O Globo
Coube ao capixaba Richarlison pegar este
Brasil ainda inseguro e presenteá-lo com felicidade cristalina, leve, livre e
solta
F. Scott Fitzgerald dizia não acreditar muito na felicidade. Nem na miséria humana, por sinal. “São coisas que você vê no palco, nas telas de cinema ou em livro. Mas elas nunca acontecem de fato na sua vida”, escreveu em 1933. Talvez o celebrado autor de “O grande Gatsby” não tenha sido posto à prova. Fosse ele brasileiro votante em 2022 e tivesse conseguido barrar nas urnas a reeleição do presidente Jair Bolsonaro, Fitzgerald talvez concordasse que a vida real comporta, sim, momentos de real felicidade. E, se tivesse podido assistir ao gol voador de Richarlison na Copa do Mundo do Catar, na tarde de quinta-feira, dificilmente resistiria ao arrastão de alegria, felicidade e júbilo que contaminou a nação. Houve os que resistiram, aglomerados em frente a quartéis e abduzidos pela miragem de uma reviravolta golpista. Jamais saberão o que perderam: o instante certo para estar do lado certo da História.
Foi tudo sem alarde nem aviso prévio. O
verde e amarelo, a camisa canarinho, a bandeira do Brasil sequestrados com
eficácia pelo bolsonarismo ao longo de quatro anos voltaram naturalmente aos
ombros, peitos e mãos da maioria dos brasileiros. Não de imediato. Como
garantir que os símbolos nacionais haviam de fato perdido a mitologia
extremista que lhes fora imposta pela propaganda “Deus, pátria e família”? A
Copa do Catar acabou servindo de ocasião ideal para todo democrata gostar de se
enrolar nas cores nacionais sem medo de ser confundido com golpista
radicalizado. E coube ao capixaba Richarlison de Andrade pegar esse Brasil
ainda inseguro e presenteá-lo com felicidade cristalina, leve, livre e solta
—em campo, com a marcação de dois gols, e fora dele, na vida.
Narigão adunco, cara que parece amarrada
quando sério, cabelo oxigenado, uma sobrancelha entrecortada e tatuagens pelo
corpo, Richarlison é o brincalhão que devemos levar a sério e de quem dá gosto
de se orgulhar. Aos 25 anos, é craque em campo sem precisar ser adulado como
herói. Sabe ter sido o atacante certo para a jogada certa no momento certo da
estreia. E nós aprendemos que ele também é o cidadão certo para este Brasil em
transição tão necessitado de reposição de valores.
Desde seu voleio com o pé à la façon de um
traço certeiro de Salvador Dalí com o pincel, Richarlison passa por uma espécie
de “descoberta do Brasil”. Seu posicionamento pessoal e estatura cívica
destravaram o merecido ranço da torcida nacional com a egolatria sem noção, mau
humor e exibicionismo social de tantos ídolos canarinhos. Nunca fez alarde de
seu trabalho comunitário, cuja extensão só agora vem à tona. E, apesar de viver
e jogar na Europa , está antenado nas dores do país.
— Parece que a gente não tem saída. Nem no
Dia da Consciência Negra. Aliás, que consciência? — indagou ao saber do
espancamento até a morte de João Alberto Freitas, negro, por seguranças a
serviço do supermercado Carrefour de Porto Alegre, dois anos atrás.
Também em 2020, quando o Amapá registrou
mais de 20 dias sem energia elétrica, o camisa 9 dedicou o gol de cabeça e a
vitória de 2 a 0 sobre o Uruguai nas eliminatórias sul-americanas a “todas as
pessoas do Amapá que estão sofrendo muito”. “Como cidadão brasileiro, peço que
as autoridades se pronunciem, o povo está sofrendo e poderiam dar atenção a
mais. Peço que possam olhar com carinho, são cidadãos de bem, estão lutando.
Imposto é muito caro, comida é muito cara e, agora, mais esse sofrimento”,
disse. Passados dois anos, 13 municípios do mesmo estado amazônico sofreram
novo apagão pouco antes da estreia do Brasil e de Richarlison no Catar. Por
sorte, a interrupção de energia foi breve, e os torcedores do Amapá puderam ter
a felicidade de ver os 2 gols do craque. Ou, como escreveu Martín Fernandez no
GLOBO: “Feliz deve ser Milos Veljkovic, o zagueiro sérvio: presenciou o gol
mais bonito da Copa do Mundo a dois metros de distância, atônito, incrédulo, e
ainda deu as costas ao artista para ver a bola encher as redes”.
Enquanto isso, em Brasília, uma militância bolsonarista encharcada de chuva e empedernida de insensatez se mantinha concentrada na Praça dos Cristais em frente ao Quartel-General do Exército. Vestiam a camisa 10 de um outro Brasil, o de Neymar, e davam as costas ao Mundial. “Dane-se a Copa: o verdadeiro jogo é contra o comunismo”, dizia um cartaz. Confundidos com o retorno das cores nacionais ao abraço da maioria, alguns militantes optaram por se vestir de preto, mais condizente com a cartilha miliciana. Não devem estar felizes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário