sábado, 17 de setembro de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Editoriais / Opiniões

Pandemia distorce índice de qualidade da educação básica

O Globo

Resultados do Ideb não captam a extensão do retrocesso desastroso no ensino brasileiro nos últimos anos

A última edição do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), que avalia a qualidade das escolas públicas e privadas, com dados de 2021, apresentou variação mínima na comparação com 2019. Nos anos iniciais do ensino fundamental, a nota teve leve queda e ficou em 5,8 numa escala de zero a dez, quase idêntica à de 2019. Nos anos finais do fundamental houve pequena elevação (de 4,9 para 5,1), e no ensino médio o índice ficou estacionado.

Pela primeira vez, o Ideb trouxe questionários sobre a educação infantil (creches e pré-escola), deu prosseguimento a testes de disciplinas além de português e matemática (ainda restritos) e aplicou provas em conformidade com a Base Nacional Comum Curricular. Mas a realidade é muito pior do que os esforços de inovação e os números sugerem. A pandemia não apenas descarrilou o ensino, com as escolas fechadas por períodos intermináveis e sistemas remotos ineficientes. Também desregulou o “termômetro” do Ideb.

O cálculo do índice leva em conta dois fatores: as taxas de aprovação de uma série para outra e as médias nas provas de português e matemática. Nos últimos dois anos, tanto a rede de ensino estadual como a municipal lidaram de forma distinta com a aprovação de alunos. Algumas seguiram as diretrizes do Conselho Nacional de Educação e adotaram aprovação automática. Outras, não. Essa diferença inflou artificialmente o resultado do Ideb das que aprovaram todos os alunos e repercutiu no resultado final. Isso precisa ser levado em conta na leitura dos dados.

Houve ainda impacto da pandemia na avaliação usada pelo índice. Os testes foram realizados num período em que nem todas as escolas funcionavam no modelo presencial, e várias tinham aberto as portas havia pouco tempo. Por isso os testes para a formulação do Ideb atingiram apenas ao redor de 70% dos alunos matriculados. “É razoável supor que os alunos que não estavam presentes nos dias de prova em novembro e dezembro de 2021 eram aqueles de menor nível socioeconômico, que estavam acompanhando menos as atividades escolares ou já tinham abandonado os estudos”, afirma a ONG Todos pela Educação. Mesmo involuntária, a seleção criou mais uma distorção, que também precisa ser considerada.

Ainda que todas essas distorções tenham contribuído para elevar artificialmente o resultado, o nível do aprendizado caiu em português e matemática em todas as etapas avaliadas. As médias de alunos do 5º ano nas duas disciplinas voltaram ao nível de 2015. As de matemática dos alunos do 9º, também. No ensino médio, a nota de matemática voltou ao patamar de 2017. Na comparação com 2019, subiu de 15% para 34% o percentual de crianças do 2º ano que não sabem ler nem mesmo palavras simples como “mesa” ou “vovô”. É um quadro simplesmente inaceitável, dada a relevância da educação para o futuro do Brasil.

A recuperação do aprendizado perdido deveria ser a prioridade absoluta do governo eleito em outubro, já que deste não há muito mais a esperar. O Ministério da Educação tem o dever de coordenar com competência o trabalho de consertar o estrago em todos os cantos do país. Nem todos os estados e municípios têm os recursos necessários. A análise correta do Ideb 2021 é o ponto de partida.

Desnível regional continuará a desafiar os novos governadores

O Globo

Equilíbrio fiscal e políticas públicas testadas são essenciais para aumentar a competitividade dos estados

Atrair investimentos será prioridade para qualquer governador eleito em outubro. Infelizmente, apesar de avanços pontuais e décadas de incentivos federais, o Brasil ainda é um país de extremos. Mais rico e desenvolvido ao Sul e Sudeste, menos no Nordeste e Norte, com avanços no Centro-Oeste graças ao agronegócio. Tal cenário é descrito no 11º Ranking de Competitividade dos Estados, do Centro de Liderança Pública (CLP).

O estudo se desdobra sobre indicadores de educação, solidez fiscal, infraestrutura, eficiência da máquina pública, sustentabilidade, segurança, potencial de mercado, inovação e capital humano para elaborar um ranking. São Paulo aparece em primeiro, como estado mais competitivo. O Amapá é o último. Ressalvadas mudanças ocasionais, a lista se mantém essencialmente a mesma faz tempo. O valor da pesquisa está em destacar boas práticas regionais que deveriam servir de inspiração.

É o caso de Mato Grosso, que ficou em quinto lugar no ranking geral e em primeiro em “solidez fiscal”, seguido pelo Espírito Santo. Em “eficiência da máquina”, os mais bem avaliados são os estados do Sul, à frente de São Paulo e Rio de Janeiro. Os gaúchos lideram em “inovação”, seguidos pelos paulistas. Noutra área essencial à competitividade, a “infraestrutura”, São Paulo lidera, à frente de Santa Catarina. Em “educação”, com os paulistas à frente, é reconhecido o trabalho de Minas (segundo) e Ceará (quarto) no ensino básico.

O Rio também é destaque. Subiu seis posições no ranking geral, de 17º em 2021 para 11º neste ano. Ainda assim, é o único estado do Sudeste que não está entre os dez mais competitivos. O principal avanço se deu na “eficiência da máquina”: nove posições, para o quinto lugar. Os pontos fracos fluminenses são “segurança pública” (20º) e “solidez fiscal” (24º). De 2020 para 2021, a receita aumentou 28%, graças à alta na arrecadação do ICMS (12,2%), dos royalties e participações especiais de petróleo ( 51,9%) e da privatização da Cedae. Com a adesão ao novo Regime de Recuperação Fiscal, o Rio subiu apenas três posições (estava em último).

O combate aos desníveis regionais frequenta planos de governo há muito tempo. Data da Constituição de 1946 a semente que resultou na Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). Depois viriam a Sudene (Nordeste) e outras superintendências para Sul e Centro-Oeste. Em 2001, Sudam e Sudene foram extintas devido à corrupção. Mecanismos semelhantes voltaram a entrar em ação e hoje assumiram a forma da distribuição paroquial de verbas no orçamento secreto.

Não há receita milagrosa para reduzir os desníveis no desenvolvimento entre as regiões. São imprescindíveis, porém, seriedade dos políticos e eficiência dos governos. O erro está em conceder incentivos e privilégios insustentáveis, que se perpetuam por força da pressão de grupos de interesse. Os melhores exemplos do ranking passam pelo equilíbrio fiscal, única forma de liberar recursos para implementar políticas públicas testadas e comprovadas, capazes de criar um ambiente propício ao investimento privado.

Margem estreita

Folha de S. Paulo

Estabilidade indica que até abstenção pode ser importante no pleito presidencial

Os números mais relevantes das pesquisas do Datafolha acerca da disputa pela Presidência quase não se alteraram desde o início oficial da campanha eleitoral.

A partir de meados de agosto, a intenção de voto em Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no primeiro turno variou entre 45% e 47%; a de Jair Bolsonaro (PL), de 32% a 34%. A rejeição ao petista oscilou entre 37% e 39%; a do presidente, entre 51% e 53%; em um segundo turno, Lula marcou de 53% a 54%; Bolsonaro, de 37% a 39%.

A parcela do eleitorado que avalia o governo como ruim ou péssimo flutuou entre 42% e 44%; os que o consideram bom ou ótimo, de 30% a 31%. Desde fins de agosto, Lula tem 48% dos votos válidos, em tese a 2 pontos percentuais de uma vitória em primeiro turno.

Ademais, a grande maioria declara desde cedo já ter o voto decidido. Hoje são 78% os que não veem possibilidade de mudar a escolha, cifra que sobe a 86% no caso dos eleitores da dupla que está na dianteira dos levantamentos.

As perspectivas eleitorais de Bolsonaro melhoraram até julho. Desde então, avanços econômicos, como no emprego, parecem ter pesado quase nada na escolha do conjunto do eleitorado. Também parece ter sido o caso do efeito de um Auxílio Brasil mais generoso.

O saldo dos ataques do mandatário a Lula também foi irrelevante, considerada a estabilidade da taxa de rejeição do petista desde o início oficial da campanha.

Como ainda se mostra viável uma vitória do líder das pesquisas na primeira rodada, a discussão do voto útil torna-se mais intensa. Dada a escassez de eleitores ainda sem candidatos, os adeptos de Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB) podem decidir a eleição.

Da perspectiva de Bolsonaro, a resistente rejeição majoritária a seu nome exige uma campanha para degradar a imagem do principal adversário. O nível de agressividade política tende a aumentar, como já se nota.

As disputas estaduais, em particular no Sudeste, podem ter relevância marginal. Uma eventual ausência de aliados em segundos turnos nesses estados não deve ser favorável à reeleição do presidente.

Por fim, uma possível decisão em primeiro turno por margem mínima tende a conferir relevância até mesmo às taxas de abstenção em cada segmento do eleitorado ou região geográfica.

O cenário de polarização, infelizmente, não é propício ao debate programático, dado que os dois principais postulantes concentram suas estratégias na rejeição ao adversário —e na busca de cada vez menos indecisos ou ainda propensos a mudar de ideia.

Piso suspenso

Folha de S. Paulo

Remuneração da enfermagem para no STF, mas problema foi criado pelo Congresso

Centenas de categorias profissionais contam com um piso salarial, definido por leis ou por instrumentos de negociação coletiva. A concessão de um piso nacional para a enfermagem, porém, transformou-se numa crise, que caiu no colo do Supremo Tribunal Federal.

Pelo projeto de lei aprovado pelo Congresso, sancionado pelo presidente e agora suspenso pelo STF, a remuneração mensal mínima de enfermeiros passa a ser de R$ 4.750. Técnicos em enfermagem devem receber 70% desse montante; auxiliares e parteiras, 50%.

Os valores podem não ser astronômicos, mas fala-se de centenas de milhares de profissionais em um setor bastante heterogêneo, que inclui desde caríssimas clínicas de estética até as sempre deficitárias Santas Casas.

Administradores públicos e o setor patronal apontam um cenário alarmante, caso o piso venha de fato a vigorar sem compensações. A Confederação Nacional de Municípios calcula um impacto de R$ 10,5 bilhões ao ano só nas prefeituras.

A Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas estima um aumento de custos da ordem de R$ 6,3 bilhões anuais em sua seara. Todos falam em demitir, fechar leitos e reduzir programas.

Contas de partes interessadas precisam sempre ser recebidas com alguma cautela, mas não resta muita dúvida de que a saúde pública, já subfinanciada, não tem condições de arcar com um forte e repentino aumento de salários.

A principal causa do impasse é a irresponsabilidade do Congresso Nacional. Nas negociações em torno do projeto, havia sido acordado que os parlamentares encontrariam uma fonte de financiamento para o piso. Eles não o fizeram, e a proposta avançou mesmo assim.

O governo Jair Bolsonaro (PL), que deveria ter se antecipado ao problema, também lavou as mãos, e o que deveria ser uma questão trabalhista se tornou um embate político e orçamentário que o Supremo agora tenta resolver.

Talvez seja a opção realista no momento, mas não caberia à corte máxima do país atuar como uma junta de conciliação. Seu papel deveria ser apenas o de dizer se a lei é ou não constitucional.

Fala-se em ampliar as desonerações para o setor hospitalar ou em reajustar a tabela do SUS para a remuneração de procedimentos, entre outras possíveis soluções. Cada uma delas tem suas vantagens e desvantagens, mas todas exercem um impacto importante e inevitável no Orçamento da União.

Esse nem seria um problema tão grave se o Congresso fosse capaz de cortar outras despesas e subsídios pouco eficazes. Entretanto faltam lideranças dispostas a enfrentar interesses de grupos influentes.

É preciso rever o gasto obrigatório

O Estado de S. Paulo

Composição de despesas públicas expõe problemas antigos que se agravaram nos últimos anos, como dificuldade do Congresso de assumir escolhas que garantam eficiência ao Orçamento

Campanhas eleitorais costumam dar pouco espaço para a discussão de propostas concretas e detalhadas para o futuro, mas quem vencer a disputa presidencial terá que lidar com uma realidade que não autoriza a venda de ilusões. O nível de engessamento do gasto público chegou a tal ponto que apenas 7% das despesas do Orçamento-Geral da União têm caráter discricionário, ou seja, podem ter a sua aplicação decidida pelo governo e votada por deputados e senadores. Como mostrou recentemente o Estadão, 93% dos gastos de 2023 já estão comprometidos com o pagamento de benefícios sociais, aposentadorias, pensões e salários de servidores públicos, dispêndios obrigatórios que não podem ser cortados nem reduzidos.

Números levantados pelo economista Marcos Mendes revelam uma trajetória crescente das despesas obrigatórias nos últimos 25 anos. Com o envelhecimento da população e a vinculação dos benefícios à correção do salário mínimo, os gastos previdenciários somaram R$ 798 bilhões neste ano, ou 45% das despesas obrigatórias. Completam as despesas obrigatórias a folha de pessoal, os benefícios assistenciais, o abono salarial e o seguro-desemprego, gastos que tendem ao “automatismo”, como definiu o subsecretário de Assuntos Fiscais do Ministério da Economia, Fábio Pifano Pontes, uma vez que seu crescimento se dá de forma praticamente autônoma. O resultado é que os gastos obrigatórios avançam e consomem cada vez mais o espaço das despesas discricionárias no Orçamento, reduzindo os investimentos a patamares pífios. Não fossem os efeitos da reforma da Previdência aprovada em 2019, o fim da política de reajustes reais ao salário mínimo a partir de 2017 e a suspensão dos aumentos salariais no início da pandemia de covid-19, as despesas obrigatórias já teriam consumido toda a parcela dos gastos discricionários no Orçamento.

