sábado, 19 de novembro de 2022

Eduardo Affonso - Perdeu, mané

O Globo

O Brasil desandou a falar de seu maior complexo: a irrefreável vocação para matar o pai, Portugal, começando pela língua

Preocupado com a saúde mental do país, O GLOBO levou o Brasil a quatro renomados psicanalistas. Os diagnósticos estão lá, na página 29 da edição de domingo passado (13 de novembro): psicose, luto, autossabotagem, idealização, desilusão.

O Brasil ouviu, elaborou, racionalizou, introjetou, fechou uma gestalt, teve um insight e resolveu ouvir uma quinta opinião. Procurou Pai Dudu da Gamboa, que incorpora Freud, Jung, Reich e Lacan em seu terreiro — e volta e meia faz previsões imprevisíveis aqui, nesta coluna.

Acomodado no divã depois de um rápido banho de descarrego (não por falta do que descarregar, mas premido pelo tempo lógico), o Brasil desandou a falar de seu maior complexo: a irrefreável vocação para matar o pai, Portugal (começando pela língua) e se amasiar com a mãe África (uma relação ambígua de orgulho e preconceito). E, claro, do trauma recente:

— Tenho medo do desamparo, de passar o resto da vida como um sem-teto.

— Sem teto de gastos... – interpreta Freud.

— Sim. Foram quatro anos ao relento, e tudo indica que os próximos quatro também serão a céu aberto.

Reich sugere que o Brasil se solte mais, deixe de lado essa obsessão com censura e controle da mídia, invista no desbloqueio das armaduras psíquicas e das estradas.

— É que eu estou numa fase de transição. Não de gênero, mas de um mito para outro.

Jung lembra que foi para o Brasil que ele desenvolveu, postumamente, o conceito de “inconsequente coletivo”. Algo que se manifesta nas camadas mais epidérmicas da psique — quando milhões de pessoas se enrolam na bandeira para pedir que uma ditadura venha salvar a democracia. Ou outras tantas concordam em dar um cheque em branco a um notório perdulário para que ele as proteja da bancarrota.

— Impulsos sadomasoquistas — pontifica Freud. Vamos fazer associações livres...

— Ok. Faz o L, alea jacta est, jactância, Lava-Jato, Vaza-Jato, compra de jatos suecos, jato da FAB com cocaína, jet ski, viagem em jatinho de empresário condenado...

Freud faz anotações. Lacan faz um trocadilho. Darwin baixa, do nada, sente o clima e avisa que volta quando a situação tiver evoluído.

— Tenho tido pesadelos, doutor: eu sou um navio, e vem um iceberg desgovernado na minha direção. Ou uma Ponte Rio-Niterói, não sei bem. Os filhos do capitão brincam com o leme, achando que aquilo é um manete de videogame.

— Esse pesadelo vai acabar, já já...

— Sei que vai, mas já comecei a ter outro: agora eu sou um avião, e a mulher do piloto quer um lugar na cabine de comando. Sem contar que vivo me debatendo em falsos dilemas. Dividir o bolo ou esperar o bolo crescer? Economia ou saúde? Responsabilidade fiscal ou social?

— Você precisa fortalecer seu Ego liberal, equilibrando as demandas do Id de esquerda e as imposições do Superego de direita.

— É que metade de mim está em negação, se recusando a aceitar a mudança. A outra metade quer mudar, mas para voltar a ser o que já foi. Doutores, será que eu perdi o rumo, o bonde, o juízo?

Reich e Jung se entreolham, desolados. Lacan murmura algo incompreensível. Freud explica:

— Perdeu, mané.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Perdeu Mané,não amola.