terça-feira, 19 de maio de 2020

Joel Pinheiro da Fonseca* - Quando as redes invadem as Redações

- Folha de S. Paulo

A luta para não dar visibilidade é perdida e não adianta lutar contra ela

Antes das redes sociais, era muito fácil manter uma ideia ou um personagem fora do debate público: bastava que não lhe fosse dado espaço na imprensa. Na impossibilidade de chegar a um número relevante de pessoas, a ideia ou pessoa dificilmente teria notoriedade ou fama. O sistema podia excluir pessoas de mérito genuíno, mas também barrava muitos malucos e desinformantes.

Isso mudou. As figuras mais bizarras não precisam dos holofotes da mídia tradicional para fazer fama, fortuna e até chegar ao poder. A estratégia de negar espaço não funciona mais; Facebook e WhatsApp estão abertos a todos.

Supondo que seja um objetivo da sociedade e da imprensa reduzir a quantidade de oportunistas, malucos e charlatães que vendem desinformação para o grande público, qual deveria ser a postura da imprensa profissional neste novo contexto?

Uma crítica comum ao trabalho da imprensa é a de que, quando noticia as aberrações ditas e feitas por figuras em busca de fama, isso só lhes ajuda a ficarem ainda mais famosas. Vemos isso, por exemplo, no triste espetáculo dos manifestantes pró-Bolsonaro em Brasília. Ao mesmo tempo, é importante que o público conheça o que está acontecendo no país. E o horror gera cliques.

Outra tática: promover o debate e “deixar o público decidir”. Coloca-se lado a lado alguém versado no estado atual da questão e um propagador de teorias dissidentes.

É o que vimos, por exemplo, no debate entre Geraldo Alckmin e Osmar Terra sobre a Covid-19 na CNN. No entanto, oferecer a um público leigo uma posição amparada na ciência e outra sem nenhuma base em pé de igualdade pode mais confundir do que esclarecer.

A “vitória” de um lado num debate se deve a uma série de fatores (habilidade retórica, convicção) que nada têm a ver com o mérito da questão. Aliás, o próprio sucesso dos debates acalorados tem muito mais a ver com o desejo da população de ver uma briga e torcer por um ídolo do que com um interesse real em chegar à verdade sobre uma questão.

A luta para não dar visibilidade é perdida e não adianta lutar contra ela. Não olhar o objeto não fará com que ele deixe de existir.

Mas talvez eles possam ter seu poder destrutivo mitigado. E, nesse caso, mais importante do que a atitude correta para com os monstros criados nas redes sociais quando eles já batem à porta da imprensa é pensar de que maneira a imprensa pode povoar as redes sociais, aprendendo sua língua.

O jornalista precisa se comunicar do jeito que hoje toca as pessoas: uma comunicação mais direta, em que a confiança é conquistada pela abordagem pessoal e não pela marca institucional; uma comunicação que não supõe nenhuma hierarquia entre quem fala e quem ouve. Se a Redação (e o laboratório) permanecerem distantes e misteriosos, teorias conspiratórias continuarão a pipocar.

Por outro lado, se os usuários das redes conhecerem jornalistas e cientistas que falam como eles e mostram como é feito o trabalho, temos a garantia de que o charlatão terá um contraponto no meio em que ele costuma se desenvolver.

Neste momento, estão cotados para o Ministério da Saúde uma médica propagandista da cloroquina, um deputado que previu um total de 800 mortes na pandemia e que quer abrir a economia irrestritamente e já, e, a cereja do bolo, um coach de direita e charlatão.

Estamos sendo governados por algo gestado nas redes sociais. Se não neutralizarmos esse tipo de investida contra a verdade e a ciência, seu poder sobre a sociedade só aumentará.

*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.

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