Não deveria ter sido preciso a trágica morte do cinegrafista Santiago Andrade para que nos déssemos conta de que a situação é complicada. O País parece saturado da falta de opções, ouve com tédio os discursos políticos, no máximo, com aquela vã esperança de que algum mágico dê jeito nas coisas. O clima de exasperação, a rejeição passional da divergência e a ausência de debate público bloqueiam quase tudo. As manifestações estão aí, mas a qualquer momento podem derivar para o caos ou esfriar. Também elas carecem de sustentabilidade e eixo.
Desponta no horizonte uma enorme crise social, que não derrubará governos, mas os desafiará como nunca.
Um olhar que não desça às profundezas da sociedade pode achar que tudo vai bem, melhor do que antes, que o País se tornou um player de respeito no mundo e a população está feliz. Não considera que novas modalidades de ação, novos protagonistas e demandas pressionam os governos. E se as deficiências estruturais do País - na educação, nos transportes urbanos, na saúde, nos aeroportos - não são atacadas com determinação, as pessoas se irritam e se frustram, adubando o terreno para todo tipo de explosão.
Foi esse o recado das ruas de junho de 2013. Poderia ter havido ali uma inflexão positiva, um salto na compreensão crítica do País que se vem formando, a abertura de uma nova dialética Estado-sociedade. Não se ouviu, porém, o recado.
Em vez disso, seguiu-se com a mesmice de sempre, com o ufanismo que nos caracteriza, a subserviência ao sistema internacional, aos bancos e aos mercados, a obsessão pelo crescimento. Em vez de inventarmos um modo nosso de fazer as coisas - por exemplo, de organizarmos a Copa, para ficar com algo simples e oportunista -, compramos um pacote fechado. Fazemos de conta que não há desperdício, que as prometidas obras de infraestrutura virão no devido tempo, que os bilhões de reais canalizados para construir ou reformar estádios são a precondição para que o País organize "a melhor Copa de todas". As pessoas não acreditam. Preferem esperar para ver. Não há correntes sociais ativas para sustentar o que se decide fazer no País.
As coisas não pioram, vão até melhorando em alguns aspectos. Mas faltam entendimentos para que se dê um arranque expressivo. De dentro e de fora do governo federal ouve-se que o Estado precisa gastar menos, como se fosse possível reduzir ou redefinir despesas públicas a esta altura do campeonato. Se a vida de parte dos mais pobres melhorou, graças às políticas de incentivo ao consumo e à Bolsa Família, daí virão mais exigências de gasto, não menos. Surgirão arranjos inusitados e expectativas que nem sempre poderão ser atendidas. As pessoas quererão mais saúde, educação e transportes, e tudo com mais qualidade. Coisas que exigem investimento, políticas e coordenação estatal - um projeto de País, em suma, que é precisamente o que mais falta.
As manifestações têm-se sucedido. Vão de rolezinhos a espasmos cívicos e protestos contra a Copa. Em todas, as agendas são idênticas: transparência, respeito a direitos, reconhecimento, espaços de lazer, mobilidade urbana, outra política. Em todas, o despreparo policial desaba sem muito critério sobre as multidões e se faz acompanhar de uma violência "simbólica" que o reverbera e amplifica, adicionando a ele o despreparo dos manifestantes. Destaca-se a tragédia da hora, esquecem-se as mortes enfileiradas ao longo dos anos, o cotidiano pesado, a falta de perspectiva dos jovens, o ambiente sociocultural que não agrega. Joga-se luz sobre os violentos sem que se expliquem as raízes da violência e o porquê de ela estar-se convertendo em opção de vida.
É equívoco grosseiro usar a situação para atacar o governo federal, como se fosse ele o culpado pelo descontrole e pela violência que estão por aí. Mais polícia e repressão não solucionarão nada, assim como leis "antiterrorismo" ou contra mascarados. Poucas vozes políticas se fazem ouvir. O Congresso Nacional nem sequer se manifesta. A manipulação vem de todos os lados. Fatos soltos, interpretações descabidas e acusações levianas passam a servir de base para que se façam ilações absurdas. Ora se atinge um deputado, como Marcelo Freixo (PSOL-RJ), ora a culpa por tudo seria da mídia. Há quem glamourize os black blocs como filhotes destemperados da desobediência civil e quem se aproveite deles para desgastar o regime ou propor endurecimento político. Poucos consideram o estrago que a "tática" causa à democracia.
O País parece estar num vácuo político, no sentido preciso de que está sem direção e coordenação. Se há vácuo, é porque não há matéria que preencha o espaço: governo e oposição, instituições e sociedade civil. Como a vida muda depressa, o descontrole tende a ser grande. Não se trata do governo federal, mas de crise dos governos, das instituições, do Estado em seu conjunto, crise da cultura e de uma hegemonia. Isso se expressa, por exemplo, no afã esteticizante e performático dos manifestantes atuais. Eles não aceitam o modo "tradicional" de protestar. Querem se mostrar, aparecer, e máscaras são usadas também para isso.
Não é, porém, o fim do mundo. Numa situação complexa, difícil de ser governada, não se deveria estar a desancar instituições - igrejas, partidos, entidades, órgãos de imprensa; o melhor seria exigir que cumpram alguma função construtiva. Nossos políticos desprezam a gravidade do momento, seguem batendo uns nos outros, não ensaiam nenhuma aproximação ou acordo. Estão picados pela disputa eleitoral que se aproxima. Só contribuem para complicar o quadro.
É preciso decifrar essa paisagem que desponta na neblina. O levantar de poeira, a culpabilização e as teorias conspiratórias não ajudam a que se enfrente uma condição emergencial. Serenidade, clareza, apuração rigorosa de fatos, perspectiva política e união dos democratas são o que temos de melhor: recursos indispensáveis.
*Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP.
Fonte: O Estado de S. Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário