Editoriais
PEC aprovada no Senado é afronta à
democracia
O Globo
O Senado aprovou ontem, num congraçamento
raro entre governo e oposição, uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que
desfere um ataque frontal à democracia brasileira. Na superfície, essa PEC da
Bondade permite apenas instituir um estado de emergência temporário, até o fim
do ano, para ampliar o valor do Auxílio Brasil a R$ 600, beneficiar
caminhoneiros, taxistas e consumidores de gás. Seriam medidas eleitoreiras,
condenáveis em razão do impacto fiscal no Orçamento, mas até defensáveis diante
da alta dos combustíveis e da atual calamidade social — obviamente a situação
exige medidas do Congresso. Mas a PEC faz isso do jeito errado e traz
consequências inaceitáveis.
Com um olhar mais atento, logo se percebe que o novo instrumento acaba com o equilíbrio na disputa eleitoral e fere, segundo juristas, princípios fundamentais da Constituição. É por isso que, se confirmada a aprovação na Câmara na semana que vem, ele precisará ser revisado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). As mudanças equivalem a anotar um gol de mão para o time da casa na final do campeonato.
Quanto à decretação do estado de
emergência, ainda que ele valha apenas para 2022, terá aberto o precedente para
que futuros presidentes busquem aprovar PECs semelhantes. Bastará uma
justificativa qualquer para um estado de emergência — e estará liberada a
criação ou aumento de benefícios, turbinando aqueles que buscam a reeleição ou
candidatos vinculados à situação. Foi justamente para nivelar a disputa eleitoral
e evitar abusos dessa ordem que a lei proibiu esse tipo de ação.
Como o placar quase unânime da votação de
ontem deixou claríssimo, as balizas do bom senso não serão impostas pela
oposição. Receosos de ser penalizados nas urnas por barrar medidas de cunho
social, senadores contrários a Bolsonaro seguiram o voto dos governistas. Entre
o respeito à democracia e o oportunismo, ficaram com a segunda opção. Entre
eles, há até defensores do teto de gastos, atropelado pela PEC da Bondade.
Na escala dos estragos proporcionados pelo
estado de emergência em ano eleitoral, o ataque à democracia é certamente o
mais grave. Não quer dizer que sejam desprezíveis os efeitos deletérios nas
contas públicas. Pelo cálculo do senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), relator
da PEC, o impacto fiscal do que foi aprovado passa de R$ 41 bilhões. Há números
divergentes. Economistas avaliam que só o reajuste do Auxílio Brasil, se
mantido, consumirá metade do ganho fiscal da Reforma da Previdência em dez
anos. E estará desbravado o caminho. Doravante, a cada ano de eleição com
aprovação de medidas semelhantes, os brasileiros poderão esperar cifras
maiores.
Entre os eleitores preocupados com a saúde
da democracia, muitos são sensíveis à ideia de o governo ajudar a população que
passa por emergência, mesmo em anos eleitorais. Mas não é disso que se trata. O
governo federal dispõe de um arsenal de programas que poderiam ter sido
ampliados. Não é a lei eleitoral que o impede de aliviar a penúria dos
brasileiros. O fato de Bolsonaro ter escolhido como beneficiados caminhoneiros
ou taxistas mostra que o motivo para a emergência não é ajudar os mais pobres.
A PEC da Bondade é pedagógica. É uma tentativa de resolver o estado de
emergência da campanha de Bolsonaro. Não passa da legalização do gol de mão.
Denúncias contra Pedro Guimarães merecem
condenação firme do governo
O Globo
São estarrecedoras, repugnantes e graves as
acusações de assédio e importunação sexual feitas por funcionárias da Caixa
contra o então presidente do banco, Pedro Guimarães, aliado de primeira hora do
presidente Jair Bolsonaro. “Pedrão”, como era tratado na intimidade do
Planalto, pediu exoneração anteontem, a contragosto, depois de as denúncias
terem vindo a público. Não poderia permanecer no cargo, mesmo num governo
leniente com tantos escândalos.
Chama a atenção a forma como o governo
tratou comportamentos inaceitáveis, possivelmente criminosos, do então
presidente da Caixa. A situação exigiria posicionamento firme do Planalto, mas
tudo o que se viu foi a atuação de uma força-tarefa para abafar potenciais
danos na campanha de Bolsonaro à reeleição. Foi com essa preocupação que
próceres do Centrão exigiram a cabeça de Guimarães. Bolsonaro hesitou por quase
24 horas. Mesmo assim, foi incapaz de demitir o amigo — ele foi exonerado “a
pedido”. Em carta, disse que saía para não “prejudicar a instituição e o
governo sendo um alvo para o rancor político em ano eleitoral”.
É certo que o episódio causa estragos junto
a um público que resiste a Bolsonaro. Diferentes pesquisas mostram que a
rejeição do presidente entre as mulheres passa de 60%, ante menos de 50% entre
os homens. No eleitorado feminino, a vantagem de Lula sobre Bolsonaro passa de
20 pontos percentuais, quando no eleitorado como um todo não tem chegado a 15.
O histórico de Bolsonaro não ajuda. Nesta
semana a Justiça de São Paulo condenou-o a pagar indenização de R$ 35 mil à
jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo, por um insulto absurdo
de cunho sexual, proferido em 2020, depois que reportagens dela revelaram um
esquema de disparo de mensagens em massa contra o PT nas eleições de 2018.
Quando era parlamentar, Bolsonaro ofendeu a deputada Maria do Rosário (PT-RS),
afirmando que ela “não merecia ser estuprada”.
No mundo todo, o assédio e a violência
contra as mulheres têm ganhado maior relevo nos últimos anos. Movimentos como
#MeToo ou “Não é Não” se espalharam pelas redes sociais e incentivaram
denúncias de abusos. Muitos poderosos foram desmascarados e tiveram de
responder na Justiça por seus atos. A própria legislação brasileira se tornou
mais rigorosa nesses casos.
As acusações de assédio sexual contra
Guimarães deveriam ter sido tratadas pelo governo como o absurdo que realmente
são, e não como um estorvo eleitoral para um candidato em desvantagem nas
pesquisas. É sintomático que o presidente e seu governo não tenham condenado a
atitude do ex-presidente da Caixa. O que o Ministério da Mulher, da Família e
dos Direitos Humanos, tão preocupado em condenar o aborto legal, tem a dizer
sobre o caso?
Bolsonaro pode até achar que pôs uma pedra
em cima do assunto com o afastamento de Guimarães. Engano. A saída do executivo
é medida óbvia. Ele precisa ser investigado por seus atos, como manda a lei. O
caso não é apenas um obstáculo às pretensões eleitorais de Bolsonaro. Está só
começando.
Funil paulista
Folha de S. Paulo
Datafolha mostra dianteira de Haddad, o que
reforça tendência de saída de França
Pesquisa
Datafolha divulgada nesta quinta (30) parece contribuir para o
desenlace do principal imbróglio do cenário eleitoral paulista.
Trata-se da disputa entre o ex-prefeito
paulistano Fernando Haddad e o ex-governador Márcio França, cujos partidos, PT
e PSB, caminham juntos na corrida presidencial, com a chapa Luiz Inácio Lula da
Silva e Geraldo Alckmin.
De acordo com o levantamento, numa
simulação em que os dois concorrem ao Bandeirantes, o petista aparece na
liderança com 28% das intenções de voto, seguido do candidato do PSB, com 16%.
Tarcísio de Freitas (Republicanos) teria 12% e Rodrigo Garcia (PSDB), o atual
governador, 10%.
É bem duvidosa, contudo, a permanência de
França na contenda. O noticiário político tem indicado que o ex-vice de Alckmin
está propenso a ceder aos apelos do PT e abrir mão da candidatura.
É provável que se lance ao Senado, caminho
que teria se tornado, em tese, menos nebuloso com a enésima desistência
do apresentador José Luiz Datena (PSC) de participar de uma
eleição.
No cenário da pesquisa sem França, Haddad
mantém-se à frente, com 34%, enquanto Freitas e Garcia empatam em 13%, o que
sugere uma divisão dos votos do PSB entre o petista e o governador.
No quesito rejeição, o petista, diga-se, também lidera,
com 35%, seguido de França, com 20%, e dos postulantes do Republicanos e do
PSDB, ambos com 16%.
