quarta-feira, 29 de março de 2023

Nilson Teixeira* - BC não está preso em uma armadilha

Valor Econômico

A leitura correta por ora é de que não há espaço para reduções da taxa de juros neste ano

Há defensores do corte imediato dos juros que julgam que o Banco Central (BC) está preso em uma armadilha gerada pela redução supostamente excessiva da taxa Selic para 2% em 2020. Segundo esses críticos, a explosão da demanda decorrente dessa estratégia, associada aos problemas na oferta, teria não só elevado muito a inflação como também a tornado mais persistente.

Há uma série de equívocos nessa linha de raciocínio. Uma das principais falhas está associada ao entendimento sobre o manejo correto da política monetária. Ao contrário do argumentado por esses críticos, a decisão sobre os juros do BC não precisa assumir a obrigatoriedade qualquer que seja o custo da convergência da inflação para o centro da meta no prazo de previsibilidade da política monetária.

O intervalo de tolerância da meta existe para acomodar a natural volatilidade da inflação. Caso o custo em termos de retração da atividade e de aumento de desemprego seja considerado excessivo, a autoridade monetária também pode usar da prerrogativa de não alcançar esse intervalo no ano corrente nem no seguinte. Nessa eventualidade, o BC só precisa explicar as razões desse não cumprimento. Esse tem sido o caso dos últimos anos, quando a inflação anual terminou acima do topo superior da meta.

Nesse sentido, assim como em outros países com o mesmo regime, não há razão para a mudança no Brasil da meta de 3% para os próximos anos, como defendido por diversos críticos. Isso sem considerar o risco desnecessário de fragilização da credibilidade dos objetivos traçados por instituições públicas.

Por outro lado, não parece fazer sentido promover um corte imediato da taxa Selic quando as projeções indicam perda de ancoragem das expectativas de inflação até 2026, dado o quão essencial essas projeções são para a dinâmica da inflação corrente. O não cumprimento do intervalo de tolerância neste ano, assim como em 2021 e 2022, é outro fator que requer um maior conservadorismo na gestão monetária.

Mais uma fragilidade dessas críticas refere-se ao julgamento sobre as decisões do BC em 2020. A resposta monetária é função, entre outros fatores, do desenho de cenários e das suas respectivas projeções para a trajetória da inflação. Assim, não se pode julgar a atuação passada do BC apenas sob a ótica das informações disponíveis hoje. As decisões das autoridades públicas lidavam com um completo desconhecimento sobre as reações da economia em um contexto caótico. Na época do corte da Selic para 2%, a perspectiva para 2020 era de que o PIB poderia contrair quase 10%, a taxa de desemprego superar 15% e haver deflação.

Naquele momento, ninguém era contra a redução de juros, sendo a discordância centrada apenas na sua calibragem. Enquanto alguns defendiam cortes mais profundos, outros argumentavam que a diminuição dos juros teria de ser mais modesta. De qualquer forma, não é possível garantir que os juros seriam, hoje, muito menores caso o recuo da Selic tivesse sido menos intenso em 2020.

Uma falha adicional na argumentação dos defensores do corte imediato dos juros refere-se à não levar em conta que, apesar da grande evolução da modelagem nas últimas décadas, as previsões de inflação têm se mostrado ainda mais imprecisas do que o usual em função do aumento da incerteza. Cortes açodados da taxa Selic podem requerer, mais adiante, altas de juros maiores do que as reduções promovidas no curto prazo e aprofundar ainda mais as atuais mazelas.

Outra vulnerabilidade dessas críticas está em sua motivação. Os posicionamentos a favor do corte imediato da taxa Selic não parecem compatíveis com o presente cenário. Essas manifestações, porém, não são necessariamente contribuições genuínas para o debate econômico. Os discursos de alguns gestores de recursos, por exemplo, podem estar contaminados pelo posicionamento de suas carteiras, que provavelmente oferecem maior retorno com a materialização do cenário de corte expressivo dos juros - não embutido nos preços correntes dos ativos, e não no caso da manutenção dos juros estáveis por um período mais longo - compatível com os atuais fundamentos.

A ata da última reunião do Copom divulgada ontem detalhou o seu cenário central e os riscos existentes, bem como enfatizou que a resposta monetária dependerá dos fundamentos e da trajetória da inflação. Segundo o documento, decisões recentes do governo atenuaram os estímulos fiscais para a demanda, reduzindo o risco de alta da inflação no curto prazo. Apesar de apontar que não há relação mecânica entre a apresentação do arcabouço fiscal e a convergência da inflação, o Copom também sugeriu que o novo critério pode contribuir para um recuo mais favorável da inflação.

Por outro lado, o BC alertou para o risco negativo advindo de políticas parafiscais expansionistas para a taxa de juros neutra e, consequentemente, para a dinâmica da taxa Selic - certamente, um aviso sobre os impactos negativos de eventuais mudanças artificiais dos juros do BNDES e de outros bancos estatais.

Em suma, não faz sentido crer que o BC está preso em uma armadilha. Embora a desaceleração da economia e o aperto das condições de crédito já estejam em curso, a transmissão da política monetária por seus diversos canais ainda demanda tempo para garantir a continuação da convergência da inflação para suas metas no médio prazo. Assim, a leitura correta por ora é de que não há espaço para reduções da taxa de juros neste ano.

Se o cenário mudar, também terá de mudar a resposta monetária. Se os riscos apontados nos documentos do Copom se confirmarem, a reação de política monetária precisará ser alterada. Na eventualidade de surgirem claros prenúncios de forte recuo das expectativas de inflação, a taxa Selic será reduzida. Por outro lado, caso a perda de ancoragem dessas expectativas para os próximos anos continuar, o arcabouço fiscal for insatisfatório ou as pressões inflacionárias aumentarem, será preciso revisitar a estratégia de estabilidade dos juros.

PS: Esse texto trata de um tema que agradava meu dileto amigo, Natan Finger, que partiu do nosso convívio na semana passada. Sentirei sua ausência.

*Foi economista-chefe do Credit Suisse e Chase Manhattan. Tem Ph.D. em economia pela Universidade da Pensilvânia

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