Editoriais / Opiniões
Pandemia distorce índice de qualidade da
educação básica
O Globo
Resultados do Ideb não captam a extensão do
retrocesso desastroso no ensino brasileiro nos últimos anos
A última edição do Índice de
Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), que avalia a qualidade das escolas
públicas e privadas, com dados de 2021, apresentou variação mínima na
comparação com 2019. Nos anos iniciais do ensino
fundamental, a nota teve leve queda e ficou em 5,8 numa escala de
zero a dez, quase idêntica à de 2019. Nos anos finais do fundamental houve
pequena elevação (de 4,9 para 5,1), e no ensino médio o
índice ficou estacionado.
Pela primeira vez, o Ideb trouxe questionários sobre a educação infantil (creches e pré-escola), deu prosseguimento a testes de disciplinas além de português e matemática (ainda restritos) e aplicou provas em conformidade com a Base Nacional Comum Curricular. Mas a realidade é muito pior do que os esforços de inovação e os números sugerem. A pandemia não apenas descarrilou o ensino, com as escolas fechadas por períodos intermináveis e sistemas remotos ineficientes. Também desregulou o “termômetro” do Ideb.
O cálculo do índice leva em conta dois
fatores: as taxas de aprovação de uma série para outra e as médias nas provas
de português e matemática. Nos últimos dois anos, tanto a rede de ensino estadual
como a municipal lidaram de forma distinta com a aprovação de alunos. Algumas
seguiram as diretrizes do Conselho Nacional de Educação e adotaram aprovação
automática. Outras, não. Essa diferença inflou artificialmente o resultado do
Ideb das que aprovaram todos os alunos e repercutiu no resultado final. Isso
precisa ser levado em conta na leitura dos dados.
Houve ainda impacto da pandemia na
avaliação usada pelo índice. Os testes foram realizados num período em que nem
todas as escolas funcionavam no modelo presencial, e várias tinham aberto as
portas havia pouco tempo. Por isso os testes para a formulação do Ideb
atingiram apenas ao redor de 70% dos alunos matriculados. “É razoável supor que
os alunos que não estavam presentes nos dias de prova em novembro e dezembro de
2021 eram aqueles de menor nível socioeconômico, que estavam acompanhando menos
as atividades escolares ou já tinham abandonado os estudos”, afirma a ONG Todos
pela Educação. Mesmo involuntária, a seleção criou mais uma distorção, que também
precisa ser considerada.
Ainda que todas essas distorções tenham
contribuído para elevar artificialmente o resultado, o nível do aprendizado
caiu em português e matemática em todas as etapas avaliadas. As médias de
alunos do 5º ano nas duas disciplinas voltaram ao nível de 2015. As de
matemática dos alunos do 9º, também. No ensino médio, a nota de matemática
voltou ao patamar de 2017. Na comparação com 2019, subiu de 15% para 34% o
percentual de crianças do 2º ano que não sabem ler nem mesmo palavras simples
como “mesa” ou “vovô”. É um quadro simplesmente inaceitável, dada a relevância
da educação para o futuro do Brasil.
A recuperação do aprendizado perdido
deveria ser a prioridade absoluta do governo eleito em outubro, já que deste
não há muito mais a esperar. O Ministério da Educação tem o dever de coordenar
com competência o trabalho de consertar o estrago em todos os cantos do país.
Nem todos os estados e municípios têm os recursos necessários. A análise
correta do Ideb 2021 é o ponto de partida.
Desnível regional continuará a desafiar os
novos governadores
O Globo
Equilíbrio fiscal e políticas públicas
testadas são essenciais para aumentar a competitividade dos estados
Atrair investimentos será prioridade para
qualquer governador eleito em outubro. Infelizmente, apesar de avanços pontuais
e décadas de incentivos federais, o Brasil ainda é um país de extremos. Mais
rico e desenvolvido ao Sul e Sudeste, menos no Nordeste e Norte, com avanços no
Centro-Oeste graças ao agronegócio. Tal cenário é descrito no 11º Ranking de
Competitividade dos Estados, do Centro de Liderança Pública (CLP).
