- Folha de S. Paulo
Ao insultar as domésticas, Guedes ecoa seu chefe
A Constituição de 1988 estabeleceu como objetivos fundamentais da República “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “erradicar a pobreza”, “reduzir as desigualdades”, “garantir o desenvolvimento” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Para alcançar esses objetivos, assegurou inúmeros direitos, entre os quais o direito universal à educação e à saúde, além de assistência social a todos aqueles que dela necessitarem.
A esses direitos correspondem uma série de obrigações, sem as quais direitos não passam de promessas vazias.
Além disso, a Constituição também reconheceu que diversos grupos, devido a sua vulnerabilidade ou discriminação histórica, como indígenas, quilombolas, idosos e, especialmente, crianças e adolescentes, merecem proteção especial.
A Constituição está longe da perfeição. Muitas são as lacunas. Cito apenas uma: os trabalhadores domésticos não foram equiparados aos demais trabalhadores.
Essa grave falha só foi sanada em 2013, por intermédio da emenda 72, sob fortes protestos daqueles que transferem às domésticas a responsabilidade de criar seus filhos e limpar suas latrinas.
Não surpreende que Jair Bolsonaro tenha sido um dos dois deputados que votaram contra sua aprovação.
Ainda assim, nossa Constituição não pode ser acusada de indiferente às principais injustiças que estruturam a nossa sociedade.
A Constituição, no entanto, não é uma varinha mágica. Seu desempenho depende da economia, da sociedade e especialmente das políticas levadas a cabo pelos sucessivos governos.
Com objetivo de compreender essas políticas a professora Marta Arretche e diversos colaboradores realizaram um rigoroso e extenso balanço das políticas públicas implementadas entre 1993 e 2015 pelos governos do PSDB e PT (“As Políticas da Política: Desigualdades e inclusão nos governos do PSDB e do PT”, ed. Unesp).
Apesar das diferenças ideológicas e de estratégia, as pesquisas apontam para um processo incremental de implementação dos objetivos da República pelos sucessivos governos, que teve início com a estruturação do SUS, passando pela universalização do ensino fundamental e a expansão do ensino infantil e médio, a criação de uma rede de proteção social para os mais pobres e ampliação do salário mínimo.
Os dados apontam para uma significativa redução da miséria, ainda que com um impacto tímido sobre a desigualdade.
Parte da responsabilidade pela persistência de altos padrões de desigualdade, que voltou a crescer nos últimos anos, é consequência da omissão desses mesmos governos em promover uma reforma tributária que tornasse o nosso sistema menos injusto —o que beneficia os mais ricos em detrimento dos mais pobres.
Isso sem falar nos subsídios, desonerações e outros mecanismos de transferência de renda para os mais ricos.
Em resumo, muitas das políticas progressistas de origem constitucional foram neutralizadas por um sistema tributário altamente regressivo, que foi se enraizando ao longo de décadas.
Como constata Arminio Fraga em contundente artigo publicado na revista Novos Estudos, “o Brasil é dos (países) que mais transferem para os mais ricos, e o que menos transfere para os mais pobres”.
A sistemática erosão das políticas de inclusão social de inspiração constitucional pelo presente governo, combinada com a ausência de uma discussão mais ampla sobre a redução da regressividade de nosso sistema tributário, deixa claro que se a festa do crescimento chegar, doméstica não entra, exceto se for na cozinha.
*Oscar Vilhena Vieira, professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
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