domingo, 10 de maio de 2020

O que a mídia pensa - Editoriais

• A marcha da destruição – Editorial | O Estado de S. Paulo

Bolsonaro pode agora acrescentar mais um aos seus adversários: a comunidade médica internacional

Há poucos dias o Imperial College de Londres divulgou um dos cálculos mais horripilantes sobre a marcha da destruição do vírus: entre 48 países, o Brasil tem a maior taxa de transmissão – 2,81 para cada infectado. A favorecer o inimigo, o País tem muitos agravantes, como falta de testes, má distribuição de UTIs por regiões e por classes, subnotificações, déficit de saneamento básico ou a densidade das favelas, às vezes com três ou mais pessoas de gerações diversas ocupando o mesmo cômodo. Ainda assim, “a maior ameaça à resposta do Brasil à covid-19 talvez seja o seu presidente, Jair Bolsonaro”. O alerta é tanto mais grave por ter sido lançado por alguém que não pode sequer remotamente endossar o figurino de “comunista” ou qualquer outro chavão conspiratório do presidente, mas pela revista científica de medicina e saúde pública possivelmente mais reputada do mundo, a Lancet, em editorial exclusivamente dedicado à marcha da destruição de Bolsonaro.

Na mesma semana em que o número de mortos no País dobrou (deixando-o abaixo apenas dos EUA em novas mortes), no mesmo dia em que Bolsonaro marchava sobre a Praça dos Três Poderes com um plantel de ministros e empresários para intimidar a Suprema Corte a relaxar o confinamento, a revista lembrou a turbulência intempestiva manufaturada pelo presidente com a demissão de dois ministros e as agressões à imprensa, governadores e instituições da República, frequentemente ante aglomerações inflamadas por ele. “Tamanha balbúrdia no coração da administração é uma distração mortal no meio de uma emergência de saúde pública e é também um sinal chocante de que o líder do Brasil perdeu sua bússola moral, se é que já teve uma.”

A revista não citou, mas poderia, se quisesse diagnosticar a fundo essa sociopatia, o fato de que a única campanha nacional que o governo promoveu foi não para conscientizar a população de cuidados elementares de higiene, mas, ao contrário, para incitá-la a ir às ruas contra as orientações do seu próprio Ministério da Saúde e dos governos regionais.

O delírio virulento de Bolsonaro é tal que, ao tentar justificar o seu emblemático “E daí?” – que, por sinal, serviu de título ao editorial –, ele, não contente em culpar as quarentenas estaduais pelos incontornáveis danos econômicos, chegou a culpá-las pelas próprias mortes: “Essa conta tem que ser perguntada (sic) para os governadores.”

Como que a corroborar essa posição, durante a Brazil Conference Harvard MIT – que conta com o apoio do Estado –, os governadores João Doria (PSDB-SP), Helder Barbalho (MDB-PA), Renato Casagrande (PSB-ES) e Flávio Dino (PCdoB-MA) acusaram o “vácuo de liderança” e a falta de “lealdade corporativa” por parte de Bolsonaro.

“O Brasil só deve ter um adversário, que é o novo coronavírus”, advertiu Barbalho. Mas, apesar da perene “opção pelo enfrentamento” de Bolsonaro (como disse Casagrande) acumular inumeráveis inimigos em sua lista negra imaginária (imprensa, OMS, Congresso, STF, até seu antigo partido, o PSL, ou ex-ministros como Sérgio Moro e Henrique Mandetta), ele não só é incapaz de enfrentar o único inimigo que importa, como o municia dia sim e outro também. Como disse Doria, ao desafio dos governadores de enfrentar as resistências da população ao isolamento social, o comportamento de Bolsonaro acrescenta um “segundo enfrentamento”. Em meio ao conflito de mensagens “eu fico imaginando”, disse Barbalho, “como o cidadão no interior do Estado se pergunta o que deve fazer”.

Agora, Bolsonaro pode acrescentar aos seus adversários mais um: a comunidade médica internacional. Dando voz a ela, para não dizer a todos os inimigos da morte, a Lancet concluiu: “O Brasil precisa se unir para dar uma clara resposta ao ‘E daí?’ de seu presidente. Ele precisa mudar drasticamente o seu curso ou deve ser o próximo a ir embora”. Cada vez que tergiversa nesta resposta, o País dá um passo para consolidar na comunidade global a percepção de que ele é um pária – um amigo doentio de um inimigo mortal, que precisa ser isolado.

• Bolsonaro e o pessimismo da razão – Editorial | O Estado de S. Paulo

Brasil tem de aprender com experiência italiana

Na rotina que criou para as manhãs de domingo, quando comparece a manifestações de simpatizantes que pedem o fechamento do Congresso e do Judiciário, o presidente Jair Bolsonaro tem, ultimamente, tratado de questões que dizem respeito à estrutura constitucional do País. Há três domingos, por exemplo, em frente ao Quartel-General do Exército, em Brasília, ele disse que obedece à Constituição, mas que respeita a vontade do povo, do qual se apresenta como porta-voz.

“Não queremos negociar nada. Queremos é a ação pelo Brasil. Agora é o povo no poder.” Depois, esquecendo-se de que no Estado de Direito ninguém está acima da lei, afirmou: “Eu sou a Constituição”. No último fim de semana, irritado com a decisão do ministro Alexandre de Moraes, que impediu a posse do delegado Alexandre Ramagem na chefia da Polícia Federal, o presidente foi ainda mais direto. “Não engoli ainda essa decisão do senhor Alexandre de Moraes. Não engoli. Não é essa a forma de tratar um chefe do Executivo que faz todo o possível pelo seu país. (...) No meu entender, foi uma decisão política. Eu respeito a Constituição, mas tudo tem um limite”, disse ele.

Afirmações como essas, que exaltam a importância da Constituição ao mesmo tempo que justificam o desrespeito a ela, não são novas na vida política contemporânea. Há quatro décadas, quando a Itália vivia uma das mais graves crises institucionais desde sua redemocratização, causada pelo assassinato do ex-primeiro-ministro Aldo Moro, falas como as que Bolsonaro hoje repete foram abundantes. E mereceram críticas de intelectuais respeitados e insuspeitos, como Norberto Bobbio, professor em Turim e articulista de importantes jornais italianos.

Num artigo publicado em 1978, Bobbio afirmou que a Constituição italiana era mais do que um texto jurídico. Para um país que saíra da barbárie do fascismo, era “um compromisso, necessário e a longo prazo benéfico, entre forças políticas apoiadas em ideias morais e sociais diferentes, algumas vezes até opostas”. O que se espera da Constituição é que ela defina as regras do jogo. Mas o modo como um governo se conduz nesse jogo, “se deve colocar-se mais à esquerda ou mais à direita, se deve ir ao ataque ou fechar-se na defesa, nenhuma Constituição o pode estabelecer”, dizia Bobbio.

Portanto, o modo de jogar dentro das regras depende da habilidade política e da envergadura dos jogadores. Os debates e os conflitos podem ser acirrados, mas enquanto as regras do jogo forem respeitadas, os jogadores são apenas adversários. Qualquer afronta a essas regras rompe o pacto constitucional, levando-os, então, a se converterem em inimigos. E essa é a lógica da guerra e da barbárie, segundo a qual quem não é amigo tem de ser destruído, lembrava Bobbio.

Seu maior temor era com relação aos maus jogadores – aqueles que, por falta de competência, habilidade e envergadura, costumam “apresentar como pretexto de seus insucessos o fato de não poderem ir além do que as regras permitem”. São pessoas perigosas, porque falam como adversários, mas agem como inimigos, pondo em risco assim as instituições democráticas. Estes é que têm de ser denunciados e combatidos enquanto for tempo, concluía.

Em outro artigo publicado à época, Bobbio advertiu para o risco de a democracia se degenerar caso esses maus políticos chegassem ao poder, valendo-se das regras democráticas para destruí-las. Diante desse risco, num momento em que a democracia italiana estava ameaçada por extremistas, Bobbio afirmou: “Deixo para os fanáticos, aqueles que desejam a catástrofe, e para os insensatos, aqueles que pensam que no fim tudo se acomoda, o prazer de serem otimistas. O pessimismo é um dever civil. (...) Só um pessimismo radical da razão pode despertar com uma sacudidela aqueles que, de um lado ou de outro, mostram que ainda não se deram contam de que o sono da razão gera monstros”.

Antes que seja tarde, essa é a lição que o Brasil tem de aprender com a experiência italiana, para evitar a ruptura da democracia.