O estudo se desdobra sobre indicadores de
educação, solidez fiscal, infraestrutura, eficiência da máquina pública,
sustentabilidade, segurança, potencial de mercado, inovação e capital humano
para elaborar um ranking. São Paulo aparece
em primeiro, como estado mais competitivo. O Amapá é o último. Ressalvadas
mudanças ocasionais, a lista se mantém essencialmente a mesma faz tempo. O
valor da pesquisa está em destacar boas práticas regionais que deveriam servir
de inspiração.
É o caso de Mato Grosso, que ficou em
quinto lugar no ranking geral e em primeiro em “solidez fiscal”, seguido pelo
Espírito Santo. Em “eficiência da máquina”, os mais bem avaliados são os
estados do Sul, à frente de São Paulo e Rio de
Janeiro. Os gaúchos lideram em “inovação”, seguidos pelos paulistas.
Noutra área essencial à competitividade, a “infraestrutura”, São Paulo lidera,
à frente de Santa Catarina. Em “educação”, com os paulistas à frente, é
reconhecido o trabalho de Minas (segundo) e Ceará (quarto) no
ensino básico.
O Rio também é destaque. Subiu seis
posições no ranking geral, de 17º em 2021 para 11º neste ano. Ainda assim, é o
único estado do Sudeste que não está entre os dez mais competitivos. O
principal avanço se deu na “eficiência da máquina”: nove posições, para o
quinto lugar. Os pontos fracos fluminenses são “segurança pública” (20º) e
“solidez fiscal” (24º). De 2020 para 2021, a receita aumentou 28%, graças à
alta na arrecadação do ICMS (12,2%), dos royalties e participações especiais de
petróleo ( 51,9%) e da privatização da Cedae. Com a adesão ao novo Regime de
Recuperação Fiscal, o Rio subiu apenas três posições (estava em último).
O combate aos desníveis regionais frequenta
planos de governo há muito tempo. Data da Constituição de 1946 a semente que
resultou na Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). Depois
viriam a Sudene (Nordeste) e outras superintendências para Sul e Centro-Oeste.
Em 2001, Sudam e Sudene foram extintas devido à corrupção. Mecanismos
semelhantes voltaram a entrar em ação e hoje assumiram a forma da distribuição
paroquial de verbas no orçamento secreto.
Não há receita milagrosa para reduzir os desníveis no desenvolvimento entre as regiões. São imprescindíveis, porém, seriedade dos políticos e eficiência dos governos. O erro está em conceder incentivos e privilégios insustentáveis, que se perpetuam por força da pressão de grupos de interesse. Os melhores exemplos do ranking passam pelo equilíbrio fiscal, única forma de liberar recursos para implementar políticas públicas testadas e comprovadas, capazes de criar um ambiente propício ao investimento privado.
Margem estreita
Folha de S. Paulo
Estabilidade indica que até abstenção pode
ser importante no pleito presidencial
Os números mais relevantes das pesquisas do
Datafolha acerca da disputa pela Presidência quase não se
alteraram desde o início oficial da campanha eleitoral.
A partir de meados de agosto, a intenção de
voto em Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no primeiro turno variou entre 45% e
47%; a de Jair Bolsonaro (PL), de 32% a 34%. A rejeição ao petista oscilou
entre 37% e 39%; a do presidente, entre 51% e 53%; em um segundo turno, Lula
marcou de 53% a 54%; Bolsonaro, de 37% a 39%.
A parcela do
eleitorado que avalia o governo como ruim ou péssimo flutuou
entre 42% e 44%; os que o consideram bom ou ótimo, de 30% a 31%. Desde fins de
agosto, Lula tem 48% dos votos válidos, em tese a 2 pontos percentuais de uma
vitória em primeiro turno.
Ademais, a grande maioria declara desde
cedo já ter o voto decidido. Hoje são 78%
os que não veem possibilidade de mudar a escolha, cifra que sobe a
86% no caso dos eleitores da dupla que está na dianteira dos levantamentos.
