Não faz sentido diferenciar problemas de liquidez de problemas de solvência
Por Luque, Silber, Luna e Zagha* | Valor Econômico
O coronavírus se alastra. A prioridade é salvar vidas e reduzir o impacto sobre empregos e renda. Estes dois objetivos parecem estar em conflito. Não o são. Salvar vidas exige tratamento médico, confinamento e distanciamento social que desorganizam a produção e a demanda por bens e serviços.
A maioria das cadeias de produção e comércio exigem contato humano. Quanto mais severo o confinamento e o distanciamento mais efetivo é o combate à doença e maior é a contração da produção, renda e emprego. O custo é de curto prazo. Um estudo da epidemia de 1918 pelo MIT e Banco da Reserva Federal dos EUA mostra uma recuperação mais vigorosa onde as medidas de contenção foram mais severas.
O custo econômico levou governos, como Inglaterra e Holanda, inicialmente a minimizar medidas de contenção e deixar a doença seguir seu curso: entre 60 a 70% da população contrairia a doença, e atingiria a imunidade de grupo. Os sobreviventes estariam naturalmente imunizados, outros teriam uma probabilidade pequena de entrar em contato com um transmissor. Uma estratégia de não intervenção tem consequências: uma alta proporção da população adoeceria, acima da capacidade de atendimento dos hospitais, e o número de mortos seria muito alto. Os governos recuaram.
Outros países focaram em testes em larga escala, isolamento dos casos positivos, e rastreio e isolamento dos que tiveram contato com casos positivos.
Em Taiwan, Japão, Cingapura, Coreia, partes da China, Suécia e Noruega esta estratégia conteve o alastramento da doença, e reduziu o impacto econômico. Poucos países têm a capacidade de testar-rastrear-isolar dos países asiáticos e escandinavos. A contenção salva vidas e atividades econômicas, mas não permite a formação de imunidade de grupo. Novos surtos da doença são possíveis.
Ausente a capacidade dos asiáticos e escandinavos, a maioria dos países optou por isolamento e distanciamento como recomendado pela Organização Mundial da Saúde. Isto gerou três choques: colapso da demanda, colapso da oferta e iliquidez do sistema financeiro.
Os EUA reagiram adotando medidas equivalentes a 10% do PIB para conter o colapso da demanda. As medidas incluem apoio à renda das famílias (assegurando renda mínima, apoios ao pagamento de alugueis, pagamento de férias por doença, proibição de cortes de eletricidade, gás, água ou outros serviços públicos), ajudas às empresas para manter o emprego, e transferências a Estados, municípios e empresas em necessidade. A Alemanha, guardiã do conservadorismo fiscal europeu, prepara um pacote equivalente a 6-7% do PIB.
Para conter colapso da oferta os governos de diferentes países intervieram nas cadeias de produção decidindo que atividades eram proritárias, quais não eram, e tomando decisões rápidas para evitar gargalos de estrangulamento, particularmente no sistema de transportes e saneamento. No Brasil, por exemplo, a colheita da safra deve ter prioridade e exige transporte. Transporte exige caminhoneiros, restaurantes abertos ao longo do caminho, postos de gasolina etc. que devem ficar abertos. Somente o governo federal pode tomar este tipo de decisões.
Para contornar os problemas de liquidez no sistema financeiro os bancos centrais nos EUA e Europa tomaram medidas ousadas, inclusive quase-fiscais: compras maciças de títulos da dívida pública e privada e regulações dos bancos comerciais; limites sobre taxas de juros e restrições sobre o uso dos recursos. Estas regulações variam país por país. Em geral devem permitir atrasos em pagamentos de hipotecas ou outros empréstimos. Estas regulações também reconhecem que em situações de crise não faz sentido diferenciar problemas de liquidez de problemas de solvência e os bancos foram instruídos a estender crédito a empresas em dificuldades e evitar falências.
No Brasil, enquanto ações sanitárias e atendimento hospitalar devem ser liderados pelos Estados, o governo federal é a única esfera de governo que pode acionar a política fiscal e monetária na escala necessária para fazer face a crise. Três ações são necessárias. A primeira é expansão do gasto público para conter o impacto sobre a renda e o emprego através de medidas tais como:
• Expansão e aumento dos benefícios da Bolsa Família com foco especial nos grupos de empregados sem carteira assinada, empregadas domésticas, ambulantes e pequenos comerciantes. A maioria da população tem renda de menos de 2 salários mínimos e é importante desenvolver programas que cheguem a estas pessoas assim como a grupos vulneráveis e.g. as populações de sem abrigo nos centros urbanos.
• Aumento dos recursos disponíveis no setor de saúde que se confronta com desafios para os quais não foi preparado.
• Programas especiais para preparação das favelas onde moram 13 milhões de pessoas em condições que tornam difícil o distanciamento.
• Expansão de transferências aos Estados e municípios que verão seus recursos minguar num período em que as necessidades aumentam significativamente.
A segunda ação para conter o impacto sobre a oferta, em colaboração com os Estados, o governo federal deveria criar um “Comitê da Crise” para tomar decisões estratégicas, evitar estrangulamentos na circulação de mercadorias e minimizar colapsos de oferta ou demanda. Este Comitê deveria também decidir como realocar recursos ociosos para setores estratégicos que movem a economia e permitam aproximar a estrutura da demanda à estrutura da oferta.
Terceiro, para manter a liquidez, a política monetária e creditícia deve ser acionada como o foi nos EUA e Europa: taxa Selic a zero, linhas de crédito às micro, pequenas e medias empresas e aos Estados e municípios a taxas de juros zero, e compras de títulos públicos e privados. Será também importante controlar juros cobrados ao consumidor e empresas que continuam exorbitantes. Os lucros anormais do setor financeiro dos últimos anos devem ser contidos.
A política fiscal e monetária deverá ser cada vez mais ativa, à medida que novos problemas forem surgindo. O governo federal está anunciando uma série de medidas recorrentemente e no sentido correto. É uma operação de guerra que necessita de sistemas nacionais eficientes e integrados.
Em uma crise de proporções nunca dantes imaginada todos os instrumentos terão que ser acionados para minimizar os custos humanos e econômicos na realidade mutante e inusitada do dia-a-dia. Mais para frente poderemos avaliar o que resta dos dogmas fiscais e monetários que dominaram as macroeconômicas políticas dos últimos 20 anos, contribuindo para o estado de despreparo no qual se encontra o país.
*Carlos Luque é professor da FEA-USP e presidente da Fipe;
*Simão Silber é professor da FEA-USP;
*Francisco Vidal Luna é professor aposentado da FEA-USP;
*Roberto Zagha foi professor assistente da FEA-USP
Nenhum comentário:
Postar um comentário