- Folha de S. Paulo
Boa parte das pessoas julga a qualidade da democracia a partir de seu humor político
As teorias sobre o “risco democrático” inundaram os jornais brasileiros desde a eleição de Bolsonaro. Perdi a conta de quantas vezes me perguntaram, em debates ou entrevistas, sobre o “grau de risco” em que se encontravam nossas instituições.
Uma variação desse discurso é a ideia de que vivemos uma fase de “anormalidade”. Em certos momentos, eram as derrotas do governo no Congresso; em outros, algum bate-boca na internet. Visto com a pátina do tempo, tudo isso parece incrivelmente tedioso. Difícil situar o Brasil em um ranking imaginário de normalidade democrática. É provável que nos situássemos bem à frente do Chile ou da Bolívia, e seguramente atrás do Uruguai. Confesso não ter o instrumento que mede essas coisas.
Boa parte das pessoas julga a qualidade da democracia simplesmente a partir de seu humor político. É o que mostrou o The Democracy Project, apresentado em 2018 pelo Penn Biden Center, pela Freedom House e pelo George W. Bush Institute. Perguntados se consideravam haver um “perigo real dos Estados Unidos se tornar um país autoritário”, 57% dos simpatizantes democratas respondiam que sim. Pela mesma margem, os simpatizantes republicanos diziam que não.
É interessante perceber como o mesmo sentimento de “risco democrático”, na direção oposta, funcionou à época do governo Dilma, quando já se formava a onda conservadora que daria na vitória de Bolsonaro, em 2018. A ideia difusa de que “estivemos prestes a nos tornar uma Venezuela”.
Tanto naquela época como agora, sempre achei isso uma imensa bobagem. Quem acha “ameaça democrática” em qualquer coisa termina por banalizar o próprio debate em torno da democracia e, por fim, por perder a capacidade de identificar ameaças reais quando elas de fato aparecerem.
O professor Carlos Pereira, em um artigo recente, fez referência à pesquisa de Kurt Weyland, da Universidade do Texas, mostrando que os “riscos que a democracia liberal corre com a eleição de populistas têm sido superestimados”. É o caso típico de Trump, nos Estados Unidos.
O risco não viria da simples disposição autoritária de quem governa, mas da combinação muito especial de fragilidade institucional em contextos de forte expansão econômica ou seu contrário, de crise aguda e instabilidade.
O professor Carlos observa que nenhuma dessas condições surgem no Brasil atual. Estamos em um processo de recuperação econômica, com inflação e juros baixos e perspectivas de um crescimento mais robusto no próximo biênio. Mas ainda metidos em uma brutal enrascada, com 4,5 milhões de pessoas tendo ultrapassado, para baixo, a linha da extrema pobreza desde a crise de 2014-2016, segundo o IBGE.
Coisas tristes que não aparecem no filme bacana da Petra Costa, mas gritam em silêncio na vida real do Brasil. Independentemente da narrativa política de quem quer que seja.
Nossa democracia, em 2019, reagiu bem aos impulsos de um presidente de gosto autoritário. O ano foi marcado pelo protagonismo do Congresso, pelo avanço de pautas associadas ao garantismo jurídico, como a lei contra abuso de autoridade e o juiz das garantias (com a chancela de Bolsonaro), e no qual o tema “direitos humanos e minorias” foi dominante nos projetos aprovados pela Câmara dos Deputados, conforme mostrou o site Poder360.
A importância dessas coisas aprendi de uma lição dada por Barack Obama: um país que não sabe onde errou no passado é tão estúpido quanto um país que não reconhece onde soube avançar ao longo do tempo. Sabedoria política demanda um delicado senso de proporção.
Obama se referia ao avanço da igualdade racial e de gênero nos Estados Unidos, em uma época de aguda tensão social, no seu segundo mandato.
No Brasil de hoje, vale o mesmo raciocínio. Soubemos fazer uma dura reforma da Previdência, mas há uma enorme agenda pela frente no Congresso. Nossos sistemas de freios e contrapesos fizeram valer sua força, mas a democracia supõe um permanente estado de alerta.
Tudo perfeitamente normal, a despeito dos alarmistas e teóricos do caos, que prosseguirão praticando, não tenho dúvidas, seu esporte preferido de atirar pela janela, todos os dias, a criança com a água do banho.
*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
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