As perspectivas eleitorais de Bolsonaro
melhoraram até julho. Desde então, avanços econômicos, como no emprego, parecem
ter pesado quase nada na escolha do conjunto do eleitorado. Também parece ter
sido o caso do efeito de um Auxílio Brasil mais generoso.
O saldo dos ataques do mandatário a Lula
também foi irrelevante, considerada a estabilidade da taxa de rejeição do
petista desde o início oficial da campanha.
Como ainda se mostra viável uma vitória do
líder das pesquisas na primeira rodada, a discussão do voto útil torna-se mais
intensa. Dada a escassez de eleitores ainda sem candidatos, os adeptos de Ciro
Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB) podem decidir a eleição.
Da perspectiva de Bolsonaro, a resistente
rejeição majoritária a seu nome exige uma campanha para degradar a imagem do
principal adversário. O nível de agressividade política tende a aumentar, como
já se nota.
As disputas estaduais, em particular no
Sudeste, podem ter relevância marginal. Uma eventual ausência de aliados em
segundos turnos nesses estados não deve ser favorável à reeleição do
presidente.
Por fim, uma possível decisão em primeiro
turno por margem mínima tende a conferir relevância até mesmo às taxas de
abstenção em cada segmento do eleitorado ou região geográfica.
O cenário de polarização, infelizmente, não
é propício ao debate programático, dado que os dois principais postulantes
concentram suas estratégias na rejeição ao adversário —e na busca de cada vez
menos indecisos ou ainda propensos a mudar de ideia.
Piso suspenso
Folha de S. Paulo
Remuneração da enfermagem para no STF, mas
problema foi criado pelo Congresso
Centenas de categorias profissionais contam
com um piso salarial, definido por leis ou por instrumentos de negociação
coletiva. A concessão de um piso nacional para a enfermagem, porém,
transformou-se numa crise, que caiu no
colo do Supremo Tribunal Federal.
Pelo projeto de lei aprovado pelo
Congresso, sancionado pelo presidente e agora suspenso pelo STF, a remuneração
mensal mínima de enfermeiros passa a ser de R$ 4.750. Técnicos em enfermagem
devem receber 70% desse montante; auxiliares e parteiras, 50%.
Os valores podem não ser astronômicos, mas
fala-se de centenas de milhares de profissionais em um setor bastante
heterogêneo, que inclui desde caríssimas clínicas de estética até as sempre
deficitárias Santas Casas.
Administradores públicos e o setor patronal
apontam um cenário alarmante, caso o piso venha de fato a vigorar sem
compensações. A Confederação Nacional de Municípios calcula um impacto de R$
10,5 bilhões ao ano só nas prefeituras.
A Confederação das Santas Casas de
Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas estima um aumento de custos
da ordem de R$ 6,3 bilhões anuais em sua seara. Todos falam em demitir, fechar
leitos e reduzir programas.
Contas de partes interessadas precisam
sempre ser recebidas com alguma cautela, mas não resta muita dúvida de que a
saúde pública, já subfinanciada, não tem condições de arcar com um forte e
repentino aumento de salários.
A principal causa do impasse é a irresponsabilidade
do Congresso Nacional. Nas negociações em torno do projeto, havia
sido acordado que os parlamentares encontrariam uma fonte de financiamento para
o piso. Eles não o fizeram, e a proposta avançou mesmo assim.
O governo Jair Bolsonaro (PL), que deveria
ter se antecipado ao problema, também lavou as mãos, e o que deveria ser uma
questão trabalhista se tornou um embate político e orçamentário que o Supremo
agora tenta resolver.
Talvez seja a opção realista no momento,
mas não caberia à corte máxima do país atuar como uma junta de conciliação. Seu
papel deveria ser apenas o de dizer se a lei é ou não constitucional.
Fala-se em ampliar as desonerações para o
setor hospitalar ou em reajustar a tabela do SUS para a remuneração de
procedimentos, entre outras possíveis soluções. Cada uma delas tem suas
vantagens e desvantagens, mas todas exercem um impacto importante e inevitável
no Orçamento da União.
