- Folha de S. Paulo
É preciso evitar tentação de que atuais acontecimentos acarretarão mudanças sem precedentes
Nas últimas semanas, todo intelectual que se preze tem dado declarações abrangentes e generalizadas sobre as grandes transformações que a pandemia vai inaugurar.
Alguns dizem que a era da globalização já acabou, inequivocamente. Para outros, nossa vida social ficará irreconhecível. Cafés, festas, restaurantes e reuniões em massa vão virar coisa do passado.
Eu me arrisco a duvidar disso.
Um vírus novo se espalhou rapidamente por todo o mundo nos últimos meses da Primeira Guerra Mundial, matando milhões de pessoas. No meio daquela pandemia também deve ter parecido que algumas coisas jamais poderiam voltar ao normal.
Muitos milhares de jovens estavam morrendo em hospitais de campanha simplesmente por terem por acaso topado com alguém que era portador do vírus.
Por que as pessoas quereriam algum dia voltar a correr o risco de contrair uma doença tão assustadora, apenas pelo prazer de dividir um drinque com amigos ou ouvir um pouco de música?
No entanto, a devastação da Primeira Guerra Mundial e da gripe espanhola foi seguida rapidamente por um mergulho delirante na sociabilidade. Os chamados "Roaring Twenties" (os loucos anos 1920) testemunharam uma explosão de cafés, festas, concertos e reuniões de massa.
Isso está longe de ser uma aberração. Ao longo da história, a humanidade já passou por muitas fases de pestilência (ou criminalidade, ou terrorismo, ou vários outros tipos de perigos à vida e à integridade física de foliões).
E, embora todos esses surtos de doenças contagiosas tenham tido consequências de longa duração, a única coisa que nunca conseguiram foi impedir as pessoas de buscar a companhia umas das outras. Afinal, somos animais sociais.
Ainda é muito cedo para prever quanto tempo vai durar a fase aguda desta pandemia. Mas o que é virtualmente certo é que seu impacto sobre a sociabilidade humana será temporário.
Dentro de cinco ou dez anos haverá tantos bares, cafés, festas, restaurantes e reuniões de massa quanto há hoje. Porque somos humanos.
O registro histórico contém poucos precedentes de fechamento duradouro de bares e restaurantes, mas não faltam exemplos de doenças que transformaram governos e sistemas financeiros de modo radical.
As pandemias passadas geraram grandes transformações políticas e econômicas, desde a queda de impérios antes poderosos até uma mudança no equilíbrio de poder entre senhores e servos.
No entanto, muitas das previsões hoje em voga sobre o impacto político e econômico da pandemia destacam excessivamente a irracionalidade (percebida) das realidades presentes, dando ênfase insuficiente ao que teria que acontecer para que fosse instaurado um sistema (supostamente) mais racional.
Segundo essas previsões, a pandemia mostrou que é irracional confiar em um sistema manufatureiro just-in-time que deixa a produção global de bens importantes vulnerável a choques em locais distantes.
E, como hoje sabemos que essas coisas são irracionais, elas vão mudar, obviamente.
Porém, como os cientistas sociais sabem há muito tempo, é extremamente comum que uma instituição persista, mesmo tendo falhas profundas.
Com muita frequência, aqueles que mais se beneficiariam com as mudanças não conseguem cooperar efetivamente –ou não conseguem chegar a um acordo sobre o que deve ser posto em seu lugar.
Esses mesmos problemas de ação coletiva continuam tão constantes e fortes quanto sempre foram.
Suponhamos, por exemplo, que alguns CEOs decidam transferir a produção de volta ao país de origem de suas respectivas empresas.
Como as companhias vão continuar a concorrer fortemente para ver quem consegue oferecer os preços mais baixos, qualquer iniciativa desse tipo por parte de uma empresa representaria um risco imediato à sua sobrevivência, por maiores os benefícios de longo prazo que pudesse representar para consumidores, empresas ou ambos.
No final, a maioria dos executivos provavelmente desistirá da ideia.
Isso não significa que a forma da globalização não será afetada pela pandemia. Muitos governos vão tentar repor seus estoques de artigos de importância crítica; alguns podem até ampliar sua capacidade de produção doméstica desses artigos.
Mas como esses bens essenciais compõem uma pequena fração da economia maior, isso mal retardaria a globalização, muito menos a reverteria.
A pandemia atual é uma tragédia de magnitude histórica. É muito possível que venha a ser lembrada como o evento global mais significativo desde a queda da União Soviética. Não quero de maneira alguma minimizar sua magnitude ou o sofrimento que ela vai causar.
Mesmo assim, ainda é importante evitar a tentação de pensar que os acontecimentos presentes certamente vão acarretar transformações sem precedentes.
Cedo ou tarde esse surto de pestilência vai acabar, como tantos outros na história humana. E, embora o mundo que então habitamos provavelmente terá sido transformado de muitas maneiras importantes –incluindo algumas que não estamos conseguindo prever—, ele estará longe de ser irreconhecível.
*Yascha Mounk, o cientista social Yascha Mounk é professor associado na Universidade Johns Hopkins e autor de "O Povo contra a Democracia".
Tradução de Clara Allain
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