sábado, 19 de novembro de 2022

Bolívar Lamounier* - Vamos perder mais uma década?

O Estado de S. Paulo

Esqueçamos de vez o ‘Brasil Grande Potência’ – aquela que nos levou a perder a década de 1980 – e cuidemos da vida

Mais uma década perdida nos levará a outras mais, isso é óbvio. Podíamos ter perdido a de 1980? Noves fora, penso que sim, pois, embora o general-presidente não pudesse ter previsto a guerra de 1976 no Oriente Médio e o abrupto impacto financeiro que ela teve sobre nós, não teríamos caído no despenhadeiro dos anos 80 se ele, em vez de tentar industrializar o Brasil “em marcha forçada”, tivesse dado ouvido a pessoas mais sensatas. Mário Henrique Simonsen, por exemplo, sabia que natura non facit saltus. A insistência na estratégia faraônica custou-nos um longo período de inanição econômica e desemprego furando o teto. Por sorte, dispúnhamos da inteligência de que precisávamos para brecar uma inflação de 33 anos, coisa de que já não podemos estar certos.

E a década de 2010, era evitável? Essa, com certeza, não, por causa da profundeza dos pilares sobre os quais a assentamos desde o princípio. As etapas de nossa descida morro abaixo podem ser facilmente recapituladas. Começou com entendimentos não tão republicanos, como seria de desejar, envolvendo uma fração infinitesimal do eleitorado brasileiro. Com uma crise internacional batendo às portas e as compras chinesas dando sinais de desaceleração, um seleto grupo formado por pessoas investidas em cargos públicos, empreiteiros de altíssimo coturno e ao menos um dotado de excepcional talento publicitário decidiram, recebendo em troca favores ainda não inteiramente esclarecidos, que o mandato de 2011-2014 haveria de ficar nas mãos de Dilma Rousseff e Guido Mantega.

Abstenhamo-nos de jogar toda a culpa na pandemia, pois sabemos que a “nova matriz econômica” chegou bem antes dela. Veio trazendo a maior recessão de nossa história e dispensando os préstimos de milhões de trabalhadores. O impeachment da suprema mandatária, estilhaços da Lava Jato, um sistema político esmigalhado e a substituição da civilidade pelo esmurro generalizado, a partir da eleição de 2018, demonstram que o Brasil é capaz de manter a democracia, mesmo sem a desejável galhardia.

Faremos bom uso da presente década? Pode ser que sim, pode ser que não. Tendo a crer que sim, porque acredito piamente que o medo e o bom senso se dão muito bem. Nem sempre, mas em geral se entendem. Se um dia discernirmos o espectro da guerra civil, o mais provável é que saudaremos com entusiasmo a chegada do juízo. Após meio século de vida política, Lula parece ter adquirido algum. Formando um bom ministério, terá condições de pacificar o País. E, se o fizer nos próximos quatro anos, a década estará salva, pois não é crível que cometamos o disparate de repetir esse enredo.

Mas certas hipóteses colaterais devem ser examinadas. Sabemos todos que Lula venceu Bolsonaro por um fio de cabelo. Se tivesse angariado, digamos, 70% dos votos válidos, o problema estaria resolvido. Nem em seus piores pesadelos ele aceitaria ser visitado pelo comandante-general Juan Domingo Perón. Com Bolsonaro, acontece o contrário. Se tivesse tido só 30% dos votos, meteria a viola no saco e iria cuidar de sua vida. Mas chegou quase ao empate. Nessa faixa, há lugar para muito ressentimento e para as mais descabidas alucinações. Para piorar as coisas, uma parcela de seus adeptos – entre os quais os caminhoneiros – o acoimará de traidor se optar por sombra e água fresca. Se Lula não conseguir desarmar a bomba do rancor com certa brevidade, o coquetel Bolsonaro + caminhoneiros + telefone celular poderá se constituir até com certa facilidade: nitroglicerina pura.

A esta altura, os leitores com certeza estarão me cobrando o que prometi no título deste artigo: o que poderemos fazer para evitar uma terceira década perdida? À primeira vista, começamos mal. Lula poderia ter dito qualquer coisa, menos que “equilíbrio fiscal causa sofrimento às pessoas e impede as crianças de tomar um copo de leite na hora de dormir”. Por sorte, a turma do deixa-disso entrou em cena e ficou combinado que a fala de Lula fora só uma brincadeirinha. Adentrando, então, o recinto das coisas sérias, qual deve ser nosso primeiro passo, além da já dita e repetida pacificação? Meus caros leitores hão de me desculpar, mas é o óbvio ululante. Precisamos ter um mínimo de ideia, um rabisco que seja de que país queremos e somos capazes de construir. Evito, por pura antipatia, a expressão “projeto nacional”. Precisamos cair na real de que nunca atingiremos o nível de vida da Alemanha, da Suécia ou dos Estados Unidos. Mas por que pensar nesses termos? Podemos perfeitamente pensar num país mais modesto, que cultive a normalidade de uma renda anual por habitante aceitável e bem distribuída, no qual todas as crianças possam “tomar seu copo de leite” e a educação e a segurança pública sejam prioridades absolutas. Um país que enfrente de peito aberto o desafio da reforma política e se livre da esparrela em que a Constituição de 1988 o meteu, a ponto até de impedir o combate à corrupção. Esqueçamos de vez o “Brasil Grande Potência” – aquela que nos levou a perder a década de 1980 – e cuidemos da vida.

*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membros das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Cuidemos da vida ou coisa parecida.