Uma análise mais profunda sobre a composição do gasto público expõe problemas antigos e que se agravaram exponencialmente nos últimos anos, como a dificuldade que o Congresso tem para assumir escolhas que proporcionem mais eficiência ao Orçamento. Do lado da despesa, um dos casos mais famosos é o do abono salarial, política criticada por praticamente todos os especialistas em contas públicas, que custa nada menos que R$ 20 bilhões anuais e corresponde a um 14.º salário. É incompreensível que o País mantenha uma política pública tão cara e anacrônica, direcionada a uma parcela da população que tem emprego e que conta com a proteção social garantida aos que estão no mercado formal, quando o governo não consegue encontrar uma forma de garantir, em 2023, a vigência do piso de R$ 600 para o Auxílio Brasil, programa social destinado às famílias mais vulneráveis. Do lado das receitas, o Congresso também se mostra historicamente refratário a adotar medidas na direção da promoção de maior justiça tributária e social e incapaz de rever qualquer benefício fiscal.

Como se não bastasse a inação em relação à natureza do gasto público, mais recentemente o Legislativo passou a recorrer a manobras contábeis. Agora, os parlamentares reduzem a parcela das despesas obrigatórias no papel para aumentar artificialmente as verbas reservadas para emendas individuais, de bancada e as transferências diretas para Estados e municípios, conhecidas como emendas Pix. Deputados e senadores avançaram também sobre a parcela de despesas discricionárias por meio das emendas de relator, que em tese podem ser bloqueadas, mas na prática nunca o são. Símbolo de ineficiência, patrimonialismo e falta de transparência, elas devem atingir quase R$ 20 bilhões no ano que vem. Tamanha rigidez do gasto público destaca não apenas a necessidade de reformas para rever as despesas do Executivo nas áreas administrativa e tributária. Reforça também a importância de eleger lideranças capazes de encarar os problemas do País com o grau de realismo que se exige e de pagar o preço político de soluções estruturais que visam a garantir ao País um futuro melhor do que o presente.

Abordagem policial exige critério

O Estado de S. Paulo

STJ faz bem ao se insurgir contra a busca pessoal sem mandado motivada pela impressão subjetiva da polícia

Recentemente, o País viu-se envolto em discussões acaloradas sobre os requisitos para a expedição de mandados de busca e apreensão contra empresários bolsonaristas. Entre outras hipóteses, o Código de Processo Penal (CPP) autoriza a busca domiciliar “quando fundadas razões a autorizarem, para colher qualquer elemento de convicção”. A lei, como se vê, não é muito específica, o que exige especial cuidado na hora de aplicá-la. Afinal, a busca policial interfere em liberdades e garantias fundamentais.

Também regulada pelo CPP, a busca pessoal sem mandado judicial – realizada cotidianamente nas abordagens policiais – suscita diversas questões muito sensíveis, especialmente num país como o Brasil, em que altos índices de criminalidade convivem com profundas desigualdades sociais e diversas modalidades de racismo. Seja qual for o local de residência, a profissão ou a cor da pele, todos os cidadãos têm direitos iguais.

De forma corajosa e com rigorosa fundamentação na Constituição e na lei, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem enfrentado a prática das abordagens policiais realizadas sem critérios concretos. A lei exige “fundada suspeita” de posse de arma proibida ou de objetos relacionados à atividade delitiva. No entanto, esse requisito legal é, com frequência, tratado sem nenhuma objetividade. Na motivação para abordar uma pessoa na rua, policiais alegam, por exemplo, que essa pessoa estava caminhando lentamente ou que estava andando rapidamente. Para justificar uma busca na mochila, alegam que a pessoa aparentou nervosismo ou, ao contrário, que estava muito calma. Ou seja, qualquer atitude – até mesmo estar de bermuda ou de chinelo – é usada como alegação para a suspeição policial.

É precisamente contra essa ausência de critérios objetivos – ausência esta que fragiliza direitos da população, especialmente entre negros e pobres – que o STJ tem se insurgido, reconhecendo a nulidade de provas colhidas em abordagens policiais sem critérios objetivos. Recentemente, ao julgar um habeas corpus, a Corte entendeu que a atitude de andar com pressa carregando uma mochila e aparentando nervosismo não preenche, por si só, os requisitos legais para a busca sem mandado, uma vez que essas circunstâncias sozinhas não indicam conduta delitiva.