• Depois da guerra, hora do ajuste – Editorial | O Estado de S. Paulo

As medidas excepcionais de combate à pandemia do coronavírus e a seus efeitos econômicos ficam regularizadas com a aprovação final do chamado orçamento de guerra. Apesar dessas medidas, a economia brasileira ainda sofrerá danos importantes nos próximos meses. O balanço final de 2020 apontará, com certeza, queda significativa em relação ao nível de atividade do ano passado, além, é claro, das perdas mais importantes – vidas levadas pela doença e enorme sofrimento para as famílias atingidas pela covid-19. Gastos maiores e facilidades tributárias poderão, no entanto, atenuar o desastre. Na melhor hipótese, servirão para limitar o número de mortes, poupar famílias de maiores dramas e conter as falências e demissões. Mas o governo só ficará livre das normas de responsabilidade fiscal até o fim do ano. Ninguém deveria esquecer ou menosprezar esse fato.

O estado de calamidade reconhecido pelo Congresso terminará, oficialmente, em 31 de dezembro. Chegará ao fim, na mesma data, o chamado orçamento de guerra. Até lá o governo poderá operar sem meta fiscal, isto é, sem levar em conta um limite para o déficit primário (calculado sem os juros). Também ficará dispensado, até lá, de observar a regra de ouro das finanças públicas, a proibição de se endividar para cobrir despesas de custeio, como folha de salários e consumo de eletricidade. Toda essa liberdade é justificável, nesta fase, porque é preciso enfrentar uma pandemia devastadora e evitar perdas econômicas desastrosas.

Também o Banco Central (BC) ficará mais livre para atuar. Durante a calamidade, poderá comprar títulos de empresas privadas e financiá-las diretamente, isto é, sem depender da intermediação bancária. As compras poderão passar de R$ 900 bilhões, segundo estimativa citada pelo presidente da instituição, Roberto Campos Neto. Envolvido na ação anticrise desde os primeiros sinais da epidemia no Brasil, o BC já anunciou várias medidas para facilitar o crédito e acaba de cortar novamente os juros, levando a taxa básica a 3% ao ano, um piso recorde. Com o orçamento de guerra, ganhará um espaço precioso para atuar.

Encerrado o prazo oficial da calamidade, sobrarão, no entanto, os custos fiscais das ações de emergência. O déficit primário poderá chegar a R$ 600 bilhões, várias vezes maior que o limite fixado na previsão orçamentária, R$ 124,1 bilhões. A dívida bruta do governo geral deverá estar no intervalo de 84% a 90% do Produto Interno Bruto (PIB), segundo projeção do Ministério da Economia. O objetivo oficial, até o começo das ações emergenciais, era mantê-la abaixo de 80%. Isso foi possível até março, quando a dívida bruta, de R$ 5,76 trilhões, ainda equivaleu a 78,4% do PIB estimado pelos economistas do Banco Central.

Em janeiro estará novamente em vigor o velho conjunto de regras fiscais. Mesmo sem isso, o governo deveria cuidar seriamente de suas contas, para preservar sua credibilidade. Disso depende a classificação do risco soberano. Além do mais, a classificação do crédito soberano pode afetar também as empresas, tanto as estatais como as do setor privado. Quando o Brasil perdeu o chamado grau de investimento, no final do período petista, foram rebaixadas também as notas de empresas de excelente reputação.

Perda de credibilidade resulta normalmente em piora das condições de financiamento. Não adianta, nesse caso, o BC insistir na política de juros baixos, porque o financiamento das contas públicas dependerá principalmente do mercado.

Ao anunciar o novo corte de juros, na quarta-feira passada, o BC chamou a atenção para o risco de abandono permanente da pauta de ajustes e reformas. Não foi um alerta gratuito. As pressões para o relaxamento fiscal, com apoio dentro do Executivo, são inegáveis. Ocupado com a reeleição e com a ampliação de sua base de apoio, o presidente da República mostra pouca ou nenhuma preocupação com a sustentabilidade fiscal. Também isso complica a tarefa da equipe econômica, isolada no governo quando o assunto é o cuidado com as contas públicas.

• Pedágios do centrão – Editorial | Folha de S. Paulo

Bolsonaro pagará apoio com cargos, desgaste de imagem e risco de deslealdade

Não se sabe ainda o que revelarão as investigações acerca de atos de Jair Bolsonaro, seus filhos e aliados, mas o presidente decerto as teme. Sinal eloquente disso é a decisão temerária de entregar a sobrevivência de seu governo a parlamentares do chamado centrão.

Se o apoio desse grupo político fisiológico custa caro para qualquer governante, o preço se torna muito maior para Bolsonaro, que faz o movimento em meio a uma crise de governabilidade e é refém de seu discurso populista contra o que chama de “velha política”.

