- Valor Econômico
Entidade criada por um grupo de mulheres busca corrigir a ‘discriminação’ de gênero no conselho de empresas no país
Num país onde a escravidão perdurou por quase 400 anos, a discriminação do outro é regra e não exceção. É o que mais nos distancia da possibilidade de sermos uma nação. Tanto tempo vivendo sob um regime escravagista nos condenou a jamais enxergar o outro como um de nós. Na Ilha de Vera Cruz, mas não só aqui, floresceram todas as formas de discriminação: étnica, social, de gênero, origem, opção sexual...
A escravidão, previu o abolicionista Joaquim Nabuco, “permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. A história ensina que decorria do domínio de um povo sobre outro. Na colonização das Américas, de um cálculo econômico: a acumulação de capital, uma vez que escravos eram mercadoria, não recebiam salário e isso dava às colônias do Novo Mundo, dominado pelos europeus, vantagem competitiva em relação à Asia.
O Brasil foi o derradeiro país do continente americano a abolir a escravidão, em maio de 1888. O contexto em que isso se deu evidencia a dificuldade que sempre teremos para superar o vergonhoso legado. Contrários ao fim da escravidão, barões do café ajudaram a derrubar a monarquia pouco mais de um ano após a abolição da escravatura. O regime monárquico esticou a desonra escravagista, mas a nossa República não nasceu para modernizar o país. Fruto de um golpe militar, esteve a serviço dos produtores rurais de São Paulo e Minas Gerais por mais de 30 anos, condenando os habitantes de 48% do continente sul-americano a um atraso extraordinário.
Barões do café, senhores de engenho e correlatos não só odiavam os negros; eles os desprezavam. Por isso, em represália ao fim da mão de obra escrava, forçaram o primeiro governo republicano a abrir a imigração para japoneses e europeus, especialmente das nações que viviam momentos de dificuldade. Muitos imigrantes foram tratados como escravos porque, para os capitalistas nacionais, eles eram custo.
E os escravos? Rejeitados, foram jogados à própria sorte em Estados como Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Não tinham acesso à educação, saúde, nada. Seus descendentes nasciam condenados pela cor da pele. Para sobreviver, voltaram à escravidão, disfarçada de emprego, principalmente, o doméstico.
A ignomínia nos acompanhou por tanto tempo que transbordou para outros aspectos da vida nacional. Discriminar tornou-se a principal forma de organização social. E é. As relações pessoais e profissionais, as distinções entre regiões, Estados, capitais, cidades e bairros, entre sotaques, para ficar nestes exemplos, são mediadas sempre por uma hierarquia. Esta é estabelecida por critérios como cor da pele, naturalidade, gênero, renda...
Neste imenso território, as mulheres só começaram a votar na década de 1930. Observe-se portanto o caráter da República instaurada no início do século passado. A boa nova por aqui é que, depois de superar por duas ditaduras no espaço de apenas três décadas, e de viver acelerado processo de industrialização e crescimento econômico entre as décadas de 1950 e 1980, a sociedade civil começou a andar mais rapidamente que o Estado e suas instituições anacrônicas. Esse caminhar resultou na adoção, pela Constituição de 1988, de aspectos civilizadores, como a penalização de toda e qualquer forma de discriminação.
Jair Bolsonaro chegou à Presidência da República com uma agenda recheada de ideias que contrariam avanços da sociedade no que diz respeito a direitos consagrados não só pela Constituição de 1988, mas também por jurisprudências firmadas por decisões do Supremo Tribunal Federal. Num país marcado pela distinção das minorias, soa muito fora de lugar qualquer iniciativa para reduzir direitos de cidadãos livres.
Até o momento, apesar do alarido, Bolsonaro não logrou sucesso na agenda de sua base social, de seus eleitores naturais. Mas a ameaça de retrocesso tem feito florescer uma série de iniciativas de fortalecimento da diversidade. O curioso é que, embora motivadas pelo temor ao bolsonarismo, as ações combatem a falta de diversidade perpetrada por vários setores da sociedade.
É nesse contexto que um grupo de mulheres criou, no ano passado, a WOB (podia ser no idioma pátrio, mas é a sigla de “Women on Board”, isto é, “Mulheres no Conselho”). Chris Aché, Carol Conway, Carolina Niemeyer e Patrícia Marins constataram que há pouquíssimas mulheres nos Conselhos de Administração das empresas de capital aberto e nos Conselhos Consultivos das companhias familiares, de capital fechado.
Com a ajuda de um software desenvolvido pelo Fundo Teva, a WOB mapeou, a partir dos formulários de referência, os conselhos de todas as empresas de capital aberto. Os critérios são rigorosos. Foram consideradas somente as empresas listadas e negociadas na bolsa. Ficaram de fora as companhias em recuperação judicial ou extra judicial; além daquelas negociadas em mercado de balcão. Não entraram, também, as firmas sem negociação no mês de referência da pesquisa (31 de dezembro de 2019). Empresas que não tenham enviado formulários de composição do conselho nos últimos 12 meses também foram excluídas.
As conclusões são chocantes e mostram a falta de diversidade de gênero no Brasil num segmento da vida nacional (os conselhos de empresas de capital aberto) do qual se espera mais e não menos civilidade: das 272 empresas de capital aberto, mulheres têm assento no CA de apenas 137. Apenas 46 possuem duas ou mais mulheres nos conselhos.
Com o apoio da ONU-Mulher, o WOB criou um selo de certificação para as companhias que tiverem duas ou mais conselheiras, critério que, comprovadamente, mostra força nos conselhos Quando o WOB publicou a lista das que se enquadram nesse critério, as concorrentes correram à sua porta para se comprometer a fazer o mesmo. É um bom começo.
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