O Globo
São como a gente, a menos que se lhes
atribua algum traço racista imutável. Vitimados pelas mesmas doenças e
violências
Se fossem somente os ianomâmis, seria uma
tragédia, mas é muito mais que isso. É o destino trágico das “populações indígenas integradas”
ao sistema brasileiro. É uma repetição cruel do que ocorreu com os africanos
que aqui foram máquinas de trabalhar como escravos. De fato, os que chamamos de
“índios” são representantes de outras humanidades. São manifestações do humano,
hoje em estado de tortura física e moral. Na experiência de quem se dedicou ao
assunto, é o preço do cruel rito de passagem que vai do isolamento à integração
sempre mutiladora, senão genocida, quando essas “humanidades indígenas” são
canibalizadas por nosso mundo “civilizado”.
Quando falo em humanidades, penso no conceito de cultura de E. B. Tylor, de 1871! Nessa definição, cultura não é alta ou boa educação e belas-artes — é algo definidor da condição humana como “aquela totalidade complexa, que inclui conhecimento, crença, arte, lei, moralidade, costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como um integrante da sociedade”.
Quando etnólogos falam em “Línguas e
culturas indígenas do Brasil”, como fez num livro indispensável Darcy Ribeiro
em 1957, eles redefinem radicalmente as coletividades humanas chamadas
vulgarmente de “tribos” e “raças”, pois o cultural é sabedoria, moral e
costumes habituais — que se faz coletivamente sem pensar —, mas não é inato. É,
como tudo o que nos distingue como humanos, aprendido por meio de um sistema de
relações sociais.
Note bem, em 1871 Tylor nos tirou da tirania
das taras raciais e racistas (usadas até hoje como classificadores de coletivos
humanos) para ler as diferenças de costumes como uma totalidade — como um cosmo
que, ao lado do idioma, chega de fora para dentro. Tylor deu um passo decisivo
contra suposições biológicas usadas para explicar diferenças.
Quando, então, falamos da atual tragédia
ianomâmi, estamos de fato nos referindo à agonia de liquidar um modo
alternativo de ser humano. Nesse sentido, ser “índio” não é apenas ser um
autóctone ou um grupo ancestral que revela seu primitivismo andando nu... É
ser, como nós, uma “humanidade plena”, que vivencia a vida de modo alternativo,
mas de nenhuma maneira fora dos quadros gerais do que chamamos de “condição
humana”.
“Índios” são como a gente, a menos que se
lhes atribua algum traço racista imutável. Eles são vitimados pelas mesmas
doenças e violências, como qualquer outro grupo humano (devo lembrar a agressão
russa à Ucrânia?). Pois, como parceiros da nossa flutuante e contraditória
humanidade, eles, tal como nós, pagam um preço descabido por seu modo de ser e
agir.
A tragédia dos ianomâmis leva-me aos anos
1960, quando comecei a estudar essas sociedades e, em 1961, vivi três meses com
os gaviões na mata paraense.
Não tenho espaço para exprimir o que vi e pesquisei,
exceto para reiterar o dramático processo de contato intercultural desse grupo
de língua jê com os extratores de castanha locais, descrito no livro “Índios e
castanheiros”, escrito com Roque Laraia, um texto de juventude incapaz de
descrever os horrores que testemunhei.
Como assinalei no meu diário, os “índios”
não passavam um dia sem falar em morte e reafirmar que morreriam. Felizmente,
tal profecia não ocorreu, mas a extinção como um destino e a perda irreparável
de uma experiência humana alternativa poderia ter ocorrido. Tal foi o caso de
muitas dessas culturas que não tivemos o cuidado de sequer pensá-las como
esplêndidas experiências de viver na floresta com uma tecnologia engenhosa, mas
não engenheira, marcada muito mais pela reciprocidade que pela troca na qual um
lado tira vantagem do outro. Algo mais do que claro no caso ianomâmi, a que se
devem acrescentar o assalto a seu território, o roubo de suas riquezas, a
violação de suas almas por catequistas — e a infame indiferença de administradores.
É preciso a tragédia para agirmos e, quem sabe, ir da extinção para um ato de
benevolência.
*Antropólogo
2 comentários:
Uma aula magna de antropologia! Parabéns ao colunista e ao blog que divulgou este texto!
Muito bom o artigo.
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