Esse nem seria um problema tão grave se o Congresso fosse capaz de cortar outras despesas e subsídios pouco eficazes. Entretanto faltam lideranças dispostas a enfrentar interesses de grupos influentes.
É preciso rever o gasto obrigatório
O Estado de S. Paulo
Composição de despesas públicas expõe problemas antigos que se agravaram nos últimos anos, como dificuldade do Congresso de assumir escolhas que garantam eficiência ao Orçamento
Campanhas eleitorais costumam dar pouco
espaço para a discussão de propostas concretas e detalhadas para o futuro, mas
quem vencer a disputa presidencial terá que lidar com uma realidade que não
autoriza a venda de ilusões. O nível de engessamento do gasto público chegou a
tal ponto que apenas 7% das despesas do Orçamento-Geral da União têm caráter
discricionário, ou seja, podem ter a sua aplicação decidida pelo governo e
votada por deputados e senadores. Como mostrou recentemente o Estadão, 93%
dos gastos de 2023 já estão comprometidos com o pagamento de benefícios
sociais, aposentadorias, pensões e salários de servidores públicos, dispêndios
obrigatórios que não podem ser cortados nem reduzidos.
Números levantados pelo economista Marcos
Mendes revelam uma trajetória crescente das despesas obrigatórias nos últimos
25 anos. Com o envelhecimento da população e a vinculação dos benefícios à
correção do salário mínimo, os gastos previdenciários somaram R$ 798 bilhões
neste ano, ou 45% das despesas obrigatórias. Completam as despesas obrigatórias
a folha de pessoal, os benefícios assistenciais, o abono salarial e o
seguro-desemprego, gastos que tendem ao “automatismo”, como definiu o
subsecretário de Assuntos Fiscais do Ministério da Economia, Fábio Pifano
Pontes, uma vez que seu crescimento se dá de forma praticamente autônoma. O
resultado é que os gastos obrigatórios avançam e consomem cada vez mais o espaço
das despesas discricionárias no Orçamento, reduzindo os investimentos a
patamares pífios. Não fossem os efeitos da reforma da Previdência aprovada em
2019, o fim da política de reajustes reais ao salário mínimo a partir de 2017 e
a suspensão dos aumentos salariais no início da pandemia de covid-19, as
despesas obrigatórias já teriam consumido toda a parcela dos gastos
discricionários no Orçamento.
Uma análise mais profunda sobre a
composição do gasto público expõe problemas antigos e que se agravaram exponencialmente
nos últimos anos, como a dificuldade que o Congresso tem para assumir escolhas
que proporcionem mais eficiência ao Orçamento. Do lado da despesa, um dos casos
mais famosos é o do abono salarial, política criticada por praticamente todos
os especialistas em contas públicas, que custa nada menos que R$ 20 bilhões
anuais e corresponde a um 14.º salário. É incompreensível que o País mantenha
uma política pública tão cara e anacrônica, direcionada a uma parcela da
população que tem emprego e que conta com a proteção social garantida aos que
estão no mercado formal, quando o governo não consegue encontrar uma forma de
garantir, em 2023, a vigência do piso de R$ 600 para o Auxílio Brasil, programa
social destinado às famílias mais vulneráveis. Do lado das receitas, o
Congresso também se mostra historicamente refratário a adotar medidas na
direção da promoção de maior justiça tributária e social e incapaz de rever
qualquer benefício fiscal.
Como se não bastasse a inação em relação à
natureza do gasto público, mais recentemente o Legislativo passou a recorrer a
manobras contábeis. Agora, os parlamentares reduzem a parcela das despesas
obrigatórias no papel para aumentar artificialmente as verbas reservadas para
emendas individuais, de bancada e as transferências diretas para Estados e
municípios, conhecidas como emendas Pix. Deputados e senadores avançaram também
sobre a parcela de despesas discricionárias por meio das emendas de relator,
que em tese podem ser bloqueadas, mas na prática nunca o são. Símbolo de
ineficiência, patrimonialismo e falta de transparência, elas devem atingir
quase R$ 20 bilhões no ano que vem. Tamanha rigidez do gasto público destaca
não apenas a necessidade de reformas para rever as despesas do Executivo nas
áreas administrativa e tributária. Reforça também a importância de eleger
lideranças capazes de encarar os problemas do País com o grau de realismo que
se exige e de pagar o preço político de soluções estruturais que visam a
garantir ao País um futuro melhor do que o presente.