No primeiro semestre, a Sexta Turma do STJ havia entendido que é ilegal a busca pessoal sem mandado judicial motivada apenas pela impressão subjetiva da polícia sobre a aparência ou atitude suspeita do indivíduo. Como lembrou o relator do caso, ministro Rogerio Schietti Cruz, a lei proíbe “abordagens e revistas exploratórias baseadas em suspeição genérica”. Infelizmente, essas abordagens são muito frequentes. Além de constatar a existência de dois “protocolos” para buscas pessoais – um para negros e outro para brancos –, pesquisa realizada pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e data_labe mostrou que mais de um terço das pessoas ouvidas tinha sido abordado sem que lhes fossem informados os motivos. A polícia não pode agir assim.

A incrível saga do linhão Manaus-Boa Vista

O Estado de S. Paulo

Tratada como prioritária por todos os presidentes desde 2011, a linha de transmissão Manaus-Boa Vista permanece no chão. Governo deveria avaliar se projeto ainda é a melhor solução

Há 11 anos, o governo anunciava o resultado de um leilão de transmissão de energia que pretendia mudar a história de Roraima. O projeto do linhão entre Manaus e Boa Vista conectaria uma das regiões mais isoladas do País ao Sistema Interligado Nacional (SIN), até então dependente do suprimento de uma hidrelétrica na Venezuela. Tratado como prioritário por todos os presidentes que assumiram o País desde 2011, o empreendimento, previsto para ser entregue em três anos, nunca saiu do papel. A saga por trás da linha tem componentes que contam parte da relação do governo com os indígenas e a Região Amazônica, marcada por uma incompreensão comum a todas as administrações, independentemente do espectro político.

O linhão é o tipo de projeto que tinha problemas de origem. Dos 720 quilômetros estimados para sua extensão, 122 km passariam dentro do território waimiri atroari. Ainda na fase de estudos, o governo já tinha pleno conhecimento da resistência dos indígenas, que viram sua população ser dizimada – na década de 70, passou de 3 mil integrantes para apenas 350. Contribuíram diretamente para esse massacre a construção de duas obras públicas durante a ditadura militar: a hidrelétrica de Balbina, um dos maiores desastres socioambientais da Amazônia, e a Rodovia Federal BR-174, com obras conduzidas pelo Exército.

Isolados, os waimiris atroaris conseguiram sobreviver e têm hoje uma população de 2 mil pessoas. Diante desse histórico, era natural que tivessem receio do impacto da construção da linha. Assim, passaram a cobrar o cumprimento da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante a eles o direito a serem previamente consultados sobre obras em seus territórios – a emissão da licença ambiental dependeria desse aval. Esse imbróglio atravessou as gestões de Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro sem que se chegasse a um acordo. Nesse ínterim, a Venezuela suspendeu o fornecimento de energia para Roraima, e o governo apelou à contratação de termoelétricas para abastecer o Estado, resolvendo de forma definitiva o problema dos apagões.

Passados 11 anos do leilão, as condições econômicas que garantiram o lance da concessionária Transnorte, formada por Eletronorte e Alupar, não são mais as mesmas; custos de materiais, mão de obra e financiamentos precisavam ser atualizados. A oferta de reequilíbrio feita pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) foi recusada pela empresa. O órgão regulador recomendou a caducidade da concessão e a abertura de uma nova licitação, mas o governo optou por uma arbitragem. A repactuação foi acertada em agosto de 2021, mas, como revelou o Estadão, a empresa alegou dificuldades e cobra nova revisão do contrato.

O enredo do linhão revela a inabilidade do poder público para lidar com os indígenas e um profundo desconhecimento sobre a relação dos povos com suas terras, sempre reduzida à pura teimosia ou ao valor da indenização. A definição desta compensação financeira tem sido usada para desviar de outras questões bem mais relevantes, entre elas sua própria viabilidade ante outras alternativas. Nesse período, o custo da construção do linhão dobrou, enquanto a evolução tecnológica proporcionou competitividade a projetos híbridos, que combinam diferentes fontes de energia e baterias elétricas. Outras soluções, eventualmente, poderiam ser mais baratas que a linha de transmissão, considerando as dimensões econômico-financeira, social e ambiental. Somente um estudo sério, contratado pelo Ministério de Minas e Energia, poderia responder se a veemência com que a pasta defende o projeto ainda se justifica. O enfrentamento de nossas desigualdades regionais certamente passa pela maior integração da Região Norte e sua população ao restante do País. É paradoxal, no entanto, que 52 anos tenham se passado desde o Programa de Integração Nacional imposto pela ditadura militar sem que os governos que se seguiram a ela tenham compreendido que os indígenas também são parte do País e, como tal, também têm o direito de opinar sobre seu futuro.

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