Redução de salários é disseminada no setor privado e tida como inconstitucional no setor público
A balança da Justiça pende para o lado das corporações dos servidores públicos, dentre as quais o Supremo Tribunal Federal representa sua elite mais bem remunerada. Ontem, 18 anos depois que uma liminar suspendeu dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal, o STF, por maioria de 7 votos a 4, decidiu que os salários do funcionalismo de Estados e municípios não podem ser reduzidos - os dos servidores da União, que não eram objeto da discussão, seguem intocáveis.
O julgamento no STF foi dos menos abstratos e mais compreensíveis dos que por lá ocorrem. O momento, além de tudo, torna didático a relação entre os direitos de uma minoria, a dos servidores, e os da maioria dos cidadãos que lhes paga os vencimentos. Para enfrentar situações de desequilíbrio, a LRF determinou que, nos casos de descontrole dos entes federados - quando as despesas com folha de salários supera 60% da receita corrente líquida - seria possível cortar salários e reduzir tempo de trabalho. Uma liminar de 2002 suspendeu essa norma.
O Brasil sofre a devastação econômica causada pela covid-19. Ao menos 10 milhões de trabalhadores formais recorreram ao expediente criado por Medida Provisória que permite a redução de salários de 25%, 50% e 70%, com corte equivalente da jornada. Foi admitida até a suspensão do contrato de trabalho por um período de três meses, sem desligamento do funcionário.
O funcionalismo público passa incólume pela crise, ainda que boa parte dos Estados estejam quebrados e o déficit da União possa subir este ano para um recorde de 16% do PIB (estimativa do FMI). “A Constituição não merece ser flexibilizada por mais pesadas que sejam as neves dos tempos”, disse, ao votar contra a redução o ministro Edson Fachin. Mas para os trabalhadores comuns a irredutibilidade salarial foi flexibilizada, admitindo-se redução mediante acordo coletivo. A solução aceita por Fachin foi a do 3º parágrafo do artigo 169 da Constituição: redução da despesa em pelo menos 20% com cargos em comissão e de confiança e a exoneração de funcionários não estáveis.
O artigo 169 dispõe sobre um fato ligeiramente distinto: a não existência de prévia dotação orçamentária para contratações ou autorização específica na lei de diretrizes orçamentárias. Estados e municípios incharam a folha de pagamentos na dotação orçamentária, em detrimento de outras despesas necessárias às funções sociais do Estado. Em 2019, 16 Estados, mais o Distrito Federal, descumpriram o limite e alguns em pior situação, como Rio, Minas e Rio Grande do Sul consumiram 75% das receitas correntes líquidas com a remuneração dos servidores.
Foi para evitar isso que a LRF estabeleceu restrições, suspensas logo no início pelo STF. Outra previsão da LRF foi derrubada por 6 votos a 5, a de que o Executivo não pode unilateralmente limitar o repasse de recursos ao Judiciário e ao MP em caso de frustração de receitas - mesmo que eles não promovam cortes de despesas por iniciativa própria. Fachin foi derrotado na votação.
O mesmo artigo 169 usado para impedir o corte de salários determina que se não houver atendimento aos parâmetros previstos - dotação orçamentária suficiente, o que não ocorre quando há frustração de receitas -, “serão suspensos imediatamente todos os repasses de verbas federais ou estaduais aos Estados, DF e municípios” (parágrafo 2º). O voto contra a restrição que prevaleceu foi o de Alexandre de Moraes, que blindou as verbas de seus pares - pode-se deduzir que mesmo em caso de calamidade pública.
Essa decisão do STF levanta interrogações sobre se o Judiciário se disporá a cumprir o teto de gastos. Nos dois primeiros anos, o estouro da dotação do Judiciário foi compensado pelo Executivo, o que não poderá mais ocorrer este ano.
O resultado tornou a LRF em boa parte incapaz para deter o rombo da maior fonte de despesa dos Estados e municípios e a segunda maior da União. A média salarial do funcionalismo é mais de 50% superior aos trabalhadores da iniciativa privada e seus privilégios são fator de concentração da renda. A alternativa seria a demissão de funcionários durante crises, mas isto não existe. De 2003 a 2018, 7.766 servidores foram demitidos, 66% deles por corrupção e nenhum por mau desempenho. 223 abusaram da estabilidade, por indolência ou falta de assiduidade - 223 em 15 anos. Eles ultrapassaram 60 dias sem comparecimento justificado ao trabalho no período de 12 meses - prazo infinito na comparação com o tolerado no setor privado.
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