O primeiro e mais óbvio pedágio pela aliança será pago com cargos no Executivo que controlem verbas. Experientes, deputados e senadores que negociam votos no varejo legislativo não vendem fiado.

Com efeito, o centrão já recebeu do Palácio do Planalto um órgão pródigo em recursos e escândalos —o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), que conta com R$ 1 bilhão no Orçamento deste 2020 e foi apontado pelo Tribunal de Contas da União como uma das repartições federais mais suscetíveis a desmandos.

A tarifa do segundo pedágio deve se mostrar ainda mais inquietante para Bolsonaro e seus aliados. Está em jogo aqui a credibilidade do presidente perante sua base eleitoral mais fiel, seduzida por um discurso que associava barganhas partidárias e corrupção.

Trata-se de uma tese maniqueísta, com origens, diga-se, na Lava Jato —cujo maior expoente, o ex-juiz Sergio Moro, acaba de deixar o governo. Naturais em sistemas pluripartidários, coalizões são mais virtuosas quando fundadas em entendimento programático, em vez de na mera cooptação.
Bolsonaro envereda justamente pelo pior modelo ao fazer mesuras para figuras do centrão como os notórios Roberto Jefferson (PTB-RJ), Valdemar Costa Neto (PL-SP) e Arthur Lira (Progressistas-AL).

Pesquisas de opinião têm mostrado que o presidente perde sustentação entre os mais ricos e escolarizados. Ironicamente, esse desgaste pode ser compensado pelo apoio de trabalhadores de baixa renda que começam a receber o auxílio emergencial de R$ 600, uma iniciativa do Congresso Nacional.

A recente radicalização retórica de Bolsonaro, com ataques mais frequentes e descabelados ao Legislativo, ao Supremo Tribunal Federal e à imprensa, pode ser compreendida como tentativa de mobilizar o eleitor que já vê motivos para decepcionar-se com o “mito”.

Por fim, o terceiro pedágio a pagar é o risco de deslealdade. Se o centrão costuma ser um fornecedor confiável de votos em ocasiões definidas, não está em sua índole salvar um governo por compromisso político ou ideológico.

O mercado de votos pode ser volátil nas crises. Se o chefe de Estado perde sustentação nas ruas e crescem as perspectivas de recompensa com uma eventual mudança de governo, o fisiologismo muda rapidamente de lado. Assim se deu no impeachment de Dilma Rousseff (PT), apenas quatro anos atrás.

• A cor da renda – Editorial | Folha de S. Paulo

Cresce disparidade salarial entre pretos e brancos, que deve se agravar na crise

No ano passado, a diferença de rendimentos entre trabalhadores brancos e pretos atingiu o maior patamar desde 2016, segundo pesquisa recém-divulgada pelo IBGE. Mais afetados pelos anos de estagnação econômica, os pretos receberam, em média, apenas 55,8% da renda dos brancos —ou R$ 1.673 mensais, ante R$ 2.999.

Os que se declaram pardos saem-se apenas um pouco melhor, com média de R$ 1.719 ao mês e diferença praticamente estável em relação aos brancos no período.

Negros —que por convenção estatística incluem pretos e pardos— deverão arcar com o maior impacto da crise social anunciada pela pandemia do novo coronavírus. Quase metade deles, 47%, são trabalhadores informais, em comparação a 35% dos brancos, segundo dados do IBGE referentes a 2018.

Os negros também compõem quase dois terços (66%) dos desocupados e dos subutilizados no mercado de trabalho brasileiro.

Parte significativa da desigualdade salarial entre brancos e negros pode ser atribuída a racismo. Quando deixados de lado fatores como grau de instrução e experiência de trabalho, a parcela injustificada da disparidade na remuneração entre brancos e negros atinge o patamar de 31%, segundo estudo do Instituto Locomotiva divulgado em janeiro deste ano.

Investir em programas para maior equidade étnico-racial nas empresas, da porta de entrada aos cargos mais altos, dos processos de seleção aos planos de desenvolvimento profissional é fundamental, ainda que insuficiente.

Cabe ao Estado atentar para os efeitos da recessão que se avizinha. Para tanto, deve garantir que o auxílio emergencial chegue a quem de fato mais necessite. À Justiça cabe enfrentar casos de discriminação racial no mercado de trabalho.

