terça-feira, 16 de agosto de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Editoriais / Opiniões

Risco paternalista

Folha de S. Paulo

Na campanha, poder de censura de juízes eleitorais deve ser usado com parcimônia

Ante a agenda autoritária do presidente da República, ressalta-se no pleito deste ano a principal virtude do sistema de votação brasileiro, a de ser conduzido pelo Tribunal Superior Eleitoral —um árbitro nacional, constitutivamente neutro e distanciado das tarefas de governar e aprovar as leis.

Já entre os aspectos desafiadores desse modelo está o padrão excessivo das intervenções da Justiça nas liberdades de partidos e eleitores.

O labirinto de restrições e minudências parte da própria legislação e se acentua pela atuação dos juízes, dentro da prática pouco moderna de considerar o eleitor alguém hipossuficiente, a ser protegido das artimanhas dos candidatos.

A campanha começa oficialmente apenas nesta terça-feira (16), mas o TSE já proibiu a veiculação de vídeos porque considerou que continham pedidos de votos antes do período permitido, utilizavam termos ofensivos, faziam conexões indevidas ou valiam-se de canais oficiais para elogiar o combate federal à Covid-19.

Se depender da Procuradoria que atua na corte, vai para o índex dos vídeos proibidos a investida infame do presidente Jair Bolsonaro (PL) contra o sistema eleitoral brasileiro diante de embaixadores estrangeiros. Essa documentação histórica de um dos pontos mais baixos já atingidos pela diplomacia nacional jamais deveria ser apagada.

Sob o impacto da máquina de falsificações e ameaças catapultada pelas redes sociais e manejada com gozo pelo bolsonarismo, que com ela alvejou autoridades judiciárias, o maior resguardo dos magistrados neste pleito é compreensível.

Ampliou-se o escopo hermenêutico dos juízes eleitorais, que terão o poder de suspender o compartilhamento e a veiculação de fatos "sabidamente inverídicos". Esse dispositivo, contudo, deveria ser utilizado com parcimônia.

Será mais efetivo e justo se for reduzido aos casos em que a concretude verificável dos acontecimentos não permitir a menor dúvida sobre tratar-se de uma inverdade. Se ultrapassar essas fronteiras para interpretações mais abstratas, vai cercear o debate político.

A eleição também tem um caráter de batalha encenada que, paradoxalmente, ajuda a suprimir a violência real na disputa do poder. Linguagem agressiva, críticas severas, promessas impossíveis e mentiras, desde que não criminosas, integram o seu repertório comum.

Do entrechoque entre ataques e contra-ataques no plano do discurso se forja parte da matéria que ajuda os eleitores a decidirem o voto.

Não cabe, afinal, a magistrados o papel de árbitros de fato da eleição. Esse poder exercem dezenas de milhões de cidadãos responsáveis e capazes de fazer as suas escolhas em meio à algazarra cívica.

Tragédia afegã

Folha de S. Paulo

Um ano após saída dos EUA, país vive crise humanitária e ameaça segurança global

O século 21 começou sob a égide do terrorismo e de tudo o que ele representa para o Ocidente, em especial a sensação de vulnerabilidade do fluxo incessante de bens e pessoas que marcou a globalização acelerada do pós-Guerra Fria.

A sucessão de ações militares lideradas ou inspiradas pelos norte-americanos após o 11 de Setembro tentou recuperar a ilusão de controle, com sucesso só relativo, do Afeganistão à Síria, passando por Iraque, Iêmen, Líbia e outros celeiros de grupos radicais islâmicos.

No casos afegão e iraquiano, além de intervenções para derrubar governos hostis, os EUA assumiram projetos de implantação de regimes espelhados nas democracias ocidentais. Foi um fracasso algo previsível, mais agudo em Cabul.

Ali, 20 anos de presença americana acabaram por redundar na volta dos anfitriões da Al Qaeda que golpeou Nova York e Washington em 2001, o grupo fundamentalista Talibã. Em 15 de agosto do ano passado, suas forças retomaram a capital afegã sem esforço.