Há muitos votos a serem conquistados,
ademais. Sem França, nada menos que 20% declaram a intenção de não escolher
nenhum candidato, enquanto 9% se dizem indecisos —num sinal de que o pleito
ainda não desperta tanta atenção.
Embora divergências regionais tradicionalmente
criem embaraços para composições nacionais, trata-se, no caso de Haddad e
França, de uma situação especialmente espinhosa. A costura de uma inesperada
chapa unindo Lula e Alckmin teve forte impacto no contexto de São Paulo,
colégio estratégico para quem aspira ao governo federal.
Era natural que surgissem obstáculos para
concretizar um acordo entre políticos que poderiam estar em campos antagônicos.
Especulou-se, em meio às desavenças, que a manutenção dos dois postulantes
poderia até ser favorável para Haddad, por supostamente aplacar uma reação
antipetista.
Não há, entretanto, como escapar às
evidências de que Lula tem mantido vantagem nas pesquisas nacionais e de que
Haddad não dá sinais de perda de terreno na corrida eleitoral paulista, embora
deva enfrentar um segundo turno difícil.
Fora da Caixa
Folha de S. Paulo
Acusações de assédio exigem apuração;
tolerância à prática, felizmente, diminuiu
A permanência de Pedro Guimarães no comando
da Caixa Econômica Federal tornou-se insustentável, e o executivo pediu
demissão na quarta-feira (29), um dia depois de virem a público acusações de
assédio sexual praticado por ele.
Reveladas pelo portal Metrópoles, tratam de
toques íntimos não autorizados, abordagens inadequadas e convites inapropriados
—relatos que o agora ex-dirigente da CEF classifica como falsos.
Uma funcionária ouvida pela Folha afirmou
que, ao tentar sair da sala, o então presidente do banco a puxou pelo pescoço e
disse: "Estou
com muita vontade de você".
Segundo servidoras, os episódios ocorriam
dentro e fora da instituição, na frente de outras pessoas ou de forma
reservada. Comenta-se que ao componente sexual se somaria o assédio moral.
O caso, de acordo com o Metrópoles, está
sob inquérito sigiloso no Ministério Público Federal, e o Ministério Público do
Trabalho deu dez dias
para a Caixa e Guimarães se manifestarem.
Incluir o próprio banco nas apurações faz
sentido porque, segundo pessoas ouvidas pelo jornal O Globo, as denúncias vão
além do ex-presidente da instituição e teriam sido recebidas internamente com
um esforço para abafá-las.
É possível que essa intenção prevalecesse
se não fosse a atuação da imprensa, pois poucas coisas são tão típicas do
governo Jair Bolsonaro (PL) quanto as tentativas de bloquear os órgãos de
controle.
Dar livre fluxo às investigações, contudo,
é sempre o melhor remédio. Se as notícias estiverem equivocadas, como Guimarães
alega, sua inocência restará provada ao final do exame minucioso e imparcial
dos fatos. Se estiverem corretas, ele será julgado nos termos da lei.
Seja qual for o veredito, o episódio serviu
para mostrar o quanto a sociedade amadureceu no repúdio ao assédio sexual, uma
conduta intolerável em qualquer ambiente.
Décadas atrás, era comum que vítimas de
assédio fossem transformadas em agentes de seu próprio infortúnio e silenciadas
numa cultura machista.
Se o Brasil ainda está longe de ser um país
no qual as mulheres possam se sentir protegidas desse tipo de comportamento, há
sinais de avanço quando a justa manifestação pública força uma reação
institucional —para a qual contribuiu, ressalve-se, o temor de um desgaste
perto das eleições.
Há de chegar o dia, porém, em que o assédio
sexual será exceção, não regra, e em que a reação institucional se dará não por
simples medo das urnas, mas pelo reconhecimento do que é justo e ético.
