Ao proibir Estados e municípios de cortar salários de servidores, mesmo em caso de grave crise financeira, o Supremo Tribunal Federal (STF) restringiu o uso das quatro operações na administração pública. A aritmética surgiu muito antes do direito constitucional, vigora no dia a dia de todas as pessoas, sem distinção de raça, renda ou religião, regula a vida empresarial e é geralmente seguida até pelo poder público, mas também nisso o Brasil é diferente. Governantes fariam bom uso dos números, especialmente em tempos de aperto, se pudessem ajustar a folha de pessoal à receita disponível e aos objetivos da administração. Mas diminuir salários e jornadas é inconstitucional, decidiram por 7 a 4 os juízes da Corte mais alta.
Trabalhadores e empresas do setor privado aceitaram soluções de emergência, recentemente, para limitar os danos da crise. Cerca de 11,5 milhões de assalariados entraram em acordos de redução de ganhos e de horas de trabalho ou de suspensão de contratos. Preservar empregos e firmas empregadoras foi o objetivo do governo ao propor essas medidas. O balanço final da recessão ainda mostrará grandes estragos, mas o quadro seria certamente bem pior sem os arranjos especiais.
Ao proibir o corte de salários e jornadas no setor público, o STF barrou também uma solução equilibrada: a redução de custos combinada com a manutenção de empregos, como lembrou o ministro Alexandre de Moraes, um dos quatro favoráveis à tese derrotada. Sem condição de ajustar a folha de pessoal aos limites orçamentários, o Executivo pode promover demissões e extinguir cargos. Para isso deve usar a saída aberta pelo artigo 169 da Constituição. Mas esse remédio, avaliado à luz das técnicas administrativas, é desnecessariamente radical.
A saída mais equilibrada e mais eficiente seria aquela indicada na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), aprovada no ano 2000, ainda na gestão de Fernando Henrique Cardoso. Essa lei foi o toque final de um bem concebido esforço de renovação e racionalização das finanças públicas. Sua aplicação disciplinou de modo muito saudável, durante vários anos, a gestão do orçamento público e o endividamento de Estados e municípios. Além disso, impôs novas normas ao uso de verbas em anos de eleição, dificultando as despesas destinadas à caça de votos.
Agora, esse esforço de racionalização foi freado pelo STF. Ao fixar limites para a relação entre gastos com pessoal e receita líquida, a LRF permitiu a diminuição de jornadas e salários como forma de ajuste. Esse dispositivo seria crucialmente importante para a arrumação das contas de Estados e municípios em péssimas condições fiscais. O bom uso dos números, normalmente acessível no setor privado, daria flexibilidade à gestão pública, beneficiando todos. Mas a racionalidade e o bom uso da contabilidade foram vetados.
Críticos da decisão do Supremo falaram em corporativismo do setor público. Alguns apontaram o contraste entre os acordos aceitos por trabalhadores privados e a posição especial dos funcionários públicos, com seus salários intocáveis. Mas um ponto essencial foi geralmente esquecido: a função específica dos órgãos governamentais.
A existência de tais órgãos só é justificada pela prestação de certos serviços à comunidade – segurança, justiça, defesa externa, regulação de atividades, definição e proteção de direitos, educação, saúde, saneamento e assim por diante. Emprego e custos salariais só têm sentido, em qualquer dos Poderes, em vista do cumprimento daquelas funções. É preciso, naturalmente, regular relações trabalhistas no setor governo, assim como nas atividades de mercado. Mas sobrepor salários e emprego aos objetivos da função pública, a ponto de quase inviabilizar a sua execução, é mergulhar num universo de ideias e palavras sem sentido. Com sua decisão, o STF pôs em xeque um fator essencial de racionalização e eficiência do setor público, a LRF. Por falar em eficiência: o Supremo começou a julgar essa lei pouco depois de sua promulgação. Isso foi há 20 anos.
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