Elas vieram amparadas no anúncio do presidente Joe Biden de que iria deixar de vez o país, cumprindo um acordo costurado pelo antecessor, Donald Trump. Foi a admissão de um fiasco espetacular.

As mãos lavadas possibilitariam o desengajamento de forças no sul da Ásia rumo a outras prioridades envolvendo a China, agora a rival estratégica da Casa Branca. Segundo o desenho, eventuais ameaças terroristas seriam tratadas com bombardeios precisos.

Para trás ficou o povo afegão, particularmente aqueles que não se opunham ao Ocidente —a imagem de desesperados caindo da fuselagem de um avião americano em fuga é mancha histórica indelével.

Em que pese a arbitrariedade da intervenção ocidental, houve ganhos que poderiam ter sido preservados, a começar por direitos de mulheres e minorias. Não demorou para que as promessas de comedimento dessem lugar à brutalidade do jugo de zelotes religiosos.

A crise humanitária se agravou, com 90% do país sob a linha de pobreza e 20% a mais de pessoas deslocadas de suas casas desde a saída dos ocidentais, segundo a ONU.

Mesmo sob a ótica mais cínica, o problema não tende a ser contido. Grupos radicais se disseminam, muitos rivais do Talibã. Se o mundo agora é palco renovado do embate entre potências, como mostram a guerra na Ucrânia e a crise em Taiwan, basta um atentado para que eles voltem a ser manchete.

Campanha eleitoral é tempo de paz

O Estado de S. Paulo

Ao colocar em dúvida a lisura das eleições, a retórica golpista de Jair Bolsonaro pode dificultar – ou mesmo interditar – o necessário debate sobre propostas e projetos para o País

Hoje é o início oficial da campanha eleitoral. Agora a propaganda eleitoral, inclusive na internet, é permitida. Pode haver distribuição de material gráfico, caminhada, carreata ou passeata, acompanhadas ou não por carro de som. Também é permitida a divulgação paga de anúncios de propaganda eleitoral. No período da campanha, os candidatos, partidos, federações e coligações podem realizar comícios e usar alto-falantes e amplificadores de som. A chamada propaganda gratuita no rádio e na televisão – que nada tem de gratuita – começará no próximo dia 26.

A simples menção ao que se pode fazer a partir de hoje evidencia que a Lei Eleitoral precisa ser respeitada com mais rigor. Basta ver as motociatas do presidente Jair Bolsonaro nos últimos meses. Além de desrespeitarem os prazos do calendário eleitoral, esses eventos de evidente caráter eleitoral custam caro aos cofres públicos.

Toda eleição se reveste de grande importância para a vida do País. É o momento por excelência em que o cidadão avalia o exercício do poder político, tanto no Executivo como no Legislativo. A campanha eleitoral é um chamado a que cada eleitor faça um diagnóstico dos mandatos que terminam e analise as propostas dos diferentes candidatos para os diversos cargos. É tempo, portanto, de se informar ainda com mais empenho e mais responsabilidade. Está em jogo o futuro da educação, da saúde, da economia, do emprego, da moralidade pública, da preservação ambiental e de tantos outros temas que afetam diretamente a vida e os sonhos da população.

Numa República, todos são iguais perante a lei. Mas, se o princípio da igualdade vale sempre, a eleição é uma das ocasiões em que se vivencia de forma mais explícita sua força. Seja qual for sua raça, origem, credo religioso, orientação ideológica, grau de instrução, situação patrimonial ou local de residência, todas as mulheres e todos os homens têm exatamente o mesmo direito de intervir no futuro do País. Nas urnas, a voz de cada um tem rigorosamente o mesmo valor. Campanha eleitoral é, portanto, momento por excelência de respeito e diálogo. O bom funcionamento da democracia demanda essa livre circulação de ideias.

Se toda campanha eleitoral tem traços comuns, a de 2022 tem características próprias. É a primeira campanha eleitoral desde a Constituição de 1988 que foi precedida por ataques sistemáticos do presidente da República contra as urnas eletrônicas, por suas tentativas de interferência na apuração dos votos e por suas insinuações de que pode vir a não respeitar o resultado das eleições.

