O Congresso Nacional é, por definição, o esteio da democracia representativa. Não seria exagero dizer que é ali que a vontade popular se manifesta de maneira mais clara, e disso deriva sua força no sistema de freios e contrapesos ao qual os Poderes republicanos estão submetidos. Por essa razão, tudo o que emana do Congresso deveria ser lido como a expressão soberana dos desejos do povo, cabendo aos demais Poderes fazer com que essa vontade seja transformada em realidade. No entanto, quando o Congresso se degrada a tal ponto que os interesses da coletividade são sistematicamente desprezados para garantir os privilégios de corporações bem organizadas, mesmo diante da evidente incapacidade do Estado de arcar com essas benesses, cria-se uma situação em que, para o bem do País, é melhor que o Executivo encontre maneiras de ignorar certas determinações dali originadas, de tão flagrantemente inconstitucionais e danosas que são ao bem público.
Esse tem sido o caso da chamada “pauta-bomba” do Congresso, que, em ano eleitoral, cria uma série de despesas e concede benefícios a setores específicos, medidas que, no conjunto, podem ter impacto de R$ 100 bilhões nos próximos anos. Um exemplo é o perdão de dívidas tributárias de produtores rurais – o Congresso derrubou o veto do presidente Michel Temer a mais essa farra. Além disso, tramita projeto que determina a transferência de R$ 39 bilhões por ano a Estados como compensação por perdas – há muito já absorvidas – com a Lei Kandir, que em 1996 desonerou de ICMS a exportação de produtos primários e semielaborados. Outro absurdo é a concessão de diversos benefícios para transportadores, depois da criminosa greve dos caminhoneiros que sufocou o País em maio. Por fim, mas não menos obscena, foi a exclusão, da Lei de Diretrizes Orçamentárias, da proibição de reajuste salarial para os servidores públicos em 2019.
Quando a equipe econômica faz ressalvas a medidas desse tipo, apelando para o bom senso dos parlamentares neste momento difícil do País, a reação de parte do Congresso tem sido quase sempre negativa – mais de uma vez, o presidente do Senado, Eunício Oliveira, disse que a equipe econômica “não manda” na pauta de votações.
Diante desse cenário de manifesta irresponsabilidade, não parece restar alternativa ao Executivo senão privilegiar o respeito à Constituição e à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que proíbem criar despesas sem que se estabeleça de onde virá o dinheiro para bancá-las. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a renegociação das dívidas dos produtores rurais. Como contou o ministro da Fazenda, Eduardo Guardia, ao Valor, assim que o Congresso derrubou o veto do presidente Temer, a equipe econômica informou ao Banco do Brasil que não tinha orçamento para cumprir o que foi aprovado. “Voltamos ao Congresso e dissemos: ‘Precisamos de R$ 17 bilhões para ter crédito orçamentário e fazer o que vocês mandaram. De onde querem tirar?’”. Segundo ele, “isso criou um mal-estar, porque precisa fazer conta antes de aprovar”. A solução foi uma medida provisória que alterou “o que foi feito na lei do Congresso”.
Como salientou o ministro Guardia, não se trata de desrespeitar o Congresso, mas de respeitar a lei. Ele relatou diálogo esclarecedor que teve, a esse propósito, com o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), Raimundo Carreiro. “Se eu cumprir a lei aprovada pelo Congresso dando o benefício (aos produtores rurais), há o entendimento de que estarei descumprindo a Constituição e a Lei de Responsabilidade Fiscal. O senhor pode me ajudar a decidir qual lei devo descumprir?” Ao que o presidente do TCU, segundo Guardia, respondeu: “Recomendo fortemente não descumprir nem a Constituição nem a Lei de Responsabilidade Fiscal”. Assim, disse o ministro, “o que o Congresso não pode fazer é descumprir a LRF e me obrigar a realizar despesa para a qual não temos orçamento”.
Eis aí a que grau chegou a desmoralização do Congresso, cujas decisões não são mais reconhecidas como expressão da cidadania, mas apenas como sabotagem grosseira dos esforços para sanear as contas nacionais.
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