domingo, 27 de novembro de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Lei para combater desinformação precisa melhorar

O Globo

Sem legislação que atribua deveres a plataformas digitais, ônus de proteger a democracia recairá sobre Judiciário

Os quatro anos de governo Jair Bolsonaro são sem dúvida o mais duro teste enfrentado pela Constituição de 1988, promulgada para restabelecer direitos civis esmagados durante 21 anos de ditadura militar. Apesar de todas as ameaças contra a democracia, que partiram do próprio Palácio do Planalto, as instituições resistiram, as eleições foram realizadas e vencidas pelo candidato de oposição, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A vitória de Lula impede que Bolsonaro permaneça no Planalto por mais um mandato, mas ao mesmo tempo acirra o sentimento que mobiliza manifestações golpistas em torno da narrativa conspiratória que ataca a urna eletrônica e vê a tábua de salvação na intervenção militar. Na atual circunstância, tal movimento não tem condição de prosperar. Ainda assim, precisa ser combatido pelas instituições.

Tal combate, cujo protagonismo foi assumido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), deixou claro que o arcabouço jurídico brasileiro se mostra incapaz de enfrentar a contento as ameaças à democracia, especialmente as que usam o meio digital. Para combater a enxurrada de desinformação e deter essas ameaças, o TSE lançou mão de expedientes inéditos, por vezes questionáveis, como o bloqueio de contas em redes sociais, o veto a expressões ou conteúdos, mesmo quando publicados em veículos de imprensa, e, na semana passada, uma multa de R$ 23 milhões aplicada ao partido do candidato derrotado.

Se é verdade que o golpismo precisa ser enfrentado, isso não pode servir de pretexto para que a própria Justiça cometa arbítrios por não dispor de instrumentos legais suficientes. Resolver a questão exige um arcabouço jurídico mais moderno, capaz de promover a defesa da democracia sem cercear os direitos legítimos às liberdades de expressão e manifestação.

Circula na equipe de transição a proposta de o Congresso derrubar dois vetos de Bolsonaro à nova Lei do Estado Democrático de Direito. O primeiro trecho vetado criminaliza o que a lei chama de “comunicação enganosa” e o financiamento de iniciativas que contestem o processo eleitoral, como as que vemos agora. O segundo trecho endurece a punição a militares que atentem contra a democracia, prevendo perda de cargo e patente.

É procedente a preocupação da equipe de transição. A derrubada do veto sobre o artigo que endurece a pena para militares golpistas é mais que oportuna. Reinstaurar o trecho sobre a “comunicação enganosa”, porém, não bastará. É sempre um desafio separar a desinformação que traz ameaça daquilo que não passa de opiniões que, mesmo estapafúrdias, precisam ser protegidas em nome da liberdade de expressão.

Está parado na Câmara o Projeto de Lei das Fake News. A versão atual traz avanços essenciais, como exigência de que as plataformas digitais tenham políticas transparentes de moderação e sejam responsabilizadas se divulgarem conteúdos danosos, depois de notificadas. Seria importante também resgatar a obrigação de moderarem posts de políticos e a rastreabilidade de conteúdos virais em aplicativos de mensagem. O desafio é chegar a uma fórmula capaz de proteger a liberdade de expressão e, ao mesmo tempo, coibir abusos antidemocráticos. Para isso, o essencial é que as plataformas participem do esforço para deter a desinformação e o golpismo, do contrário o ônus continuará a recair sobre a Justiça.

É preocupante o fracasso do Brasil nas metas de vacinação contra Covid

O Globo

Apenas duas unidades da Federação — São Paulo e Piauí — chegaram perto de vacinar 90% da população

Diante do cenário de aumento de casos de Covid-19 no Brasil, é preocupante a constatação de que apenas duas das 27 unidades da Federação tenham se aproximado até agora dos 90% de vacinados com a segunda dose: São Paulo (88,7%) e Piauí (88,4%). Considerando a população protegida com pelo menos uma dose de reforço, essencial para combater as variantes do coronavírus que circulam no país, os números são ainda mais alarmantes. São Paulo e Piauí, estados mais avançados na imunização, vacinaram apenas 60% de seus moradores.