Trata-se de fenômeno inteiramente inédito, que deve despertar a vigilância máxima por parte da sociedade e das instituições. Em regimes democráticos, o Poder Executivo não interfere na realização das eleições e os eleitos tomam posse. É preciso advertir, no entanto, que a retórica golpista de Jair Bolsonaro também tensiona a democracia noutro aspecto, igualmente fundamental. Ao colocar em dúvida a lisura do processo eleitoral, ela pode dificultar – ou mesmo interditar – o imprescindível debate sobre as propostas para os problemas nacionais.

Campanha eleitoral deve ser ocasião de especial normalidade institucional precisamente para que todos possam livre e serenamente pensar as questões nacionais, dialogar com quem queira e fazer suas escolhas políticas. Não é tempo de medo, suscitando na população temores de que as regras do jogo talvez não sejam cumpridas. Em função disso, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determinou, de forma prudente e dentro da lei, no exercício de suas atribuições institucionais, que a desinformação sobre o processo eleitoral seja coibida e exemplarmente punida, podendo inclusive suscitar a cassação de candidaturas.

A pauta da campanha eleitoral não são as urnas eletrônicas, o que representaria um perverso diversionismo, privando a população de conhecer, refletir e debater sobre o que realmente importa para o País. É hora de enfrentar os temas com responsabilidade, conhecendo os candidatos, suas trajetórias e suas propostas.

Trump não está acima da lei

O Estado de S. Paulo

A sociedade americana debate se é conveniente politicamente investigar Donald Trump. Não cabe nenhuma dúvida. No Estado de Direito, todos devem responder por seus atos

A igualdade de todos perante a lei é um dos princípios republicanos que poucos países no mundo levam tão a sério como os Estados Unidos. Ali, a jurisprudência da Suprema Corte, ao longo de séculos, tem sido consistente na defesa do primado da isonomia. De modo que é surpreendente que o debate público naquele país esteja hoje debruçado sobre a seguinte questão: investigar ou não o ex-presidente Donald Trump? Não deveria haver dúvida. Ninguém está acima da lei.

Sobre Donald Trump pairam suspeitas de uso do cargo público para obtenção de vantagens financeiras particulares e de guarda irregular de documentos ultrassecretos, incluindo informações que envolvem a segurança nacional dos Estados Unidos. Há investigações em andamento para apurar esses fatos. Na semana passada, agentes do FBI realizaram uma operação de busca na casa do ex-presidente republicano em Mar-a-Lago, um resort privado em Palm Beach, na Flórida. Além disso, Donald Trump pode ser processado por seu papel de liderança na tentativa de sedição de 6 de janeiro de 2021, quando uma horda de seus apoiadores, sob ordens do então presidente, invadiu o Capitólio para sustar a certificação da vitória do democrata Joe Biden.

Na discussão sobre a conveniência de investigar Donald Trump, argumenta-se que as autoridades políticas e judiciárias dos Estados Unidos precisam fazer uma ponderação entre dois valores: a igualdade de todos perante a lei e a paz social. Investigar Donald Trump e processá-lo, argumentam os contrários à ação, ampliaria a divisão da sociedade americana, já bastante cindida, o que, no limite, poderia provocar uma tensão social de tal monta que uma “guerra civil” não poderia ser descartada. Em outras palavras: Donald Trump não deveria ser investigado porque tem muitos apoiadores, e não poucos deles são fanáticos o bastante para pegar em armas e matar ou morrer em sua defesa.

Por outro lado, os que defendem a investigação do ex-presidente republicano sustentam que tratá-lo de modo diferenciado seria ferir de morte um princípio fundamental dos Estados Unidos: a estrita igualdade de todos os cidadãos perante a lei.

