- Valor Econômico
Há um certo consenso de que, no curto prazo, a pandemia será desinflacionária, mas o debate sobre para onde vai a inflação no pós-pandemia segue acalorado
No início do choque da covid-19, havia dúvidas se esse levaria a inflação para cima ou para baixo. Os inflacionistas enfatizavam a forte queda da oferta provocada pelas medidas de combate à pandemia e, no caso das economias emergentes, a desvalorização cambial. Já os deflacionistas entendiam ser o choque deflacionário, por entender ser o efeito dominante a grande retração da demanda trazida pelo choque, não só pela queda do consumo, por as pessoas ficarem em casa, e do investimento, com a alta da incerteza.
A evolução da inflação nas últimas semanas favorece os deflacionistas. Nos EUA, o índice de preços ao consumidor, com ajuste sazonal, apresentou deflação tanto em março (-0,4%) como em abril (-0,8%), levando a alta dos preços acumulada em 12 meses para apenas 0,3%. No Brasil, a inflação foi na mesma linha, com o IPCA subindo 0,07% em março e caindo 0,31% em abril.
Mas a pandemia é só parte dessa história. Em especial, a queda do preço do petróleo também ajudou a derrubar a inflação. Basta ver que, no Brasil, o preço da gasolina ao consumidor caiu 1,8% em março e 9,3% em abril. Como esta tem peso de 5,1% no IPCA, se o preço da gasolina não tivesse caído, não teria havido deflação em abril. Assim, a alta de mais de 40% no preço do petróleo este mês pode mudar um pouco esse quadro.
Na ata da reunião de 5 e 6 de maio do Copom, o Banco Central se alinha a uma visão, senão deflacionista, pelo menos desinflacionista: “Os membros do Copom (...) [r]eafirmaram sua opinião de que o impacto da pandemia sobre a economia brasileira será desinflacionário e associado a forte aumento do nível de ociosidade dos fatores de produção”. Esta também parece ser a opinião dos analistas de mercado consultados pelo Boletim Focus, que no último mês reduziram de 3,1% para 1,6% sua previsão de inflação para este ano.
No todo, há um certo consenso de que, no curto prazo, a pandemia será desinflacionária, mas o debate sobre para onde vai a inflação no pós-pandemia segue acalorado, como aliás retratado no Valor de ontem (glo.bo/2LHBrGc). Sábado passado, por exemplo, Mike Mackenzie, colunista do FT, publicou uma interessante coluna sobre porque investidores prudentes deveriam se dispor a pagar por proteção contra a inflação (ver on.ft.com/3bHaDkd). Como eu fiz neste espaço há nove meses, ele aponta a atratividade do investimento em ouro como uma proteção à perda que pode vir da alta da inflação para investidores em títulos públicos (ver glo.bo/3dSbBeI). De fato, de lá para cá, o ouro já se valorizou 21%, em dólares.
A melhor caracterização desse debate, porém, está em uma publicação do Deutsche Bank, disponível em podcast (ver bit.ly/3bJ8aFG).
O argumento deflacionista, que me parece mais bem estruturado, é que, com o fim da quarentena, a normalização da demanda ocorrerá mais devagar que a da oferta. Isso porque o desemprego permanecerá alto, limitando a demanda por aumento salarial, e as pessoas terão receio de sair de casa - quando se vai ter outra vez coragem de ir ao cinema ou ao teatro? A experiência com outras pandemias também mostra que após essas passarem as famílias aumentam sua poupança precaucional.
Também haverá muita capacidade ociosa e a incerteza permanecerá alta, desencorajando o investimento. Além disso, as empresas sairão da crise ainda mais endividadas, já que muitas medidas de apoio passam por dar créditos às empresas. A necessidade de reduzir o endividamento corporativo será outra força deprimindo a demanda por investimento.
Espera-se que o déficit público permaneça alto nos próximos anos, mas esse cairá bastante em relação a este ano. Também daí teríamos um efeito contracionista. Além disso, a baixa inflação dos próximos anos acabaria jogando as expectativas de inflação para baixo. No todo, a visão de quem está desse lado é que as economias desenvolvidas ficarão cada vez mais parecidas com o Japão.
O argumento inflacionista é de que haverá um grande aumento dos custos de produção, que jogará a inflação para cima e, com ela, as expectativas de inflação. O aumento de custos viria com a necessidade de ampliar o capital por unidade de produto - por exemplo, com menos mesas e passageiros sendo atendidos nos restaurantes e aviões - e pela aceleração do processo de desglobalização, que resultaria em menor crescimento da produtividade e maior poder de barganha dos sindicatos.
Além disso, e esse é o argumento que cala mais fundo, a inflação seria necessária e atrativa politicamente para permitir trazer a razão dívida pública/PIB para baixo, amenizando a pressão por cortes de gastos públicos e aumento da tributação. Numa versão mais amena, o argumento seria que, dado o elevadíssimo nível da dívida pública, os bancos centrais teriam receio de subir juros em um contexto de alta da inflação, numa situação conhecida como dominância fiscal.
Obviamente, tudo isso é condicionado à pandemia do Covid-19 ser controlada, mas não acabar. Muito, ainda que não tudo, pode mudar se uma vacina for descoberta.
*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV e professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ.
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