sábado, 15 de fevereiro de 2020

Sérgio Augusto - Príncipe herdeiro

- O Estado de S. Paulo

Crítico de cinema da ‘New Yorker’, Anthony Lane gostou de ‘Parasita’ e esnobou ‘Coringa’

E aí morreu Issur Danielovitch, que, por trás desse nome dostoievskiano, não se escondia - era justamente o contrário - o ator Kirk Douglas. No dia seguinte, 6 de fevereiro, o crítico de cinema da The New Yorker, Anthony Lane, postou no site da revista um breve necrológio que era uma pequena joia jornalística, cujos lead e sublead me atrevo a, canhestramente, traduzir.

“Um jovem pedia carona, à beira da estrada. Um carro, a caminho de Palm Springs, parou e seu dono mandou o rapaz entrar. O homem ao volante era Kirk Douglas. O rapaz olhou para ele com ar de espanto, e comentou, ‘você tem ideia de quem você é?’”

Boa pergunta, daquelas que nos obrigam a parar para pensar. Marlon Brando teria saltado do carro e ido procurar uma resposta no meio do deserto. Mas Douglas não. Ele sabia exatamente quem ele era, e a força daquela certeza era uma das coisas que mantinham o seu motor funcionando. Até que na quarta-feira ele parou, e Douglas morreu, com 103 anos de idade. Ele primeiro foi um astro de cinema e já um nome respeitado quando tinha apenas 30 anos. Que viagem!

Sua morte reforça a impressão que tentei descrever ao fazer-lhe um perfil para esta revista, por ocasião do seu centenário. Na tela, ele projetava um vigor que deixava as plateias ao mesmo tempos deslumbradas e amedrontadas. Assista a Spartacus no cinema, e veja se consegue continuar sentado na poltrona na cena em que os escravos começam a gritar “Eu sou Spartacus!”. Você não teria coragem de encarar Douglas se ele sacasse que você é um covarde. Seu olhar podia atravessá-lo como uma espada.

Sem Douglas, a galeria de atores heroicos parece perigosamente abandonada. Para afirmar que não veremos mais ninguém como ele, é preciso saber como ele era. Ainda temos um punhado de atores que se comportam com empenhado heroísmo quando seus filmes assim o exigem: Matt Damon como Jason Bourne, ou Tom Cruise - que, a julgar por seu atual ritmo de atividade, deverá, presumivelmente, chegar aos 203 anos de idade - na série Missão Impossível. Mas os Damons e os Cruises, apesar do encanto que continuam exercendo sobre as plateias, não cabem nas figuras heroicas encarnadas por Douglas, cuja presença na tela, como as de Gary Cooper e John Wayne, representava um império. Tamanha grandeza é, hoje, impraticável e suspeita - pois vivemos outros tempos, com ofertas diferentes, sem falar nas dimensões de nossas telas. A crucificação, no final de Spartacus, pode perder um pouco de seu impacto se vista num relógio da Apple. Nossos astros não têm culpa; a culpa é nossa mesmo.

Se os Damons e os Cruises não calçam as botas de Douglas, Cooper e Wayne, Anthony Lane não calça as de Pauline Kael, a Dark Lady da crítica de cinema americana que o antecedeu na New Yorker e aposentou-se em 1991. Ex-crítico do londrino The Independent e atualmente com 58 anos, não foi a primeira escolha para ocupar o púlpito mais prestigiado do comentariado cinematográfico. Pauline tinha um protegido, Terrence Rafferty, ótimo crítico, revelado no semanário The Nation, que logo trocou a New Yorker pela GQ.

Importado de Londres pela conterrânea Tina Brown, editora da New Yorker de 1992 a 1998, Lane virou o príncipe herdeiro de Pauline. Custou um pouco a se convencer de que não haviam contratado o sujeito errado. Dizia-se mais deslocado na revista que o protagonista do romance Malícia Negra, de Evelyn Waugh, tema, aliás, de um ensaio que lhe rendeu um National Book Award.

Sua prosa ágil tem verve e um tipo de humor mais cool do que fleumático, apesar de ser, fisicamente inclusive, um intelectual britânico do penteado aos sapatos. Por haver resistido à tentação de imitar o inimitável estilo de Kael, adaptou-se rápido ao novo espaço.

Saiu em desvantagem no repertório de filmes submetidos ao seu veredicto: a safra que Kael glorificou e descascou - anos 70 e 80 - ganha fácil das que Lane pegou desde Proposta Indecente, sua primeira crítica para a New Yorker, abril de 1993. De todo modo, pegou Magnólia, A Idade da Inocência, A Dupla Vida de Véronique, Roma, os primeiros exercícios de Wes Anderson e Bong Joon-ho, a “descoberta” do húngaro Béla Tar, para destacar apenas alguns dos que mais o entusiasmaram no período.

Embora atento e simpático às cinematografias europeias, julgou furada a proposta do Dogma dinamarquês (falando nisso, que fim levou o Dogma?). Maiores detalhes em sua próxima coletânea de críticas, que não faço ideia quando sairá. A primeira (Nobody’s Perfect, 752 páginas) já tem 18 anos.

Crítico por acaso, para decepção do pai, que o imaginava em profissão “mais séria”, Lane acabou dando razão ao velho. “Meu ofício é um dos maiores casos de impotência profissional; só tem importância para quem vive dele ou se interessa por cinema. O cinema independente ainda pode se beneficiar de um empurrão da crítica, mas para as grandes produções nossa importância é nenhuma. O lado bom é que os críticos não arriscam mais seus empregos quando picham um blockbuster.”

Lane não gosta de assistir a filmes em cabine na companhia de outros críticos. Não é bestice, mas prazer de compartilhar a experiência cinematográfica com o público, de preferência em salas cheias. Não lê material publicitário, gostou de Parasita, A Vida Invisível, Dor e Glória, dos dois filmes dirigidos por Greta Gerwig (Lady Bird e Adoráveis Mulheres), esnobou Coringa e O Irlandês, que definiu como “um Morangos Silvestres com armas”.

Não disse que ele é engraçado?

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