Valor Econômico
A crise econômica prevista abre brechas para o que não é econômico, mas combinação de irresponsabilidade social e política
A língua brasileira, isto é, o português
falado com sotaque nheengatu e impregnado de palavras do tupi antigo, contém
segredos em que o que está sendo dito pode dizer mais do que se pensa. Na
verdade, somos bilíngues. Escrevemos uma coisa e pensamos outra.
A linguagem oculta incertezas próprias da
duplicidade. Além do que, as escravidões que tivemos e sua cultura da sujeição
e do medo nos ensinaram mais a perguntar do que a afirmar.
Nós nos rebelamos nas insurreições sutis, a
dos meandros. A língua brasileira, um tanto diversa da língua portuguesa, já é
em si mesma uma rebelião: a rebelião das vogais contra as consoantes. Na
palavra “ganhá”, na falta do erre do infinitivo, o ganhar não significa
precisamente vencer um conflito, mas perdê-lo.
Em sua “Caderneta de campo”, na Guerra de Canudos, Euclides da Cunha anotou respostas de prisioneiros interrogados e degolados em seguida pelo Exército: “E eu sei?”. Ou: “Tem, não” — concordar para discordar.
Nesta conjuntura de reemergência do nosso
autoritarismo crônico, antipatriótico e anticapitalista, do falso patriotismo
dos traidores da pátria, temos um cenário propício para a compreensão dessa
decisiva característica sociológica da sociedade brasileira.
No caso da imposição de tarifas
anticapitalistas para salvar o capitalismo americano, a crise econômica
prevista abre brechas para o que não é econômico, mas combinação de
irresponsabilidade social e política.
Em relação a nós, lembra-nos a afirmação do
general Costa e Silva, em pronunciamento na televisão ainda em preto e branco
para explicar o golpe de 1964: “Estávamos à beira do abismo, mas agora, com a
revolução militar, o país deu um passo à frente...”. O general desfalava a
língua brasileira.
O substrato profundo e invisível das
circunstâncias produz, em todas as partes, personagens e enredos. Se na
história da sociedade contemporânea a esquerda populista produziu líderes
carrancudos e totalitários, como Stálin, a direita e a extrema direita
produziram notórios e perigosos bufões.
O mais emblemático deles foi Mussolini, que
aparecia em público fazendo gestos da imponência que não tinha, o que o tornava
mais ridículo do que fisicamente era.
Hitler, que tinha uma figura acanhada e
tosca, era bufo de nascimento. Ensaiava discursos e a teatralidade circense de
poses de valentão para contrapor-se à imagem do alemão derrotado na Primeira
Guerra Mundial. O alemão teatral tinha que mostrar sua cara para sobrepor-se ao
alemão sacrificado nas trincheiras.
Trump, desde seu primeiro governo, chamou a
atenção do mundo inteiro pelo fato de que era e é um sujeito sem alegria, sem
sorriso. Quando sorri, seu sorriso é indisfarçavelmente escárnio, entre a
prepotência e o descaso.
Ele quer ser expressão e símbolo da América
que já não existe como foi ela em seus áureos tempos. De certo modo, foi
perdendo as conquistas dos grandes saltos históricos, como a abolição da
escravatura, na era Lincoln, que a trouxe para o mundo moderno. E a América
desenvolvimentista da era Roosevelt, do desenvolvimento econômico com
desenvolvimento social. Desde então, teve apenas alguns momentos de luminosa
grandeza, com Jimmy Carter e Barack Obama, governantes humanistas e de
discernimento.
Os bufões, na sociedade contemporânea,
começam como precursores do extremo-direitismo e como tais se confirmam no
poder. Querem personificar a ordem social e política rígida, a da resistência e
aversão às tendências de transformação social e à consciência inovadora.
Exaltam o passado que nunca propriamente existiu. São maus conhecedores da
história.
Uma reverenda senadora do DF, em dias
passados, falou em “nós, os conservadores” em fingido pedido de desculpas ao
PT. São reacionários. Os verdadeiros conservadores têm o sentido e a dimensão
da História, de um certo possível, no marco dos valores sociais. Os
reacionários, como os bolsonaristas, não os têm.
Temos o azar de ter os nossos bufões, bem
mais que um. Bolsonaro é o nosso, sem a competência teatral dos bufões
clássicos. Não distingue iniciativa de acabativa.
Nessa ordem de coisas, lembro-me de um
comentário que por aqui corria nos anos de 1970. Um militante da mudança
social, em palestra num bairro popular de São Paulo, explicou que nossa
tragédia econômica decorria da injusta dívida externa.
Para não pagá-la, o jeito seria declararmos
guerra aos EUA e nos deixarmos vencer pelo inimigo. Como os americanos que,
após a Segunda Guerra Mundial, derrotaram os países do Eixo, os ocuparam, os
desenvolveram e transformaram em potências econômicas. Fariam o mesmo aqui.
Um caboclo, no fundo da sala, dos que ainda
pensam em língua nheengatu, muito desconfiado, perguntou:
— E se nóis ganhá?
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