- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
A pandemia vai desmascarar a imprudência e a mentalidade anticapitalista de um empresariado despreocupado com seu próprio futuro
Para compreender os problemas de um capitalismo como o brasileiro, é preciso decifrar as limitações da mentalidade que o domina. Um jeito de fazê-lo é conhecer as mentalidades por ele desdenhadas, mas que expõem a lógica do que nele falta. Nosso capitalismo subverteu a lógica humanizadora da economia dos simples, desumaniza-nos na coisificação que nos subjuga e cega.
Nos anos 1950 e 1960, antropólogos americanos que se interessavam pela América Latina foram mobilizados pela Smithsonian Institution para desenvolver projetos de pesquisa na região que desvendassem a cultura de populações regionais, indígenas e camponesas. Trabalhos referenciais e esclarecedores resultaram desse projeto.
Destaco dois dos vários conceitos desenvolvidos pelos antropólogos americanos que dele participaram. Um é o de “capitalismo do tostão” (“penny capitalism”), de Sol Tax (1907-1995), que estudou culturas indígenas da Guatemala, as da eficaz economia submersa, ainda que de alcance limitado, gerada nas brechas e insuficiências do capitalismo dominante. Um sistema econômico nativo organizado a partir da lógica do mínimo.
Enquanto o capitalismo propriamente dito é o sistema econômico da grande produção e do lucro máximo, na cultura rústica dessas populações a concepção é a inversa. Aqui no Brasil, esse capitalismo minúsculo e de minorias tem sido o fator de sobrevivência de numerosas pessoas. É um capitalismo de pobre, mas de fartura contra o capitalismo dos grandes lucros, em que a pobreza é a das carências e até a da fome.
O outro conceito é o da imagem do “bem limitado”, de George Foster (1913-2006). Ele constatou que diferentes povos da América Latina entendem que tudo existe em quantidade limitada, tudo pode acabar. O oposto do capitalismo dominante, predatório e rentista, para o qual tudo é inacabável e consumível.
A economia do bem limitado é organizada para não desperdiçar o pouco, mesmo quando parece muito. Nessas sociedades, também atributos físicos e biológicos dos seres humanos existem em quantidade limitada e finita. Tudo deve ser poupado para que dure e não falte mais adiante.
Um dos bons exemplos dessa mentalidade é o do uso parcimonioso das matas pelas populações tradicionais da roça. Expressão de uma consciência preservacionista fundada na imagem do bem limitado. O que é observado também pelas populações indígenas.
Tanto no “capitalismo do tostão” quanto na imagem do “bem limitado”, as populações simples e tradicionais, em nome da condição humana, fazem a crítica implícita da concepção da economia do grande capital, lucrativa, que não hesita em ser destrutiva.
Hoje, a economia e a política brasileira que a determina estão situadas no âmbito da geopolítica de um aliado preferencial, os EUA. Tema do general Hamilton Mourão em sua campanha eleitoral. Mas sua geopolítica é a da Guerra Fria, que perdeu o sentido e acabou quando da queda do Muro de Berlim. Hoje, os supostamente perigosos comunistas de então, libertos da hegemonia soviética, são imprescindíveis à reforma do capitalismo, como sujeitos de consciência crítica, que podem ver o que empresários e economistas não veem.
A partir da Guerra Fria, confundiu-se capitalismo com democracia. O capitalismo só pode ser democrático se for regulado por valores sociais, como na economia moral das populações rústicas. Não é o capitalismo que temos tido aqui.
Já tivemos um capitalismo verdadeiro e promissor, o do nacional desenvolvimentismo, que foi desmontado em 1964. Nem a indústria, nem o agronegócio, nem os bancos de hoje podem ser definidos como verdadeiramente capitalistas: deixaram de reinvestir na preservação e expansão de um capitalismo social que lhes assegurasse a sobrevida sem o débito imprudente e antissocial da latifundização da propriedade da terra e da urbanização patológica porque destituída do que o capitalismo já possibilitou nos países civilizados.
Após a pandemia, o capitalismo não terá como retornar à era dos ganhos descomunais e suspeitos. A pandemia terá desmascarado a imprudência e a mentalidade anticapitalista de um empresariado despreocupado com seu próprio futuro. Dócil à sujeição de alianças descabidas da geopolítica que nos recoloniza, boa para o Tio Patinhas, mas péssima para o Zé Carioca.
Um capitalismo que não cria empregos nem desenvolve técnicas sociais de inserção produtiva e criativa da população é parasitismo lucrativo e nada mais. A pós-pandemia não terá como não enfrentar o desafio de reformas econômicas profundas que leve em conta o débito econômico e moral representado por dezenas de milhões de desempregados, subempregados e pessoas sem futuro, como os jovens, os mais atingidos pelos descalabros da economia neoliberal.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "O Cativeiro da Terra" (Contexto).
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