Na média, o país vacinou 80,1% da população com a segunda dose. O reforço foi dado a 49,4% dos brasileiros. Os números não parecem tão ruins, mas escondem disparidades que põem em xeque as estratégias do Ministério da Saúde e dos governos locais. Em Roraima, apenas 53,5% da população recebeu a segunda dose, e somente 20,1% tomou algum reforço. O Amapá vacinou 56,8% e deu reforço a 28,6%. O Amazonas, que viveu um dos maiores horrores na pandemia, não vacinou nem 70% com as duas doses e aplicou o reforço em menos de 40%. Mesmo estados do Sudeste ainda não atingiram índices seguros de proteção. No Rio e no Espírito Santo, a aplicação da segunda dose ainda está abaixo de 70%, e o reforço ainda não atingiu metade dos moradores.

É compreensível que estados extensos, como Amazonas ou Pará, enfrentem dificuldades logísticas para levar as vacinas às localidades mais remotas. Mas, na maior parte do Brasil, não há desculpa para que a vacinação, iniciada em janeiro de 2021, não tenha deslanchado. Apesar de faltas pontuais de vacinas para certas faixas etárias, como as crianças, não se pode alegar escassez. Frascos com validade expirada têm sido jogados no lixo, um absurdo.

O Ministério da Saúde abusou dos erros. Demorou a comprar as vacinas e, quando as comprou, não obteve a quantidade necessária. Também perdeu-se tempo precioso discutindo bobagens como a necessidade de um termo de responsabilidade para vacinar ou submetendo decisões a inusitadas consultas públicas. Sem falar na campanha antivacina comandada por ninguém menos que o presidente da República. A inépcia não cabe apenas ao Ministério da Saúde. O governo federal envia as doses aos estados, que as distribuem aos municípios para que conduzam as campanhas de vacinação. Portanto o desempenho ainda insatisfatório deve ser cobrado também de governadores e prefeitos.

O que precisa ser feito? Vacinar. Faltam campanhas publicitárias para esclarecer os benefícios da vacinação, neutralizando a desinformação. Mas não adianta esperar que os cidadãos apareçam em locais inacessíveis que funcionam em horários incompatíveis com suas rotinas. Se o brasileiro não vai ao posto, que o posto vá até ele. É preciso recorrer a postos móveis ou levar as doses a locais de grande concentração. O que não dá é para ficar de braços cruzados enquanto quase cem brasileiros ainda morrem por dia em consequência de uma doença para a qual existem vacinas testadas e aprovadas. 

Haddad genérico

Folha de S. Paulo

Falando em nome de Lula, candidato a ministro mantém incerteza sobre a economia

Apontado como opção para a Fazenda, o petista Fernando Haddad falou em nome do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em evento da Febraban, a federação dos bancos. O discurso foi centrado na capacidade de diálogo de Lula, mas esteve longe de esclarecer as diretrizes da política econômica do próximo governo.

Não se exigiria que Haddad, ainda sem cargo definido, fosse antecipar detalhes de planos —provavelmente ainda inexistentes— para controlar gastos e evitar uma escalada da dívida pública, o problema central a ser enfrentado logo no início do mandato.

Pode-se também apontar que o ex-prefeito de São Paulo discorreu com propriedade sobre a reforma tributária, apresentada como prioridade imediata. Deve-se primeiro simplificar a cobrança de impostos sobre bens e serviços, com uma reformulação dos tributos sobre renda e patrimônio em um segundo momento, o que faz sentido.

Entretanto o candidato a ministro não obteve sucesso no que era mais importante. Afora menções genéricas à necessidade de melhorar a qualidade do gasto público, foi desperdiçada uma oportunidade para reverter os danos provocados pelo menoscabo em relação à responsabilidade fiscal demonstrado até aqui por Lula.

Se não houve novidade clara nessa seara, é porque não há nada de diferente que o presidente queira dizer —pode-se concluir.

Tal omissão exacerba as incertezas e, pior, o temor de que o novo governo vá optar por um rumo arriscado, de maiores gastos públicos sem contrapartidas, o que elevará a inflação e os juros. O alerta já foi reforçado pelo presidente do Banco Central, que manterá o posto, com autonomia, até 2024.

Haddad associou a piora da qualidade do gasto público ao teto para a despesa total inscrito na Constituição em 2016 —o que pode ser interpretado com má vontade ante o mecanismo de controle da dívida.

É fato que, sob o teto, o governo fica forçado a cortar investimentos e serviços importantes para compensar a alta de pagamentos obrigatórios, como salários e aposentadorias. Entretanto esse é um argumento para que se promovam reformas no Orçamento e no Estado, não para que se abandonem limites para os dispêndios.

Sem um plano crível para a contenção da dívida, o mercado credor exigirá juros maiores para continuar emprestando ao governo. O resultado será retração da atividade econômica e desemprego.

O ciclo econômico se mostra favorável, com forte criação de vagas no mercado de trabalho e retomada da renda. Seria um erro crasso interromper essa trajetória.

Carandiru, reta final

Folha de S. Paulo

Caso transita em julgado, mas expõe lentidão absurda da Justiça na punição a PMs

Trinta anos depois, o Judiciário ainda não deu uma resposta efetiva ao massacre do Carandiru —a intervenção policial brutal na antiga Casa de Detenção de São Paulo que resultou na morte de 111 presos, em 1992. No último dia 17, contudo, foi dado um passo importante em direção à responsabilização dos agentes policiais

Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal, reconheceu que não cabe mais recurso à sentença que reestabeleceu condenações dos policiais envolvidos no morticínio.

Agora, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) pode calcular o tamanho das penas que serão impostas de fato —a chamada fase da dosimetria. Mas o desembargador Edison Brandão pediu vista do caso, que deve retornar à pauta da corte apenas no início de 2023.

O caso expõe a morosidade inadmissível da Justiça brasileira, mesmo considerando a complexidade técnica na individualização de condutas em episódios coletivos.

O mesmo TJ-SP, em 2016, anulou todos os júris já realizados no caso e, dois anos depois, determinou novo julgamento. Foi em 2021 que o Superior Tribunal de Justiça atuou para reestabelecer as sentenças condenatórias, com penas que variam de 48 a 624 anos.

A decisão do STF, pois, confirma que a parte da revisão das condenações chegou ao fim. Segundo a defesa, 5 dos 74 policiais condenados morreram no curso do processo, bem como o governador à época, Luiz Antônio Fleury Filho, que faleceu no último dia 15.

Carandiru foi um marco de barbárie na história da polícia brasileira. Nenhum PM saiu baleado, enquanto 90% dos mortos entre os presos receberam tiros na cabeça.

Reconheça-se que os agentes se encontravam em uma situação de tensão extrema. Ainda assim, resta evidente o excesso de violência utilizado pelas forças do Estado, sob cuja tutela estavam os presidiários.

Anote-se que as instituições como um todo não encontram respostas adequadas à crise penitenciária no país, que abriga a terceira maior população carcerária do mundo. Desde o massacre, aumentou em pelo menos sete vezes o número de pessoas que estão sob algum tipo de restrição de liberdade.

Ao Legislativo caberia debater reformas no sistema, o que passa, entre outras questões, pela revisão da Lei de Drogas de 2006. A superlotação de cadeias com acusados e condenados por delitos menores fornece mão de obra para facções criminosas e cria palcos sinistros para novas tragédias.

Alfabetizar ajuda a matar a fome

O Estado de S. Paulo

O anunciado compromisso de Lula de combater a fome no País só tem a ganhar se o presidente eleito incluir a alfabetização de crianças entre as prioridades do futuro governo

Em seu primeiro discurso já como presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva anunciou que o compromisso de seu novo governo será, “mais uma vez”, acabar com a fome, garantindo que toda a população brasileira possa fazer três refeições por dia. Sim, erradicar a miséria é a grande urgência do País. E o simples fato de que o direito à alimentação − condição indispensável à vida − enseje a principal promessa de um presidente recém-eleito dá a exata dimensão da tragédia social do País. A reboque desse esforço emergencial e indispensável, uma outra prioridade poderia ser incorporada ao discurso do futuro mandatário: assegurar que toda criança seja alfabetizada na idade certa, isto é, até o 2.º ano do ensino fundamental, como preconiza a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Não se trata de prioridades excludentes. Quem tem fome, por óbvio, não está em condições de aprender. Nesse sentido, é bem-vinda a intenção do futuro governo, por exemplo, de reajustar os repasses federais para a merenda nas escolas municipais e estaduais de todo o País, algo que foi negligenciado pelo governo do presidente Jair Bolsonaro. Para muitos alunos, a merenda constitui a principal refeição do dia. E é, digamos assim, a face mais imediata da interseção entre educação e direito à alimentação.

A longo prazo, a educação tem um poder muito maior, na medida em que transforma vidas e abre caminho para o mercado de trabalho e para a universidade, descortinando a perspectiva de mobilidade social. Os ganhos, claro, não se restringem ao plano individual de cada estudante e sua família. Quando convertida em projeto nacional, a educação conduz a saltos de produtividade, cidadania e crescimento econômico.

Para isso, porém, o ensino precisa ser de qualidade e para todos, o que, infelizmente, está longe de ser realidade no Brasil, lembrando que o déficit educacional é um problema histórico, obra de todos os governos que já dirigiram este país. Daí a urgência de que a alfabetização das crianças esteja no topo das prioridades de Lula da Silva em seu terceiro mandato no Palácio do Planalto. Não é mais possível postergar o enfrentamento de um desafio que corrói as possibilidades de desenvolvimento da nação. Como se sabe, ler e escrever são a chave para as demais aprendizagens.

Ano após ano, gerações de alunos têm seu futuro comprometido porque vão à escola, mas não adquirem as mais elementares habilidades e competências. Em recente entrevista a O Globo, o diretor executivo da Fundação Lemann, Denis Mizne, foi direto ao ponto: “A escola não pode ser uma fábrica de crianças analfabetas”. Mizne tinha em mente os resultados do mais recente Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), teste realizado em 2021, durante a pandemia de covid-19, quando aproximadamente um terço dos alunos do 2.º ano do ensino fundamental ficou nos níveis mais baixos de desempenho. Considerando que boa parte das crianças selecionadas para a amostra nem sequer compareceu, faz sentido supor que o retrato nacional seja, na verdade, ainda mais precário. Sem falar nas disparidades regionais que levam alguns Estados a ter situação bem pior que outros.

A educação clama por soluções após o retrocesso decorrente do fechamento de escolas na pandemia, problema agravado pela inoperância do Ministério da Educação (MEC) sob Bolsonaro. Nesse sentido, a belicosidade da campanha eleitoral em nada ajudou: em vez do debate de propostas para o País, o que se viu foi uma desagradável troca de acusações entre candidatos. Agora, a equipe de transição do novo governo, já nomeada, terá menos de dois meses para fazer um amplo diagnóstico e sugerir futuras ações.

Sem dúvida, o próximo governo acertará se reforçar os vínculos entre o Auxílio Brasil (que voltará a se chamar Bolsa Família) e a escolarização de crianças e adolescentes, o que pode ser feito por meio de condicionalidades e incentivos. Apenas garantir o acesso à escola, no entanto, não basta. É preciso que o ensino prime pela qualidade – o que significa que, para começar, as crianças devem ser alfabetizadas na idade certa. Isso deveria ser tão óbvio, para qualquer governante, quanto presumir que todos os cidadãos precisam se alimentar.

A recessão global do Estado de Direito

O Estado de S. Paulo

Segundo o World Justice Project, o Estado de Direito declinou pelo 5.º ano consecutivo no mundo. No Brasil também, e ainda mais acentuadamente. Mas há alguns raios de esperança

O Estado de Direito está em recessão no mundo. De acordo com o Rule of Law Index, do World Justice Project (WJP), pelo quinto ano consecutivo, entre 140 países que cobrem 95% da população global, o Estado de Direito se debilitou em mais países (85) do que naqueles em que melhorou (54).

O Índice mede a percepção do Estado de Direito junto a acadêmicos, profissionais da Justiça e lideranças civis, com base em oito fatores: restrições ao poder governamental; ausência de corrupção; transparência; direitos fundamentais; ordem e segurança; aplicação das leis e normas; Justiça civil; e sistema criminal.

A pandemia exacerbou degradações preexistentes. Em 2021, o Estado de Direito se enfraqueceu em 74% dos países. Em 2022 houve desaceleração, mas não reversão do declínio, que atingiu 61% dos países. “Estamos emergindo de uma crise sanitária”, disse a diretora do WJP, Elizabeth Andersen, “mas não de uma crise de governança.”

Segundo os pesquisadores, a deterioração contínua se deve principalmente a três fatores: o enfraquecimento das restrições ao poder governamental; a erosão dos direitos fundamentais, causada por um autoritarismo crescente e a contração do espaço cívico; e a deterioração da Justiça civil, principalmente por uma discriminação crescente, demoras nos procedimentos e a debilitação de mecanismos de aplicação da lei.

A pesquisa aponta tendências de longo prazo alarmantes. Desde 2015, os índices declinaram em média 2,6%, devido a tendências autoritárias, incluindo a debilitação de freios e contrapesos, redução nos mecanismos de responsabilização e a erosão na proteção de direitos fundamentais.

O Brasil segue essa tendência, mas mais acentuadamente que a média global: o País compõe o pelotão dos países onde o declínio desde 2015 foi maior que 4%. Em 2022, o Brasil ocupou a 81.ª posição do ranking, quatro abaixo de 2021. Nas notas de classificação de 0 a 1, a avaliação do País é de 0,49, abaixo da média mundial (0,55) e mesmo da média da América Latina (0,52).

O único fator em que o Brasil está relativamente bem posicionado é na transparência: o País ocupa a 41.ª posição, com 0,6 pontos – enquanto a média mundial é de 0,52; e a da América Latina, de 0,51. Porém, também esse fator, junto com seis outros, vem se deteriorando. A queda mais substancial foi no fator Justiça civil, que mede a resolução de conflitos. Os brasileiros percebem seu sistema como razoavelmente acessível e impoluto, mas distorcido por discriminações, interferências do governo e, principalmente, por uma lentidão excessiva e pela baixa aplicação das decisões.

O único fator em que a nota brasileira melhorou foi na Justiça criminal. Mas isso traz pouco consolo, considerando que seria quase impossível piorar mais. Com 0,33 pontos – enquanto a média global é 0,47 e a regional, 0,41 –, o País está na 112.ª posição. A percepção é especialmente ruim nos subitens efetividade da investigação criminal (107.ª posição), sistema correcional (130.ª) e tempestividade e eficácia dos julgamentos (132.ª). O índice classifica o sistema penal brasileiro como o segundo menos imparcial do mundo, só à frente da Venezuela.

Por uma relação de causalidade intrínseca, a degradação global do Estado de Direito avança pari passu com a da democracia e das liberdades fundamentais, medidas por instituições como a Freedom House, a Economist Intelligence Unit ou a V-Dem. A pandemia e a guerra na Ucrânia foram golpes duros.

Mas 2022 também foi marcado por revezes de populistas e autoritários. Na França, Emmanuel Macron venceu Marine Le Pen. O Reino Unido defenestrou Boris Johnson. O eleitorado norte-americano impôs perdas ao trumpismo, e o brasileiro negou um segundo mandato a Jair Bolsonaro (ainda que à custa de resgatar outro populista). A Otan se robusteceu, e a aura de competência de autocratas como Vladmir Putin ou Xi Jinping se esmaeceu. Se esses raios de esperança serão os últimos de um crepúsculo da democracia liberal ou os primeiros de uma nova aurora, dependerá do vigor de seus defensores ao redor do mundo.

A camisa de todos os brasileiros

O Estado de S. Paulo

Após anos desvirtuada como insígnia de cisão social, camisa ‘canarinho’ volta a significar união e torcida

A exuberante estreia da seleção brasileira na Copa do Mundo do Catar, vencendo por 2 a zero a seleção da Sérvia, fez muito mais do que estimular a confiança de milhões de torcedores no hexacampeonato. Independentemente de sua trajetória no Mundial de futebol da Fifa, o time comandado pelo técnico Tite já conseguiu um feito e tanto fora dos gramados: ensejou uma espécie de virada de página para a reapropriação da camisa verde e amarela como um símbolo de todos os brasileiros.

Superada a mais tensa campanha eleitoral das últimas três décadas, o que se viu nas ruas, bares, clubes e lares no País inteiro foram cidadãos voltando a vestir a camisa “canarinho” pelo que ela sempre representou: um símbolo de união e torcida pelo sucesso da seleção brasileira em todos os torneios dos quais participe. Ora, nada mais natural para uma nação apaixonada por futebol e, principalmente, por seu escrete pentacampeão do mundo.

Há alguns anos, o uso camisa da seleção brasileira, entre outros símbolos, passou a ser reivindicado por um grupo de autointitulados “patriotas” – que desaguou nesse bolsonarismo radical que tanto mal causou ao País. Os integrantes mais radicais desse movimento se consideram os únicos representantes legítimos do “povo brasileiro” – condição que os autorizaria a tomar para si os símbolos nacionais, tanto os formais, como a Bandeira, o Hino e as Armas do Brasil, como os informais, como a camisa da seleção ou até mesmo a combinação das cores verde e amarelo.

Sempre vista como um símbolo de irmandade entre brasileiros de diferentes raças, religiões, orientações sexuais e preferências políticas e ideológicas, a camisa da seleção, nos últimos anos, passou a ser uma insígnia de cisão social, quando não de estímulo à violência. Muitos dos casos de agressão física ou verbal aos quais o País tristemente assistiu nos últimos anos foram deflagrados única e exclusivamente pela cor da camisa que um cidadão usava.

O uniforme da seleção brasileira tem as mesmas cores da Bandeira Nacional por razões óbvias. Trata-se de um manto que abriga todos os 214 milhões de brasileiros, não estes ou aqueles brasileiros, a depender do espectro ideológico ao qual se afiliam ou da apropriação política que governantes de turno queiram fazer dos símbolos nacionais em dada quadra histórica.

Um inequívoco sinal de que o Brasil está retornando para um estado de relativa normalidade, no qual o uso da camisa da seleção brasileira representa aquilo que é, ou seja, uma manifestação de torcida e pertencimento de quem quer que queira dela fazer uso, é o fato de muitos bolsonaristas estarem cogitando deixar de vestir a camisa “canarinho” após o início da Copa do Mundo e a ressignificação do vestuário. Os inconformados com o resultado da eleição presidencial, que há três semanas estão acampados em frente a quartéis País afora clamando por um golpe militar e que desafiam a Constituição bloqueando estradas por birra, não querem ser confundidos com os torcedores. Melhor assim, pois os torcedores do Brasil também não querem ser confundidos com golpistas.

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