A rigor, não deveria haver esse tipo de discussão. Os valores da igualdade e da paz social não são antagônicos. Na realidade, exigem-se mutuamente. Alcança-se a paz cumprindo a lei, e não o contrário. Por isso, num Estado de Direito, não deve haver dúvidas quanto à necessidade de dar continuidade a uma investigação quando, pelos critérios legais – aplicáveis a todos os cidadãos –, há elementos suficientes para isso.

No caso de Donald Trump, as investigações podem custar-lhe anos de cadeia e a inelegibilidade, especialmente por seu papel de liderança no 6 de Janeiro. A Seção 3 da 14.ª Emenda da Constituição americana proíbe que qualquer cidadão que tome parte de “insurreição ou rebelião contra os Estados Unidos” ocupe cargos públicos federais.

No Brasil, houve, anos atrás, alegações de que a investigação do petista Lula da Silva, que também conta com um grande número de seguidores, “convulsionaria” o País. Os temores mostraram-se injustificados. Lula foi investigado, processado e condenado, e não houve nenhuma convulsão social. Cumpriu parte da pena e foi solto quando o Poder Judiciário decidiu que havia razões legais para soltá-lo. Agora, há quem queira atribuir esse mesmo tipo de imunidade a Jair Bolsonaro. Com tantos seguidores – muitos deles armados –, seria arriscado pretender que a Justiça aplique a lei sobre os atos de Jair Bolsonaro. As consequências poderiam ser imprevisíveis, dizem.

O Judiciário deve aplicar a lei, de forma isenta e serena, sem medo de eventuais repercussões políticas – e sem receio de ser tachado de parcial. Quando se trata do cumprimento da lei, não há espaço para cálculos políticos. A pretensão de que alguns cidadãos ou grupos tenham um tratamento diferenciado em razão de sua popularidade contraria o princípio da igualdade e a própria ideia de justiça, que demanda imparcialidade. O Estado não pode ser refém de ninguém.

Campos Neto entre otimismo e cautela

O Estado de S. Paulo

Ele aponta sinais positivos na economia nacional, mas acentua o quadro externo desfavorável e riscos nas contas públicas

A economia mundial está desacelerando e o Brasil é um dos poucos países com revisão do crescimento do PIB para cima, disse o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, num pronunciamento marcado por alguns toques de otimismo e advertências sobre a evolução das contas públicas em 2023. “Há preocupação com a continuidade de medidas recentes”, disse o economista, referindo-se a estímulos fiscais, como o aumento do Auxílio Brasil e facilidades concedidas a taxistas e caminhoneiros. Anunciadas há pouco tempo pelo presidente Jair Bolsonaro, essas concessões, de evidente caráter eleitoreiro, foram desenhadas para valer até o fim do ano. Mas já se fala em prorrogação e falta explicar como se poderá acomodá-las – sem grave desarranjo fiscal – no Orçamento do próximo ano. O Comitê de Política Monetária (Copom), formado por diretores do BC, já havia chamado a atenção para esse problema, como lembrou o presidente da instituição.

Como indicou Campos Neto, o mercado tem elevado suas projeções de crescimento econômico para este ano, agora estimado em 2%, segundo o boletim Focus. Esse número foi atingido na sétima alta semanal consecutiva. Mas a expansão calculada para 2023 ficou em 0,41%, praticamente a mesma taxa da semana anterior (0,40%). Mas o presidente do BC expressou, em sua fala no Instituto Millenium, a esperança de melhora do emprego no próximo ano, com a desocupação recuando para cerca de 8,5%. A última pesquisa, referente ao segundo trimestre deste ano, mostrou desemprego de 9,3%, com 10,1 milhões de desocupados.

O aquecimento da economia brasileira no primeiro semestre foi apontado pelo Índice de Atividade Econômica do BC (IBC-Br), divulgado também na manhã de segunda-feira. O indicador subiu 0,69% de maio para junho, atingindo o mais alto patamar do mês desde 2013. No primeiro semestre a economia foi 2,24% mais vigorosa que em igual período de 2021 e o crescimento acumulado em 12 meses chegou a 2,18%. Esses números praticamente garantem a expansão pelo menos igual a 2%, neste ano, já estimada pelo mercado.