Abordagem policial exige critério
O Estado de S. Paulo
STJ faz bem ao se insurgir contra a busca pessoal sem mandado motivada pela impressão subjetiva da polícia
Recentemente, o País viu-se envolto em
discussões acaloradas sobre os requisitos para a expedição de mandados de busca
e apreensão contra empresários bolsonaristas. Entre outras hipóteses, o Código
de Processo Penal (CPP) autoriza a busca domiciliar “quando fundadas razões a
autorizarem, para colher qualquer elemento de convicção”. A lei, como se vê,
não é muito específica, o que exige especial cuidado na hora de aplicá-la.
Afinal, a busca policial interfere em liberdades e garantias fundamentais.
Também regulada pelo CPP, a busca pessoal
sem mandado judicial – realizada cotidianamente nas abordagens policiais –
suscita diversas questões muito sensíveis, especialmente num país como o
Brasil, em que altos índices de criminalidade convivem com profundas desigualdades
sociais e diversas modalidades de racismo. Seja qual for o local de residência,
a profissão ou a cor da pele, todos os cidadãos têm direitos iguais.
De forma corajosa e com rigorosa
fundamentação na Constituição e na lei, o Superior Tribunal de Justiça (STJ)
tem enfrentado a prática das abordagens policiais realizadas sem critérios
concretos. A lei exige “fundada suspeita” de posse de arma proibida ou de
objetos relacionados à atividade delitiva. No entanto, esse requisito legal é,
com frequência, tratado sem nenhuma objetividade. Na motivação para abordar uma
pessoa na rua, policiais alegam, por exemplo, que essa pessoa estava caminhando
lentamente ou que estava andando rapidamente. Para justificar uma busca na
mochila, alegam que a pessoa aparentou nervosismo ou, ao contrário, que estava
muito calma. Ou seja, qualquer atitude – até mesmo estar de bermuda ou de
chinelo – é usada como alegação para a suspeição policial.
É precisamente contra essa ausência de
critérios objetivos – ausência esta que fragiliza direitos da população,
especialmente entre negros e pobres – que o STJ tem se insurgido, reconhecendo
a nulidade de provas colhidas em abordagens policiais sem critérios objetivos.
Recentemente, ao julgar um habeas corpus, a Corte entendeu que a atitude de
andar com pressa carregando uma mochila e aparentando nervosismo não preenche,
por si só, os requisitos legais para a busca sem mandado, uma vez que essas
circunstâncias sozinhas não indicam conduta delitiva.
No primeiro semestre, a Sexta Turma do STJ
havia entendido que é ilegal a busca pessoal sem mandado judicial motivada
apenas pela impressão subjetiva da polícia sobre a aparência ou atitude
suspeita do indivíduo. Como lembrou o relator do caso, ministro Rogerio
Schietti Cruz, a lei proíbe “abordagens e revistas exploratórias baseadas em
suspeição genérica”. Infelizmente, essas abordagens são muito frequentes. Além
de constatar a existência de dois “protocolos” para buscas pessoais – um para
negros e outro para brancos –, pesquisa realizada pelo Instituto de Defesa do
Direito de Defesa (IDDD) e data_labe mostrou que mais de um terço das pessoas
ouvidas tinha sido abordado sem que lhes fossem informados os motivos. A
polícia não pode agir assim.