A conivência de Bolsonaro
O Estado de S. Paulo
Acumulam-se escândalos no primeiro escalão do governo. Em nenhum deles, Bolsonaro defendeu o cumprimento da lei, facilitou a transparência ou colaborou com a Justiça
Os casos de suspeitas de crimes envolvendo
o primeiro escalão do governo de Jair Bolsonaro apresentam uma grande – e
preocupante – similaridade. Em todos, não foram os órgãos de controle da
administração federal que trouxeram o problema à tona. Em todos, o presidente
da República, sempre tão radical no discurso contra o crime, amenizou, em
detrimento da defesa da lei, a conduta dos amigos. Em todos, descobriu-se que o
governo sabia previamente da existência de indícios, mas optou por não agir. E
sempre, entre os envolvidos nos diversos escândalos, havia gente muito próxima
ao presidente da República.
O caso mais recente é escandaloso. Acusado
por diversas funcionárias da Caixa Econômica Federal de todo tipo de assédio
sexual, Pedro Guimarães era uma das pessoas mais vistas ao lado do presidente
da República. Participou de várias lives de Bolsonaro. Acompanhou o
presidente em diversas viagens. Era parte do núcleo íntimo presidencial. As
suspeitas precisam ser investigadas, mas desde já dois fatos são
significativos: (i) ninguém que acompanha o dia a dia do poder em Brasília
ficou surpreso com as denúncias; e (ii) a Caixa já tinha conhecimento de
suspeitas de crime. Conforme o próprio banco informou, o canal interno de
denúncias da Caixa havia recebido relatos de assédio por parte de Pedro
Guimarães.
No entanto, apesar de tudo isso, o caso
tornou-se inaceitável para o governo Bolsonaro apenas quando foi revelado pela
imprensa. Até então, era um não problema, com Pedro Guimarães desfrutando de
toda a confiança de Bolsonaro, sendo inclusive um dos cotados para ser o vice
na chapa de Bolsonaro à reeleição. Diante disso, e do silêncio de Bolsonaro,
incapaz de condenar toda forma de assédio sexual e de afastar o amigão Pedro
Guimarães, é lícito supor que o indigitado não teria perdido o emprego se não
estivéssemos em ano eleitoral.
Esse caso, que por si só já é altamente
constrangedor, não é o único em que Jair Bolsonaro adotou uma atitude de
conivência com as suspeitas de crime. No ano passado, o presidente da República
teve seu então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, investigado por
corrupção, advocacia administrativa, prevaricação e facilitação de contrabando,
em razão de suspeitas de facilitação de exportação ilegal de madeira para os
Estados Unidos e a Europa. Em nenhum momento, Bolsonaro defendeu o cumprimento
da lei ambiental brasileira. Limitou-se apenas, quando a permanência de Ricardo
Salles se tornou politicamente inviável, a aceitar o pedido de demissão.
Durante a CPI da Pandemia, várias suspeitas
de mau uso de dinheiro público no Ministério da Saúde vieram à tona. Em vez de
se colocar em defesa da lei, Bolsonaro sempre se pôs ao lado dos amigos. No
caso relativo às negociações para a compra da vacina Covaxin, tal foi a
passividade do presidente que um inquérito foi aberto para investigar possível
crime de prevaricação. Depois, a investigação foi encerrada, mas não porque se
concluiu que Bolsonaro atuou na defesa da lei, e sim porque a
Procuradoria-Geral da República, sempre tão camarada com Bolsonaro, entendeu
que o presidente da República não tinha o dever de agir naquela situação.
No caso do Ministério da Educação, o
comportamento foi o mesmo. Diante das graves suspeitas reveladas pela imprensa,
em vez de assegurar condições para uma investigação isenta, Bolsonaro disse que
colocava “a cara no fogo” pelo então ministro da Educação. Depois, quando a
operação da Polícia Federal foi deflagrada, alegou que tinha exagerado na
defesa do pastor. Mas ainda teve o descaramento de dizer que tráfico de
influência, crime previsto no Código Penal pelo qual Milton Ribeiro é
investigado, era algo comum, sem maior importância.
Em todos os casos, Bolsonaro teve a mesma
reação. Em nenhum deles defendeu o cumprimento da lei, facilitou a
transparência ou colaborou com a Justiça. Sua resposta foi sempre negar os
indícios, desqualificar o trabalho de quem não se subordina a seus interesses e
desviar o tema com outras pautas. Vale lembrar que, até hoje, o presidente da
República não esclareceu os 21 cheques de Fabrício Queiroz na conta de sua
mulher.