Também segundo a pesquisa Focus, o mercado continua apostando na manutenção da atual taxa básica de juros, 13,75%, até o fim de 2022. Só no Brasil e no Japão, disse Campos Neto, referindo-se às grandes economias, o mercado prevê a continuação dos atuais juros básicos até o fim do ano. Mas o cenário ainda poderá ser afetado, admitiu o presidente do BC, pela evolução da taxa nos Estados Unidos.

A boa notícia, nesse caso, foi a queda recente da inflação americana. Isso pode possibilitar o encerramento do aperto monetário na maior potência econômica do mundo. Isso será especialmente benéfico para o Brasil, porque cada aumento de juros nos Estados Unidos afeta os fluxos de capitais, mexe com o financiamento e com o câmbio e dificulta o afrouxamento da política pelo BC brasileiro.

Há, portanto, alguns dados positivos para sustentar a fala um tanto otimista do presidente do BC, embora as projeções do mercado ainda apontem uma quase estagnação em 2023.

Bolsonaro deixará oportunidade para o próximo governo

O Globo

Mesmo frágil, redução na folha do funcionalismo abre caminho para reforma administrativa abrangente

É conhecido o legado que o presidente Jair Bolsonaro deixará ao próximo governo: devastação na Amazônia, inflação, armamentismo, retrocesso na educação e na saúde, deterioração do Orçamento — entre tantas mazelas. Num ponto, contudo, deixará uma oportunidade: a redução do gasto com funcionalismo.

Pelos últimos dados, a despesa com pessoal do Executivo federal caiu ao menor nível em termos reais desde 2008. A União gastou R$ 157,5 bilhões no primeiro semestre com salários, aposentadorias e sentenças judiciais (ante R$ 186,2 bilhões em 2019). Como proporção do PIB, a previsão é que o gasto com pessoal atinja neste ano o patamar mais baixo dos últimos 25: 3,4% — eram 4,2% em 2017.

A redução resulta de uma política deliberada de encolhimento da máquina. Sob Bolsonaro, os funcionários federais caíram de 630 mil para 569 mil, resultado sobretudo da suspensão de concursos. O congelamento salarial na pandemia e a decisão de não reajustar vencimentos neste ano foram decisivos para diminuir as despesas. Enfim, a PEC dos Precatórios permitiu à União adiar o pagamento de dívidas com seus próprios funcionários. Tudo isso contribuiu para a queda da despesa.

Embora o patamar brasileiro esteja no mínimo histórico, os 3,4% do PIB gastos com o funcionalismo federal ainda são muito na comparação internacional. Segundo o Fundo Monetário Internacional, em 2020 foram 2,8% na Coreia, 2,4% na Indonésia, 2,2% na Espanha, 1,8% nos Estados Unidos, 1,7% no México, 1,1% no Japão e na Alemanha. Superavam o Brasil só países conhecidos pela máquina gigantesca, como Dinamarca (9,2%), Reino Unido (6,8%) ou França (6%). Levando em conta os demais Poderes, estados e municípios, a despesa brasileira com funcionalismo ultrapassa todos esses, com exceção da Dinamarca.

Não está em questão, portanto, que é preciso reduzir o gasto com funcionalismo. A questão é se a forma como isso vem sendo feito é a melhor. Embora muitos postos de trabalho cortados sejam dispensáveis, outros não são — basta lembrar o esvaziamento dos órgãos de fiscalização ambiental, responsável pela alta na devastação na Amazônia. Congelar o salário de todos não é uma política de recursos humanos distinta de dar aumento linear a todos sem levar em conta o mérito, prática canônica ao longo dos anos.

Ao mesmo tempo que encolhe a máquina, o governo se esquiva da reforma administrativa, necessidade mais urgente com a crise fiscal. É importante não apenas gastar menos, mas aprender a gastar melhor, de modo a elevar a qualidade do serviço prestado à população. É essencial premiar os melhores, incentivar práticas que dão certo, eliminar entraves que afastam bons profissionais do setor público — e, naturalmente, extinguir funções e carreiras obsoletas, como vem sendo feito.