Renda, no entanto, constitui apenas uma forma, importante que seja, de abordar a questão da profunda desigualdade entre brancos e negros. A longo prazo, equidade requer enfrentar questões como acesso a infraestrutura e serviços essenciais de educação, saneamento e saúde. Sem tais mudanças, as estruturas que fundamentam o racismo salarial hão de persistir.

• Epidemia reforça necessidade de reforma do SUS – Editorial | O Globo

A saúde pública tem tido grande papel na crise, o que não significa que não deva ser aperfeiçoada

A epidemia que já deixa um rastro de mais de 10 mil mortos e 145 mil contaminados ainda avança para chegar ao ápice e constrói uma agenda para o depois da crise. Nela há menos questões novas do que temas e assuntos conhecidos, mas que são negligenciados por políticos, pelo poder público em geral e pela própria sociedade, que não pressiona governos nem escolhe representantes como deveria para resolver problemas básicos que se eternizam.

Há questões que ficam presas no emaranhado da burocracia estatal e na letargia dos poderes, algumas delas paralisadas pela ação de grupos de interesse. Um exemplo consensual é o precário saneamento básico, muito falado mas sem que haja ações com a força necessária para enfrentá-lo. Espera-se que depois da crise um novo marco regulatório para o setor seja aprovado no Congresso, para que empresas privadas possam ampliar sua participação na atividade.

No atendimento à população, ao lado do merecido reconhecimento do trabalho dos profissionais de saúde, destaca-se o Sistema Único de Saúde (SUS), instituído pela Constituição de 1988 com o meritório objetivo de o Estado conceder atendimento a todos, em qualquer ponto do país, gratuitamente. Dentro da visão do “Welfare State” da social-democracia europeia, em que pesados impostos sobre a renda financiam este e outros sistema públicos, como o de educação, garantindo às famílias serviços essenciais de boa qualidade, liberando uma razoável parcela de sua remuneração para o consumo ou a poupança.

Este objetivo não foi alcançado no Brasil, pelas dificuldades fiscais do Estado, e por isso o SUS precisa ser encarado como um projeto inacabado. Mesmo na Europa o custo deste “Estado de Bem-Estar” pressiona orçamentos de países.

Na crise, o SUS tem funcionado como uma trincheira valiosa de atendimento à população, com todas as conhecidas distorções. Mas para se enfrentar a questão de maneira séria e consequente será preciso descontaminar o tema de maniqueísmos como o da “medicina pública” versus “medicina privada”. A complementação entre as duas deve ser objetivo constante.

É crucial que o SUS, onde também há centros de excelência, melhore a qualidade do atendimento, e este é um objetivo a ser alcançado não apenas pelo fim do “subfinanciamento” do sistema.

O contribuinte precisa estar seguro de que o dinheiro do seu imposto será bem aplicado. O que só acontecerá quando houver uma gestão eficiente e não apenas no SUS, mas em toda a estrutura do Estado. O ideal é que a dedicação do profissional de saúde na epidemia, (no Brasil e no mundo), motivo de justas e emocionadas homenagens, tenha continuidade na melhoria das suas condições de trabalho e de toda a estrutura, para que também a população de renda mais baixa, dependente do SUS, tenha um atendimento digno.

Pode ser que faltem recursos, mas não há dúvida de que o SUS precisa de um choque administrativo, nos seus três segmentos, União, estados e municípios. É uma estrutura gigantesca, com dezenas de milhares de servidores, R$ 140 bilhões de orçamento este ano, e que em 2019 prestou 8 milhões de atendimentos. Há outros arranjos de governança no setor de saúde — fundações, organizações sociais — com bons resultados para os usuários, por utilizarem métodos gerenciais do setor privado, fugindo da cultura autárquica e das regras do estatuto do funcionalismo público, em que a falta da meritocracia esclerosa qualquer sistema.

Em uma organização dessa magnitude, o engessamento de regras fomenta ineficiências graves, difíceis de serem revertidas com o passar do tempo. O resultado é que a conta termina sendo paga pelos milhões que dependem do atendimento do SUS na forma de um serviço de baixa qualidade, o que não significa depreciar seus servidores, dignificados na epidemia. Manter esta situação é agir contra o povo.

O foco que a epidemia fecha sobre a saúde concede a oportunidade de uma rediscussão do SUS com menos ideologia e mais fundamentação. A dedicação dos profissionais que vem sendo demonstrada na crise precisa ter sequência em um amplo projeto de modernização da saúde pública, também em favor deles.

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