Valor Econômico
Brasil já foi fulminado por desrespeitar a
excepcionalidade
Os mais jovens talvez não tenham
consciência do que foi a crise do petróleo dos anos 1970 e do ensinamento que
ela deixou ao Brasil. O país vivia os anos do “milagre econômico”, cantado em
prosa e verso pela ditadura militar, quando os produtores, unidos na Opep e
dominados pelos árabes, fizeram um embargo ao fornecimento a países aliados de
Israel na Guerra do Yom Kipur.
A decisão, em 1973, pegou o Ocidente de
surpresa. Em cinco meses, a cotação do petróleo, que rastejara por décadas
abaixo de US$ 3 o barril, subiu 300%, para US$ 12. O Brasil importava, então,
70% do petróleo que consumia.
Críticos dizem que o país deveria, naquele momento, ter adotado um racionamento do consumo de derivados e lançado programas para substituir a fonte de energia ou aumentar sua produção interna. Foram, é verdade, criados o Proálcool, que viria a ser bem-sucedido muitos anos depois, e os contratos de risco, pelos quais companhias privadas nacionais e estrangeiras assumiam a prospecção de petróleo, até então monopólio da Petrobras. Os resultados dos dois programas, como se previa, não foram imediatos, e o racionamento não foi adotado a tempo.
Com boas relações internacionais, a Petrobras continuou
a importar o petróleo necessário para tocar a economia, mas a preços
exorbitantes, o que levou a déficits constantes na balança comercial e à
acumulação de uma impagável dívida externa. Em 1979, houve o segundo choque do
petróleo, quando a Revolução Islâmica reduziu drasticamente a produção do Irã,
na época um dos maiores fornecedores internacionais. E a cotação do óleo subiu
para quase US$ 40.
Para não quebrar, segundo os críticos, o
Brasil deveria desaquecer a economia e reduzir importações. Mario Simonsen,
ministro da Fazenda de 1974 a 1979, até tentou, mas sem sucesso. Seguiu-se
então uma década de flagelo econômico para o país, que enfrentou a
superinflação e foi ao FMI em busca de dólares para não dar um calote externo.
A crise ajudou até a derrubar a ditadura militar, mas deixou nas mãos do novo
regime civil democrático um país quase destruído. A dívida com o FMI, que
impunha ao Brasil uma política de austeridade, só foi paga em 2005, no governo
Lula.
Essa lembrança serve para mostrar que
tempos excepcionais exigem decisões excepcionais, seja para arrocho, seja para
expansão da economia. Por desobedecer a esse princípio, o Brasil foi fulminado
nos anos 1970 e interrompeu um ciclo de crescimento não retomado até hoje. A
crise energética atual não parece tão grave quanto aquela, até porque o
petróleo não subiu como na década de 1970. Mas o impacto da covid ainda
prevalece, e o inverno europeu que vem aí, sem gás russo, porém, pode jogar
pessimismo no ventilador.
O Banco Central, agora independente, não
considera a necessidade de medidas excepcionais. Aumentou os juros como se
estivéssemos em período de inflação de demanda. De 2% em março de 2021, a Selic
foi para 13,75% e pode subir mais amanhã. A inflação média caiu, mas em função
da redução dos impostos e dos preços dos combustíveis, não pelo efeito
monetário.
Os bancos centrais de outros países olham
diferentemente para a atual situação da economia mundial. Na zona do euro, o
BCE mantém os juros básicos em 0,75% para uma inflação de 9,1%. Nos EUA, o Fed
impõe 2,5%, taxa que deve subir também amanhã para 3% ou até 3,5%, com inflação
de 8,3%. São juros altos para o primeiro mundo, mas ainda negativos, porque se
pretende evitar uma nova recessão em um momento excepcional.
As políticas fiscais são expansionistas. O
governo Biden, depois de pacotes de ajuda trilionários, baixou outro de US$ 430
bilhões agora. O governo alemão aplicará € 65 bilhões para ajudar famílias
golpeadas pela inflação e pelas contas de energia. O programa será sustentado
por recursos de um imposto excepcional sobre os ganhos inesperados dos
produtores de eletricidade.
No Brasil, a 12 dias das eleições, a medida
da Alemanha fez candidatos olharem com cobiça para lucros extraordinários
obtidos por alguns setores na pandemia. Aliás, o incomparável anuário “Valor
1000” acaba de mostrar que o lucro líquido das mil maiores empresas do país
aumentou 266,3% em valores reais em 2021.
O governo Bolsonaro demorou a admitir a
excepcionalidade do momento na pandemia, com enfoque negacionista sobre a
gravidade da crise - tentou impor a ideia de que seria melhor preservar a
economia, mesmo diante da mortandade. Depois, pressionado pela sociedade e em
seguida por interesses eleitoreiros, aceitou o aumento do Auxílio Brasil e
concedeu benefícios tributários na área de combustíveis. Agora voltou a cortar
recursos orçamentários para 2023 na área social, inclusive da Farmácia Popular
e Mais Médicos.
A crise atual já deixou sequelas
tenebrosas. Mas um benefício dela é a aceitação mundial de que transferências
de renda, principalmente em situações excepcionais, são indispensáveis. Elas
podem aliviar o sofrimento de milhões de pessoas que vivem na pobreza pelo
mundo e, quem sabe, revigorar o capitalismo.
Melancólica desilusão
Por falar em períodos excepcionais, num
momento em que fascitoides pedem a volta do regime militar, vale lembrar uma
frase de Eugênio Gudin, um dos maiores economistas brasileiros do século XX,
ministro da Fazenda no governo Café Filho. Em coluna no “Globo” sob o título
“Melancólica desilusão”, em janeiro de 1978, ele escreveu: “Dentre as coisas
que eu almejava ver realizadas, antes que a avançada faixa etária a que
pertenço chegasse ao desfecho final, figurava a esperança de ver desaparecer o
nome de meu país entre os das nações latino-americanas governadas por generais
que se revezam no governo, de forma mais ou menos pacífica e endêmica”.
O presidente Ernesto Geisel havia acabado
de indicar para sucedê-lo o general João Figueiredo, que ficaria no cargo até
1985. Já nonagenário, Gudin concluiu: “Não tenho evidentemente qualquer
possibilidade de ver realizada a minha esperança”.
Mas ele viveu para ver a posse de José Sarney, primeiro presidente civil pós-ditadura. Às vezes divertido, Gudin dizia não gostar de beber água, só vinho. E tinha uma explicação: “Todas as pessoas que morreram tinham uma coisa em comum, bebiam água.” Escreveu seu último artigo no “Globo” em 19 de março de 1986 e morreu em 24 de outubro daquele ano, aos 100 anos.
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