A proposta de reforma que o governo enviou ao Congresso era ridícula por poupar das mudanças a elite do funcionalismo, os privilegiados que estão sobretudo no Judiciário, no Ministério Público, no Legislativo e nas Forças Armadas. São as categorias que mais resistiram à reforma e já se articulam para introduzir um reajuste descabido de 18% no Orçamento de 2023 aprovado pelos ministros do Supremo. A pressão só tende a aumentar. Sem uma reforma abrangente e consistente, a redução na folha do funcionalismo que Bolsonaro legará ao sucessor é fragílima.

Legislação para reduzir ICMS de armas é um erro inconsequente

O Globo

Queda de receita acarretaria menos dinheiro para várias áreas, inclusive a segurança pública

É descabido o movimento para tentar reduzir ou isentar o ICMS cobrado sobre armas de fogo. Como mostrou reportagem do GLOBO, em 23 estados há projetos de lei propondo redução ou o fim da alíquota. Em quatro — Alagoas, Rondônia, Roraima e Rio Grande do Norte — foi aprovada legislação nesses termos para compra de armas por profissionais da segurança pública, como policiais civis e militares, bombeiros e guardas municipais. Em Alagoas, também foram beneficiados os amadores dos grupo conhecido por CAC (Caçadores, Atiradores e Colecionadores).

Dos 35 projetos de lei existentes, 14 incluem essa categoria. É uma vergonha que as Assembleias Legislativas considerem abrir mão de receita necessária na construção de escolas, postos de saúde ou na própria segurança pública para baratear a compra de armamentos que contribuirão para deteriorar os índices de violência. Os deputados estaduais que apoiam essa ideia deveriam cobrar uma política de segurança pública mais eficaz dos governadores.

Armas são uma das bandeiras diletas do bolsonarismo. Desde 2019, o governo federal anunciou mais de 30 atos normativos para facilitar a compra, registro, posse e porte. Mesmo com a ação da Justiça, que barrou parte dessas iniciativas, o número registros de CACs disparou de 117 mil em 2018 para 605 mil, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

A estratégia de concentrar esforços nos parlamentos estaduais ficou explícita em encontro realizado no mês passado em Brasília pelo Proarmas, um grupo de ativistas que defende armar a população. Em meio a admiradores, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) disse que a missão de deputados estaduais era entrar com projetos de lei para reduzir o ICMS.

Longe dos maiores holofotes, a corrida pelas Assembleias Legislativas tem atraído a atenção dos defensores da expansão do armamento entre a população. O Proarmas, imitando a estratégia bem-sucedida da National Rifle Association (NRA) nos Estados Unidos, divulga a lista de candidatos simpáticos à causa. O objetivo é aumentar a presença nos legislativos estaduais.

Com a filiação no começo deste ano do presidente Jair Bolsonaro ao Partido Liberal (PL), a legenda recebeu um influxo de parlamentares estaduais: saiu de 43 para mais de cem, tornando-se a maior bancada nos estados do Rio e de São Paulo. Embora nem todos os seus representantes sejam favoráveis às armas, a adesão ao bolsonarismo tornará a cada dia mais difícil dissociar o partido dessa bandeira.

À medida que a eleição se aproxima, é esperado que eleitores contrários ao aumento da venda de pistolas, carabinas, fuzis e outros armamentos fiquem atentos ao que acontece nos legislativos locais e ao que defendem os candidatos em quem pretendem votar em outubro.

Estados investem mais, mas a conta vai chegar logo

Valor Econômico

Próximos anos serão fracos também por causa do impacto da inflação nas despesas

Movidos pelo desejo de se reelegerem, governadores estaduais fizeram investimentos pesados no primeiro semestre. Os caixas estão abastecidos com recursos que sobraram das remessas feitas pelo governo federal durante a pandemia e pelo aumento da arrecadação proporcionado pela alta da inflação e das commodities e pela recuperação da economia. Mas a previsão é que esse cenário positivo vai mudar neste semestre e, principalmente, no próximo ano, e os caixas vão emagrecer. Além disso, o que é um investimento no primeiro momento, como a construção de uma nova escola, se transforma em fonte de despesa depois, demandando a contratação de professores e a compra de equipamentos.