A incrível saga do linhão Manaus-Boa Vista
O Estado de S. Paulo
Tratada como prioritária por todos os presidentes desde 2011, a linha de transmissão Manaus-Boa Vista permanece no chão. Governo deveria avaliar se projeto ainda é a melhor solução
Há 11 anos, o governo anunciava o resultado
de um leilão de transmissão de energia que pretendia mudar a história de
Roraima. O projeto do linhão entre Manaus e Boa Vista conectaria uma das
regiões mais isoladas do País ao Sistema Interligado Nacional (SIN), até então
dependente do suprimento de uma hidrelétrica na Venezuela. Tratado como
prioritário por todos os presidentes que assumiram o País desde 2011, o
empreendimento, previsto para ser entregue em três anos, nunca saiu do papel. A
saga por trás da linha tem componentes que contam parte da relação do governo
com os indígenas e a Região Amazônica, marcada por uma incompreensão comum a
todas as administrações, independentemente do espectro político.
O linhão é o tipo de projeto que tinha
problemas de origem. Dos 720 quilômetros estimados para sua extensão, 122 km
passariam dentro do território waimiri atroari. Ainda na fase de estudos, o
governo já tinha pleno conhecimento da resistência dos indígenas, que viram sua
população ser dizimada – na década de 70, passou de 3 mil integrantes para
apenas 350. Contribuíram diretamente para esse massacre a construção de duas
obras públicas durante a ditadura militar: a hidrelétrica de Balbina, um dos
maiores desastres socioambientais da Amazônia, e a Rodovia Federal BR-174, com
obras conduzidas pelo Exército.
Isolados, os waimiris atroaris conseguiram
sobreviver e têm hoje uma população de 2 mil pessoas. Diante desse histórico,
era natural que tivessem receio do impacto da construção da linha. Assim,
passaram a cobrar o cumprimento da Convenção 169 da Organização Internacional
do Trabalho (OIT), que garante a eles o direito a serem previamente consultados
sobre obras em seus territórios – a emissão da licença ambiental dependeria
desse aval. Esse imbróglio atravessou as gestões de Dilma Rousseff, Michel
Temer e Jair Bolsonaro sem que se chegasse a um acordo. Nesse ínterim, a
Venezuela suspendeu o fornecimento de energia para Roraima, e o governo apelou
à contratação de termoelétricas para abastecer o Estado, resolvendo de forma
definitiva o problema dos apagões.
Passados 11 anos do leilão, as condições
econômicas que garantiram o lance da concessionária Transnorte, formada por
Eletronorte e Alupar, não são mais as mesmas; custos de materiais, mão de obra
e financiamentos precisavam ser atualizados. A oferta de reequilíbrio feita
pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) foi recusada pela empresa. O
órgão regulador recomendou a caducidade da concessão e a abertura de uma nova
licitação, mas o governo optou por uma arbitragem. A repactuação foi acertada
em agosto de 2021, mas, como revelou o Estadão, a empresa alegou
dificuldades e cobra nova revisão do contrato.
O enredo do linhão revela a inabilidade do poder público para lidar com os indígenas e um profundo desconhecimento sobre a relação dos povos com suas terras, sempre reduzida à pura teimosia ou ao valor da indenização. A definição desta compensação financeira tem sido usada para desviar de outras questões bem mais relevantes, entre elas sua própria viabilidade ante outras alternativas. Nesse período, o custo da construção do linhão dobrou, enquanto a evolução tecnológica proporcionou competitividade a projetos híbridos, que combinam diferentes fontes de energia e baterias elétricas. Outras soluções, eventualmente, poderiam ser mais baratas que a linha de transmissão, considerando as dimensões econômico-financeira, social e ambiental. Somente um estudo sério, contratado pelo Ministério de Minas e Energia, poderia responder se a veemência com que a pasta defende o projeto ainda se justifica. O enfrentamento de nossas desigualdades regionais certamente passa pela maior integração da Região Norte e sua população ao restante do País. É paradoxal, no entanto, que 52 anos tenham se passado desde o Programa de Integração Nacional imposto pela ditadura militar sem que os governos que se seguiram a ela tenham compreendido que os indígenas também são parte do País e, como tal, também têm o direito de opinar sobre seu futuro.
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