terça-feira, 19 de maio de 2020

Assis Moreira - EUA querem a China fora da OMC

- Valor Econômico

Anúncio da saída de Roberto Azevêdo da direção da OMC provoca especulações sobre um futuro político no Brasil

A sucessão de Roberto Azevêdo na direção-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), nos próximos meses, vai ser marcada pela competição geopolítica entre os Estados Unidos e a China. Sem surpresa, porque todos os assuntos hoje na cena multilateral de comércio estão dominados pela polarização entre Washington e Pequim.

A administração de Donald Trump quer isolar os chineses. Uma opinião crescente em Washington é de que ou a China é empurrada para fora da OMC ou a OMC terá de mudar muito para os EUA continuarem na entidade.

Uma grande frustração americana, porém, é que sua intenção de colocar a China fora da OMC não tem o eco esperado nem entre seus aliados mais próximos. Nenhum país quer comprar, abertamente pelo menos, uma briga feia dos EUA com Pequim. Como parceiros não encampam os planos americanos, restará a Washington continuar asfixiando a entidade, até que os outros países se submetam a uma reforma profunda.

A principal queixa americana na OMC é de que os chineses têm status de país em desenvolvimento, o que significa prazos e concessões mais flexíveis. Washington acha isso um absurdo e fez propostas para enquadrar o Tratamento Especial e Diferenciado (TED). China, Brasil e outros grandes emergentes não terão essa vantagem nas futuras negociações.

Além disso, os EUA alegam que as regras da OMC não são capazes de enquadrar a economia chinesa, porque elas foram feitas para disciplinar economias de mercado de maneira geral. E a economia chinesa, com o grau de intervenção tão alto do Estado, distorce o campo de competição em favor das suas empresas.

Outra reclamação é que as regras de propriedade intelectual da OMC não coíbem roubo de patentes pela China. Alegam que uma empresa americana, para entrar e investir no mercado chinês, é obrigada a fazer joint venture. A parte chinesa então rouba a tecnologia e eventualmente chuta o parceiro para fora do negócio, mais tarde.

Os EUA, como os outros, perderam também uma flexibilidade para inflar sobretaxa antidumping contra produtos chineses. Isso depois de ter acabado um período pela qual os parceiros podiam automaticamente classificar a China como economia não de mercado.

Agora, todo mundo precisa seguir as regras mais rígidas se quiser aplicar sobretaxa contra os chineses.

A administração Trump já paralisou o Órgão de Apelação da OMC, espécie de corte suprema do comércio internacional. E elevou tarifas sob pretexto de segurança nacional, por exemplo. Para importantes negociadores, a esta altura seria melhor ter os EUA fora da OMC do que dentro. Afinal, fazem “barbaridades” e não respeitam as regras mesmo.

De seu lado, a China rechaça em bloco as queixas americanas. Insiste que é tudo mentira e que não distorce a economia com seus subsídios, não controla preço etc., e o funcionamento de sua economia não é tão diferente - contrariando as evidências.

As relações EUA-China pioraram recentemente, por causa da pandemia de covid-19. Trump já ameaçou romper relações bilaterais, certamente achando que jogar gasolina na fogueira pode ser-lhe útil na campanha eleitoral.

É com esse pano de fundo que vai se desenrolar a escolha para diretor-geral da OMC, entidade-chave para a estabilidade da economia mundial. Os EUA e a China não vão apresentar candidato próprio. O desafio será encontrar alguém que não provoque alergia nos dois lados. Ou seja, alguém como o próprio Azevêdo, que conseguiu transitar bem entre os dois, fazendo pontes e evitando uma deterioração maior na OMC.

Antes da posse de Trump, os países conseguiram duas conferências ministeriais bem-sucedidas, em Bali (Indonésia) em 2013, e em Nairóbi (Quênia) em 2015. E um episódio mostra como Azevêdo funcionou: durante a negociação para expandir o Acordo de Tecnologia da Informação (ATI), bastava uma última discussão entre Pequim e Washington. Mas o telefonema entre seus representantes fez a negociação desmoronar. Azevêdo entrou como intermediário e, duas semanas depois, concluiu o acordo que parecia irremediavelmente perdido.

Com Trump, veio a fase de crise quase permanente. O primeiro choque causado pela administração americana foi retirar os EUA do acordo de Parceria TransPacífico (TPP), originalmente desenhado por Barack Obama para se contrapor a Pequim na Ásia.

O passo seguinte seria retirar os EUA da OMC. Evitando o choque de frente com a Casa Branca, Azevêdo, diplomaticamente, conseguiu evitar uma ruptura brutal. E lentamente atraiu a administração Trump a se engajar de novo, por exemplo, na negociação sobre comércio eletrônico, de especial interesse americano.

Em todo caso, hoje a convicção de altos funcionários do governo Trump é de que Washington conseguirá isolar a China nos organismos internacionais. Para alguns observadores isso é difícil com o poderio financeiro chinês.

Quanto ao Brasil, aliado dos EUA, vai ter de navegar com cuidado na escolha do novo diretor da OMC e não trombar de frente com Pequim. Na eleição recente na Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), o Brasil escolheu o candidato de Cingapura, defendido pelos EUA, contra o candidato chinês. No comércio, a situação não é idêntica. A China é o maior parceiro comercial do país. Nada menos de 76% do saldo da balança comercial brasileira entre janeiro e abril vem apenas do comércio com a China, comparado à média de 45% nos últimos anos.

Futuro político
O anúncio da demissão de Roberto Azevêdo da direção da OMC provocou especulações sobre um futuro político no Brasil. Foi algo rejeitado pelo próprio Azevêdo. Mas o Brasil tem hoje uma imagem horrível na cena internacional, provocada por Jair Bolsonaro, com evidente incapacidade de governar. No exterior, especulação sobre Azevêdo não vem portanto como surpresa. É o brasileiro que alcançou o maior posto na cena multilateral, com habilidade reconhecida e forte reputação internacional. No meio da forte polarização no país, ele é visto como um nome que poderia ser considerado para uma chapa que ajude o país a superar a situação atual.

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