Não se combate a corrupção, ou qualquer
outro crime, dessa forma. Agir assim é preparar o terreno para novos
escândalos.
Otan de volta à guerra fria
O Estado de S. Paulo
Ainda que tardiamente, os países da Otan, ao que parece, abandonaram as ilusões e estão adotando estratégias para dissuadir nova agressões russas e enfrentar ameaças da China
Quando a Otan publicou seu último “Conceito
Estratégico”, em 2010, a Europa estava em paz e falava-se em “parceria
estratégica” com a Rússia. A bonança adquiriu tons de complacência. O então
presidente dos EUA, Barack Obama, chegou a caçoar de preocupações dos
republicanos com a Rússia: “Alô, os anos 80 estão chamando, querem sua política
externa de volta”. Há pouco, o sucessor de Obama, Donald Trump, chamou a
aliança militar ocidental de “obsoleta”, e o presidente francês, Emmanuel
Macron, disse que ela padecia de “morte cerebral”.
Uma das consequências foi a estratégia “fio
de ativação” (tripwire) após a Rússia invadir a Ucrânia em 2014 – pequenos
batalhões posicionados no Leste para ativar respostas, mas sem a participação
das grandes potências. Pouco antes da Cúpula da Otan, encerrada ontem, a
primeira-ministra da Estônia advertiu que, com os atuais planos, as repúblicas
bálticas seriam “riscadas do mapa”. O resultado da Cúpula foi o reconhecimento
de que, de fato, estes planos eram insuficientes. Agora, a Otan retomou a
doutrina da guerra fria.
Muitos historiadores veem a 1.ª e a 2.ª
Guerras como duas cenas de um mesmo conflito separadas por uma paz frágil. Ao
que parece, a 1.ª guerra fria estava separada da 2.ª por 30 anos de
globalização. O retorno se traduziu em quatro anúncios: forças em estado de
alerta sete vezes maiores; a primeira base permanente dos EUA no flanco Leste;
o convite à Finlândia e Suécia; e um novo “Conceito Estratégico” em que a
Rússia figura como “a ameaça mais significativa e direta”.
A prioridade é mostrar ao presidente russo,
Vladimir Putin, que o artigo 5.º da Aliança, segundo o qual a agressão a um
membro agride todos, é crível. Isso exigirá que os 30 membros cumpram o
compromisso de investir 2% do seu PIB em defesa. Hoje, só 9 cumprem a meta, e
19 têm apenas “planos claros” de atingi-la em 2024 – mas a procrastinação, que
até agora era a regra, precisará se tornar exceção.
Outras lições da velha guerra fria terão de
ser reaprendidas. Mas a nova também traz novos desafios. A Otan adverte para a
opacidade das intenções da China; suas “operações híbridas e cibernéticas
maliciosas e sua retórica e desinformação confrontacionais”; o controle de
setores-chave da indústria, tecnologia, infraestrutura e fornecimento; o uso da
economia para criar dependências; a expansão sem transparência de arsenais
nucleares; e, finalmente, “a parceria cada vez mais profunda” com a Rússia.
Diferentemente da antiga guerra fria, uma
repetição da estratégia de separação entre a Rússia e a China é implausível. As
ameaças na Europa e na Ásia estão cada vez mais conectadas. A participação de
países do Pacífico, como Japão, Coreia do Sul ou Austrália (todos convidados
para a Cúpula), em estratégias de dissuasão da Rússia é tão importante quanto a
participação dos ocidentais na dissuasão da China.
As batalhas na Ucrânia são o palco desse
drama global. Ironicamente, a reação defensiva da Otan pós-invasão se parece
exatamente com a ação ofensiva que Putin acusava e usou como pretexto.
Previsivelmente, a Cúpula servirá como um novo pretexto para que ele se
vitimize – e prepare novas ameaças.
Putin buscará conquistar o máximo de
territórios na Ucrânia para declarar vitória e conclamar o Ocidente a aceitar
seus termos em troca de alívio para a fome, a escassez de energia e as ameaças
nucleares. Mas apaziguar tiranos é má estratégia. Quanto mais sucesso ele
tiver, mais beligerante se tornará. A Ucrânia enfrentará uma agressão
permanente e novas agressões serão efetivadas com as mesmas armas, incluindo
crimes de guerra e ameaças nucleares. A melhor maneira de evitar outras guerras
é vencer esta, com a manutenção das sanções e mais armas para que a Ucrânia
possa negociar uma paz condizente com a sua soberania.