Um total de R$ 31,4 bilhões foi investido pelos 26 Estados e o Distrito Federal de janeiro a junho, quase o triplo em termos reais do registrado antes das eleições de 2018, segundo o Valor (9/8). Os investimentos superaram as receitas correntes, que incluem arrecadação e transferências constitucionais da União, que subiram 21% em termos reais no primeiro semestre deste ano em relação ao mesmo período de 2018.

Embora a situação não seja a mesma nos diversos Estados, uma série de fatores abriu espaço para esse aumento de gastos, com objetivos claramente eleitorais. Inicialmente havia sobras das transferências extras feitas pela União como resposta à pandemia. Já no começo deste ano a arrecadação aumentou com a elevação da inflação e alta das commodities, e o crescimento econômico surpreendeu, especialmente na área de serviços. Por outro lado, as despesas foram contidas pelas restrições atípicas, impostas aos reajustes salariais dos servidores públicos na pandemia, quando o pagamento da dívida também chegou a ser suspenso.

A sobra de caixa nos Estados se aproximou de R$ 320 bilhões no primeiro trimestre, segundo cálculo da Instituição Fiscal Independente (IFI). O dinheiro também sobrou nos municípios, que contavam com R$ 185,7 bilhões, totalizando pouco mais de meio trilhão (O Globo 23/5). Parte desses recursos tem destino certo para saúde e educação, mas houve sobras para obras.

O governo federal também ficou de olho nesse dinheiro e forçou os Estados a cortarem o ICMS aplicado nos combustíveis, energia elétrica e telecomunicações, além de ter mudado a base do cálculo do ICMS sobre combustíveis. Os municípios serão igualmente atingidos porque recebem parte do ICMS. A manobra caiu como uma luva para transformar os Estados nos vilões da alta da gasolina.

A redução de impostos sobre bens essenciais como esses é louvável até porque havia Estados que cobravam uma alíquota superior a 30%. Segundo o IFI, os Estados arrecadaram R$ 652,42 bilhões com ICMS em 2021, e 27,4% desse total, R$ 178,9 bilhões, vieram da tributação de energia e combustíveis. Mas não dá para esconder o caráter eleitoreiro da medida. A União também abriu mão de impostos federais sobre combustíveis, mas, a medida só vale até o fim do ano nesse caso.

O governo federal estimou que os Estados vão perder R$ 20 bilhões com as mudanças no ICMS. Mas números do próprio Tesouro indicam que a perda pode ser maior. O Tesouro registrou superávit de R$ 70 bilhões nos governos regionais, o que inclui os municípios, de janeiro a maio, e prevê no máximo R$ 72 bilhões para o ano todo, o que indica que os próximos meses serão de receitas magras.

O especialista em contas públicas Sergio Gobetti prevê uma perda de R$ 57 bilhões apenas no segundo semestre, quase o dobro dos investimentos do primeiro. Os próximos anos também serão fracos, antecipa, por causa do impacto da inflação nas despesas. O aumento da inflação tem efeito em dois tempos nas contas públicas: em um primeiro momento aumenta a arrecadação e, no segundo, eleva as despesas, esfumando os ganhos. A pressão por reajuste do salário do funcionalismo já é uma realidade.

Por trás desse embate, há a discussão sobre o caráter do aumento da arrecadação dos Estados. Os Estados se queixam que o governo federal promoveu mudanças nas regras tributárias baseado em uma expansão conjuntural da arrecadação, que não deve se manter a curto prazo - o Estado de São Paulo já registra desaceleração na receita.

Quatro Estados já conseguiram na Justiça liminar para abater as perdas de arrecadação da dívida a pagar ao Tesouro. Somente São Paulo vai economizar R$ 2,6 bilhões neste ano. Mudanças feitas “na marra” têm pernas curtas.

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