O Globo
O desafio do terceiro mandato de Lula é
repensar a estrutura fiscal do país, já que o teto de gastos não sobreviveu ao
governo Bolsonaro
Eu morava em Brasília ao início do primeiro
governo Lula. No dia da posse, o vermelho se misturava com camisas da seleção,
ainda reverberando o pentacampeonato mundial de futebol, celebrado alguns meses
antes naquela mesma Esplanada dos Ministérios.
No Brasil, a transição civilizada entre
presidentes eleitos democraticamente foi ali inventada. O presidente Fernando
Henrique Cardoso (FHC) assinara uma medida provisória que instituía a equipe de
transição e permitia ao governo entrante nomear funcionários e ter acesso aos
processos governamentais. Posteriormente convertida em lei, este é, até hoje, o
marco legal que governa as transições.
Lula herdou mais do que uma transição
pacífica.
Herdou um longo processo de estabilização
macroeconômica, começada com o Plano Real e consolidada em 1999 com o que
entrou para história como “tripé macroeconômico”: a política de metas de
inflação, superávits primários e câmbio flutuante.
Herdou também uma política de transferência
de renda focalizada nos mais pobres, com Bolsa Escola, Vale Gás, Programa de
Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) e o projeto de consolidar tudo isso em
um só plástico, por meio do Cadastro Único de programas sociais.
Na retórica, Lula chamava o legado do governo FHC de “herança maldita”. Na prática, a história era outra.
O governo colocou Henrique Meirelles, um
deputado federal tucano, na presidência do Banco Central. Em pouco tempo, o PT
abandonaria o Fome Zero, programa de distribuição direta de comida aos mais
pobres, em favor do modelo de transferências focalizadas e utilizaria o
Cadastro Único para unificar os programas anteriores sob o nome Bolsa Família.
O governo manteve estrita aderência à
política do tripé macroeconômico. Deixou o BC subir juros para controlar a
inflação. Não passou perto de controles cambiais. E entregou superávits
primários em todos os anos de seu governo.
Um amigo meu, o cientista político Saulo
Saïd (Iuperj), gostava de dizer: se o tripé macroeconômico é neoliberal, Lula
foi campeão de neoliberalismo no Brasil.
Essa adesão às políticas do antecessor não
foi aleatória. Lula era consciente de que a história de ambivalência dele e de
seu partido — que ainda em 1998 chamavam o Plano Real de “fantasia” — depunha
contra eles. A reinvenção de Lula em Lulinha-paz-e-amor e a Carta ao Povo
Brasileiro, que marcaram a promessa de um continuísmo e não de ruptura, se
materializavam nas políticas do começo do novo governo.
Mas, então, havia um alicerce sobre o qual
era possível, com um mínimo esforço, manter o barco flutuando. Essa herança
institucional permitiu ao PT avançar em diversas políticas mais afeitas ao seu
programa, como a expansão das universidades federais sob uma nova política de
cotas, uma política séria de preservação ambiental e a expansão do Bolsa
Família.
Vinte anos depois, o contexto é muito
diferente. Desta vez, o desafio do novo governo é mais difícil: não é expandir
sobre alicerces firmes, mas repensar e reestruturar a estrutura fiscal
brasileira.
O teto de gastos, âncora fiscal pensada
como ajuste fiscal lento e gradual, evitando austeridade no curto prazo, não
sobreviveu ao governo Bolsonaro. O primeiro tiro de morte foi a PEC dos
Precatórios, que jogou para frente gastos que deveriam ter ocorrido neste
governo, prejudicando a previsibilidade das despesas.
O tiro de misericórdia foi o grande aumento
de gastos durante o período eleitoral, à revelia do espírito da Lei de
Responsabilidade Fiscal.
Como gastos do governo são persistentes, é
difícil reduzi-los no curto prazo. Por isso, é razoavelmente consensual que o
teto precisará ser revisto. A questão é como fazê-lo sinalizando que não haverá
descontrole na evolução da dívida pública: seja compensando aumento de gastos
com aumento de impostos, ou limitando a expansão de gastos àqueles mais
prioritários.
Se errar na mão, a equipe de transição pode
se ver surpreendida. Afinal, a terceira parte da dinâmica da dívida pública é o
custo de refinanciá-la, que depende não só do estoque da dívida, mas também dos
juros de mercado, que são diretamente influenciados pela percepção de risco
fiscal.
Como ensina o primeiro governo Lula,
estabilidade macroeconômica é condição necessária para o progresso social. As
escolhas atuais vão se refletir no sucesso ou fracasso do governo que ainda nem
começou.
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