Analogamente, a melhor maneira de evitar
uma 3.ª guerra mundial é abandonar as ilusões e admitir que – ao menos enquanto
Putin estiver no poder e não se viabilizar uma arquitetura de segurança
construtiva com a China – o mundo vive uma 2.ª guerra fria.
Terrorismo eleitoral
O Estado de S. Paulo
Talvez pressentindo a derrota e para assustar eleitores, bolsonaristas anunciam o apocalipse caso percam eleição
Na entrevista que o senador Flávio
Bolsonaro (PL-RJ) concedeu ao Estadão, transpareceu o sentimento de
derrota que, a esta altura, parece predominar no Palácio do Planalto.
À falta de ideias ou planos coerentes, por
absoluta incapacidade, para aplacar as aflições de uma população exausta e
faminta e lhe transmitir alguma esperança por dias melhores, ao presidente da
República e sua prole não resta outra coisa senão apelar para o terrorismo
eleitoral. Pelo que se pode depreender não apenas das falas do senador Flávio
durante a entrevista, mas também das manifestações públicas de seu próprio pai,
o Brasil será o inferno na Terra caso os eleitores tenham a ousadia de não
reconduzir o “mito” ao cargo em outubro.
O senador, que coordena a campanha de
Bolsonaro à reeleição, disse ao jornal que o presidente “não terá como
controlar” seus apoiadores caso estes resolvam se insurgir com violência contra
uma eventual derrota do incumbente nas urnas. “Como a gente tem controle sobre
isso?”, questionou o senador, em referência à possibilidade de um levante
golpista no Brasil como houve nos Estados Unidos durante a invasão do
Capitólio.
É evidente que o presidente tem como
desestimular o golpismo de seus apoiadores: basta que abandone o discurso
subversivo, que há anos Bolsonaro cultiva com zelo. O risco de haver confusão
cairá drasticamente quando o presidente deixar de propagar mentiras sobre as
urnas eletrônicas, parar de atacar a Justiça Eleitoral e condenar planos de
sublevação. Ou seja, ao contrário do que sugere seu filho Flávio, o movimento
golpista dos bolsonaristas não tem nada de espontâneo – originou-se no Palácio
do Planalto e de lá é orquestrado, como uma forma de manter o País refém do
receio de tumulto nas eleições.
A tônica do discurso de campanha do
presidente não são seus planos para tirar o País do atoleiro no qual, em boa
medida, ele mesmo nos colocou. São suas desabridas desqualificações do sistema
de votação eletrônica, seus ataques contra a honra e a imparcialidade dos ministros
do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e as
ameaças de insurgência contra uma eventual derrota, um resultado bastante
provável tendo em vista a alta rejeição dos eleitores ao incumbente.
Nem o presidente nem seus aliados mais
próximos, como denota a entrevista do senador Flávio Bolsonaro, substituirão o
discurso terrorista por uma mensagem de esperança aos brasileiros. Bolsonaro é
o que é e se fez na política semeando ódio ao que lhe parece diferente,
estimulando conflitos e desafiando as instituições democráticas. Não é
improvável que, de fato, parta para a ação e faça tudo o que tem ameaçado fazer
caso entre para a história como presidente de um mandato só.
O País, contudo, dispõe de todos os
instrumentos legais para cassar candidaturas que violem a lei eleitoral e,
principalmente, para punir severamente todo e qualquer cidadão que atentar
contra o Estado Democrático de Direito consagrado desde o preâmbulo da
Constituição. Cabe à Polícia Federal, ao Ministério Público Federal e, por fim,
ao Poder Judiciário ter coragem de fazer valer todo esse arcabouço jurídico.
