sexta-feira, 1 de julho de 2022

Cristian Klein: Caixa de surpresas do bolsonarismo

Valor Econômico

Desistência de Datena reforça isolamento eleitoral de presidente

A força e a fraqueza do radicalismo político estão na rigidez de ideias e de métodos. De tão contundentes e persistentes são capazes de dobrar e solapar instituições e adversários - transformados em inimigos - assim como podem ser vítimas da própria intransigência e isolamento. O desempenho da popularidade do presidente Jair Bolsonaro (PL) expressa o saldo desses resultados contraditórios.

Pesquisas eleitorais, uma atrás da outra, mostram a resiliência das intenções de votos de Bolsonaro, a despeito de uma sequência de fatos políticos negativos nas últimas semanas: comoção pela morte de dois defensores da Amazônia e dos povos indígenas, em meio à política de descaso do governo em favor de grileiros, garimpeiros e madeireiros ilegais; a alta da inflação e do preço dos combustíveis; o agravamento do escândalo de corrupção no Ministério da Educação; as acusações de assédio moral e sexual contra o presidente da Caixa Econômica Federal etc.

Não há “tempestade perfeita”, pandemia, “rachadinha”, negacionismo, ameaça de golpe, nada que abale a sobrevivência eleitoral do presidente, que se mantém na faixa dos 30% dos votos válidos. É um eleitorado que já se provou cativo e, aparentemente, pouco sujeito a considerações ou flutuações de ordem econômica. Os simpatizantes de Bolsonaro concentram-se entre os evangélicos, mais expostos ao pensamento mágico e à influência de líderes religiosos midiáticos, e entre os mais ricos, menos expostos à crise e que já desfrutam do mais próximo do que poderia se tratar de um paraíso na Terra.

O primeiro grupo é radicalmente bolsonarista no campo dos valores. Não quer ver a transformação de seu idealizado mundo bíblico e milenar, ameaçado diante de uma nova moralidade identitária e de novos arranjos familiares. O segundo é radicalmente bolsonarista no campo econômico. Não quer ver mudança social que interfira em patrimônios, ganhos e privilégios vistos como direitos adquiridos, herdados ou merecidos. Tanto num quanto noutro prevalece concepção hierárquica da sociedade. Tradição e família, de um lado, propriedade do outro.

Ricos não fazem marola em eleições, ao menos pela força dos votos. O mesmo não se pode dizer dos evangélicos, segmento cada vez mais numeroso e com perfil eleitoral próprio, conservador. Considerando que Bolsonaro tem quase metade das preferências neste grupo, que representa um terço da população, é possível afirmar que quase um em cada dois eleitores do presidente seja evangélico.

O religioso convicto, por princípio, guia-se por dogmas, alguém cuja régua moral não é feita para transigir. Ancora seus julgamentos na existência de uma verdade. Nem todo dogmático é religioso, mas todo religioso tende a ser dogmático. O dogma não precisa ser complexo, geralmente não é. No fundamentalismo de ideias simples - muitas vezes toscas, ultrajantes, violentas - Bolsonaro prega um sistema de crenças dogmáticas, quase religioso. Não por acaso o “mito” mantém sua corrente política à imagem e semelhança de uma seita.

Nas redes sociais, acusações de assédio contra o demissionário presidente da Caixa, Pedro Guimarães, escudeiro de Bolsonaro em viagens, são consideradas uma “armação” de funcionárias do banco estatal para minar o governo e atingir o presidente. Em vez de repulsa, ou pelo menos desconfiança, em relação ao comportamento, bolsonaristas minimizam o escândalo e atacam as vítimas, numa inversão de valores. Nada que surpreenda para quem condena o aborto e se diz pró-vida, mas enaltece torturador e declara que vai fuzilar adversários políticos.

Num dos áudios revelados, Guimarães exerce o espírito de liberdade com que sonham segmentos de apoiadores do presidente. “Eu que mando. Isso aqui não é uma democracia!”. Simpatizantes de Bolsonaro questionam por que as denúncias vieram à tona apenas agora, perto do período eleitoral: “Coincidência?”

Mesma pergunta caberia ao “estado de emergência” com que o governo justifica a proposta de emenda à Constituição (PEC) capaz de permitir um pacote de benefícios sociais de R$ 41 bilhões às vésperas da disputa de outubro. Com a aquiescência do Congresso - aprovada ontem no Senado, em dois turnos, com a ajuda da oposição - Bolsonaro abre um rombo fiscal e mais um precedente que atropela ritos e regras do jogo.

Para usar metáfora cara ao presidente, é como se o candidato Bolsonaro jogasse “dentro das quatro linhas” mas recebesse carta branca para comprar juiz, torcida, aumentar balizas do gol adversário e acrescentar meia hora ao tempo regulamentar. As democracias têm fragilidades e gatilhos para automutilação, sobretudo em tempos de crise.

Os descalabros são tantos - e já tolerados - que não há escândalo em número ou relevância suficiente que impeça o constrangimento ou a moderação de Bolsonaro.

A força do extremismo, que desgasta e cansa as instituições, que mobiliza hostes de militância irredutível, por outro lado, tem sua contraface, ao cultivar uma insatisfação que também se mostra cristalizada. Bolsonaro tem um piso alto de votos, que impede o crescimento de uma terceira via, mas consolidou contra si uma rejeição que o derruba no segundo turno - se não já na primeira etapa, como apontam os últimos levantamentos.

Uma demonstração de como o radicalismo isola o presidente está no conjunto de pré-candidatos que têm evitado associar, em excesso, sua imagem à do ocupante do Planalto. É o caso de Cláudio Castro, no Rio, por ironia único governador do PL, mesma legenda de Bolsonaro. Ou do apresentador de TV José Luiz Datena (PSC), que anunciou nesta quinta-feira sua desistência em concorrer a uma vaga ao Senado por São Paulo. Horas antes, pela manhã, o próprio Bolsonaro havia declarado que estava tudo “fechado” com Datena. Não estava.

O refugo tem o condão de levar Márcio França (PSB) a desistir do governo e concorrer ao Senado. A mexida desenha um cenário em que, pelo Datafolha divulgado ontem, Fernando Haddad (PT) lidera com 34%, bem à frente do ex-ministro Tarcísio de Freitas (Republicanos), e do governador Rodrigo Garcia (PSDB), ambos com 13%. O segundo turno em São Paulo também não está “fechado” para o bolsonarismo.

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