da saúde, dessas coisas que nunca ocorreram aos príncipes no sossego de Brasília.
A propósito disso, Marcus Faustini publicou terça-feira passada, aqui no GLOBO, excelente artigo sobre amor e política em que diz que “nunca tivemos tantos jovens nesta cidade envolvidos com as questões urbanas como agora. Generalizar todos eles como meros instrumentos do jogo da grande política é perder uma chance de renovação dos agentes públicos de que essa cidade precisa”. E termina citando Aristóteles: “Uma cidade é composta de diferentes tipos de homens, pessoas semelhantes não podem dar existência a uma cidade.” Podemos trocar “cidade” por “nação”, e eis aí o Brasil.
É claro que as manifestações devem continuar, precisamos construir uma democracia ativa, nos tornarmos seres mais plenos no exercício da política como forma de pensar no outro. Mas não podemos, através delas, voltar ao estado selvagem e sem regras cultivado durante tanto tempo pela ditadura militar, dando preferência à porrada que tanto combatemos. Não podemos politizar a morte, transformar em mera querela politica o desaparecimento de alguém, seja de que lado for. Quando alguém morre, o mundo desaparece com ele, as ideologias viram pó.
Os manifestantes querem mudar o mundo, e é mesmo insuportável conviver com a injustiça e a miséria, com o egoísmo brutal dos poderosos e o desinteresse geral pelo outro. Entre os que se manifestam em nome dessas ideias e o poder que os reprime, vou estar sempre ao lado dos primeiros. Mas por que precisamos de vítimas para tornar visíveis nossas ideias?
Não é possível que a única estratégia para a mudança seja eliminar quem não está de acordo conosco. Ninguém tem o direito de ter tal confiança no que pensa sobre o mundo, a ponto de se permitir exterminar alguém com tiro, bomba ou rojão. Não posso achar idealismo ferir para impor ideias. E, se é assim, nada pior do que um idealista armado.
Outro dia, vi a exposição recém-inaugurada de fotos de Henri Cartier-Bresson, no Centro Georges Pompidou. Considerado o “fotógrafo do século 20”, Cartier-Bresson inaugurou com suas fotos uma espécie de antropologia visual, registrando os mais importantes acontecimentos mundiais do século, sempre do ponto de vista do ser humano em circunstâncias que não foram criadas por ele.
De certo modo, Cartier-Bresson registrava, além de seus personagens, o ar em volta deles. Seu humanismo militante e radical o levou da convulsão da guerra civil espanhola à solidão de um homem sob a chuva em Paris, das tragédias da Segunda Guerra Mundial na Europa aos meninos de rua de Nova York, das belezas geométricas da Toscana à multidão em pânico com a chegada de Mao a Shanghai.
A obra compassiva de Cartier-Bresson nos lembra sempre da injustiça que fazemos aos outros em nome de nossas próprias ideias.
Cacá Diegues é cineasta
Fonte: O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário