Valor Econômico
A leitura correta por ora é de que não há
espaço para reduções da taxa de juros neste ano
Há defensores do corte imediato dos juros
que julgam que o Banco Central (BC) está preso em uma armadilha gerada pela
redução supostamente excessiva da taxa Selic para 2% em 2020. Segundo esses
críticos, a explosão da demanda decorrente dessa estratégia, associada aos
problemas na oferta, teria não só elevado muito a inflação como também a
tornado mais persistente.
Há uma série de equívocos nessa linha de raciocínio. Uma das principais falhas está associada ao entendimento sobre o manejo correto da política monetária. Ao contrário do argumentado por esses críticos, a decisão sobre os juros do BC não precisa assumir a obrigatoriedade qualquer que seja o custo da convergência da inflação para o centro da meta no prazo de previsibilidade da política monetária.
O intervalo de tolerância da meta existe
para acomodar a natural volatilidade da inflação. Caso o custo em termos de
retração da atividade e de aumento de desemprego seja considerado excessivo, a
autoridade monetária também pode usar da prerrogativa de não alcançar esse
intervalo no ano corrente nem no seguinte. Nessa eventualidade, o BC só precisa
explicar as razões desse não cumprimento. Esse tem sido o caso dos últimos
anos, quando a inflação anual terminou acima do topo superior da meta.
Nesse sentido, assim como em outros países
com o mesmo regime, não há razão para a mudança no Brasil da meta de 3% para os
próximos anos, como defendido por diversos críticos. Isso sem considerar o
risco desnecessário de fragilização da credibilidade dos objetivos traçados por
instituições públicas.
Por outro lado, não parece fazer sentido
promover um corte imediato da taxa Selic quando as projeções indicam perda de
ancoragem das expectativas de inflação até 2026, dado o quão essencial essas
projeções são para a dinâmica da inflação corrente. O não cumprimento do
intervalo de tolerância neste ano, assim como em 2021 e 2022, é outro fator que
requer um maior conservadorismo na gestão monetária.
Mais uma fragilidade dessas críticas
refere-se ao julgamento sobre as decisões do BC em 2020. A resposta monetária é
função, entre outros fatores, do desenho de cenários e das suas respectivas
projeções para a trajetória da inflação. Assim, não se pode julgar a atuação
passada do BC apenas sob a ótica das informações disponíveis hoje. As decisões
das autoridades públicas lidavam com um completo desconhecimento sobre as
reações da economia em um contexto caótico. Na época do corte da Selic para 2%,
a perspectiva para 2020 era de que o PIB poderia contrair quase 10%, a taxa de
desemprego superar 15% e haver deflação.
Naquele momento, ninguém era contra a
redução de juros, sendo a discordância centrada apenas na sua calibragem.
Enquanto alguns defendiam cortes mais profundos, outros argumentavam que a
diminuição dos juros teria de ser mais modesta. De qualquer forma, não é
possível garantir que os juros seriam, hoje, muito menores caso o recuo da
Selic tivesse sido menos intenso em 2020.
Uma falha adicional na argumentação dos
defensores do corte imediato dos juros refere-se à não levar em conta que,
apesar da grande evolução da modelagem nas últimas décadas, as previsões de
inflação têm se mostrado ainda mais imprecisas do que o usual em função do
aumento da incerteza. Cortes açodados da taxa Selic podem requerer, mais
adiante, altas de juros maiores do que as reduções promovidas no curto prazo e
aprofundar ainda mais as atuais mazelas.
Outra vulnerabilidade dessas críticas está
em sua motivação. Os posicionamentos a favor do corte imediato da taxa Selic
não parecem compatíveis com o presente cenário. Essas manifestações, porém, não
são necessariamente contribuições genuínas para o debate econômico. Os
discursos de alguns gestores de recursos, por exemplo, podem estar contaminados
pelo posicionamento de suas carteiras, que provavelmente oferecem maior retorno
com a materialização do cenário de corte expressivo dos juros - não embutido
nos preços correntes dos ativos, e não no caso da manutenção dos juros estáveis
por um período mais longo - compatível com os atuais fundamentos.
A ata da última reunião do Copom divulgada
ontem detalhou o seu cenário central e os riscos existentes, bem como enfatizou
que a resposta monetária dependerá dos fundamentos e da trajetória da inflação.
Segundo o documento, decisões recentes do governo atenuaram os estímulos
fiscais para a demanda, reduzindo o risco de alta da inflação no curto prazo.
Apesar de apontar que não há relação mecânica entre a apresentação do arcabouço
fiscal e a convergência da inflação, o Copom também sugeriu que o novo critério
pode contribuir para um recuo mais favorável da inflação.
Por outro lado, o BC alertou para o risco
negativo advindo de políticas parafiscais expansionistas para a taxa de juros
neutra e, consequentemente, para a dinâmica da taxa Selic - certamente, um
aviso sobre os impactos negativos de eventuais mudanças artificiais dos juros
do BNDES e de outros bancos estatais.
Em suma, não faz sentido crer que o BC está
preso em uma armadilha. Embora a desaceleração da economia e o aperto das
condições de crédito já estejam em curso, a transmissão da política monetária
por seus diversos canais ainda demanda tempo para garantir a continuação da
convergência da inflação para suas metas no médio prazo. Assim, a leitura
correta por ora é de que não há espaço para reduções da taxa de juros neste
ano.
Se o cenário mudar, também terá de mudar a
resposta monetária. Se os riscos apontados nos documentos do Copom se
confirmarem, a reação de política monetária precisará ser alterada. Na
eventualidade de surgirem claros prenúncios de forte recuo das expectativas de
inflação, a taxa Selic será reduzida. Por outro lado, caso a perda de ancoragem
dessas expectativas para os próximos anos continuar, o arcabouço fiscal for
insatisfatório ou as pressões inflacionárias aumentarem, será preciso revisitar
a estratégia de estabilidade dos juros.
PS: Esse texto trata de um tema que agradava
meu dileto amigo, Natan Finger, que partiu do nosso convívio na semana passada.
Sentirei sua ausência.
*Foi economista-chefe do Credit Suisse e Chase Manhattan. Tem Ph.D. em economia pela Universidade da Pensilvânia
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