Reuniões da Otan e dos BCs consolidam cisão geopolítica
Valor Econômico
A cisão geopolítica se consolida e
dissemina aumento de custos e choques de oferta
A Organização do Tratado do Atlântico Norte
(Otan), que reúne as maiores potências militares ocidentais, decidiu ontem
rever sua estratégia decenal e se preparar para enfrentar o que considera o
maior perigo à segurança dos países que a compõem - a Rússia e, por tabela, a
China. A Rússia tem o maior arsenal atômico do planeta e Pequim ascende na
escalada armamentista aos primeiros lugares. No mesmo dia, em Sintra, em um
fórum dos Bancos Centrais, as duas mais importantes autoridades monetárias do
planeta, Jerome Powell (Fed) e Christine Lagarde (BCE), disseram que a época da
inflação e dos juros baixos terminou. As duas reuniões reforçaram os sinais de
uma nova ordem econômica e geopolítica.
Os pontos em comuns entre os dois eventos
vão além das sugestões dos presidentes dos BCs de que parte relevante da
trajetória da inflação é hoje determinada mais no campo de batalha em solo
ucraniano do que nas planilhas dos técnicos que indicam os parâmetros de qual
deveria ser a política monetária adequada. Ambas indicam uma cisão
determinante, menos relevante em relação à Rússia e mais em relação à China,
país que se tornou a segunda maior economia do mundo com base nas regras da
globalização - e que estão sendo reescritas radicalmente.
A política oportunista e nacionalista do
presidente Donald Trump, que elevou a China ao status de inimiga número um dos
Estados Unidos - sem reparos da Rússia, hoje aliada de Pequim, e então do
populista americano - revelou-se premonitória. Com a volta dos democratas à
Casa Branca, a política agressiva de Trump em relação à China não mudou e até
ganhou amplitude. O comunicado da Otan poderia ser tido como um resumo da
política americana. Faz um apelo retórico ao diálogo com Pequim, mas adverte:
“As ambições declaradas e as políticas coercitivas da China desafiam nossos
interesses, valores e segurança”.
Se para a Otan a Rússia, o país mais forte
da ex-URSS, é um velho inimigo, parte de um filme antigo com um enredo mais
dinâmico e igualmente perigoso, a China é a novidade enigmática, uma potência
ascendente em todos os sentidos. A aliança militar segue como sempre os
desígnios dos interesses americanos, que, sob Joe Biden, tentam restaurar uma
posição global hegemônica em um mundo que se tornou, ao que parece
irreversivelmente, multipolar.
O resultado deste embate, que apenas
começou e cujos desdobramentos são imprevisíveis, é, em alguns aspectos, uma
volta ao passado. Os orçamentos militares crescerão mais uma vez nos países
mais ricos da aliança ocidental e continuarão elevados nos Estados Unidos. As
forças de deslocamento rápido da Otan deverão saltar de 40 mil para 300 mil
homens, um efetivo respeitável e, também, um desperdício de dinheiro e capital
humano inimaginável no século XXI.
As precauções de segurança na estratégia da
Otan, porém, ratificam em outra dimensão a divisão já delineada entre as duas
maiores economias do mundo. A pandemia mostrou que a dependência da China de
todos os países em relação aos fármacos e equipamentos médico-hospitalares
chegou a um ponto insustentável. Como coração industrial global, o papel chinês
na produção de insumos básicos para a produção industrial no resto do mundo
tornou-se, em vez de uma benfazeja máquina de cortar custos, um handicap
logístico-político enorme.
A divisão que se consolida traz dificuldades
enormes, entre outras, para a política monetária. Às voltas com o ressurgimento
da inflação depois de três décadas, os bancos centrais reconhecem que o cisma
das cadeias de produção globais criam novos problemas e velhos conhecidos, como
aumento de custos e nacionalismo retrógrado. O fato de ser os EUA, o país que
mais pregou o liberalismo e abertura de mercados, que tenha aberto e mantido
uma escalada protecionista global, só agrava o problema.
Em Sintra, os presidentes dos BCs
reconheceram que estão em uma encruzilhada perigosa. Não há qualquer segurança
de que os preços dos alimentos e combustíveis entrarão em escala descendente ou
de que as cadeias de produção, em grande parte centradas na China, voltem a
operar como antes. Ou de que uma alta moderada dos juros possa repor algo
parecido com a normalidade. A cisão geopolítica se consolida e dissemina
aumento de custos e choques de oferta para os quais a política monetária é
sabidamente menos eficiente em combater.
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