Sobram motivos para a PEC da Anistia ser rejeitada
O Globo
Perdão a irregularidades não é único
problema. Método para ampliar diversidade também é questionável
A principal crítica à PEC da Anistia é óbvia:
o texto libera os partidos de qualquer punição por irregularidades, com exceção
do uso de recursos públicos em benefício pessoal. Verbas de viagens sem motivo,
fretamento de aviões por preço exorbitante, salários descolados da realidade,
até a compra de toneladas de carne para churrasco, tudo a PEC perdoa
retroativamente. Não faz sentido o Congresso criar leis eleitorais para depois
esse mesmo Congresso dizer que elas não precisam ser cumpridas. Só isso já
deveria bastar para que a PEC fosse rejeitada. Mas esse não é o único problema.
O pretexto alegado para a proposta que angariou apoio entre partidos de todos os matizes ideológicos é aumentar a representatividade de mulheres e negros no Congresso. O objetivo é louvável e necessário. Os métodos sugeridos, contudo, são questionáveis.
Para começar, se a meta é ampliar a
participação desses grupos, qual o sentido de anistiar partidos que não
preencheram a cota mínima de 30% de candidaturas femininas em 2022? Ou os que
não destinaram às campanhas de negros e mulheres o valor previsto em lei?
Deixar de punir quem não estimulou a diversidade não parece a forma mais
sensata de favorecê-la.
As mudanças sugeridas pela PEC não derivam de
estudo sobre políticas de diversidade ou exemplos comprovados. Algumas até
pioram a situação atual. É o caso do artigo que prevê a obrigatoriedade de
partidos distribuírem um patamar mínimo de 20% ou 30% do fundo eleitoral a
candidatos negros (categoria que inclui pretos e pardos). Em 2022, por decisão
do Supremo, as legendas já foram obrigadas a distribuir verba
proporcionalmente. Como 50% dos candidatos se declaram negros, já têm direito a
metade da verba, bem mais do que manda a PEC.
A mudança mais temerária diz respeito às
mulheres. Em vez da cota de 30% para candidaturas femininas em vigor, ela cria
uma cota feminina de 20% das cadeiras da Câmara, assembleias estaduais e
câmaras municipais. A ideia embute vários problemas.
Primeiro, o retrospecto de seu uso não é
positivo. Entre 133 países que mantêm políticas de estímulo à participação
feminina, apenas 29 adotam cotas de vagas no Parlamento, segundo a ONG Idea.
Desses, só 3 são democracias: Guiana, Samoa e Taiwan. A maioria são regimes
autoritários do Oriente Médio ou da África. Em democracias da Europa ou da
América Latina, o mais comum é haver cotas nas candidaturas, não reserva de
vagas.
O motivo é que a reserva de vagas introduz
uma distorção no equilíbrio democrático: um voto numa candidata passa a valer
mais que o mesmo voto num candidato. No Brasil, a regra adotada para
distribuição das vagas ainda envolve cálculo de quociente eleitoral, sobras e
uma série de dispositivos que ganhariam mais complexidade caso a PEC fosse
aprovada (o texto não apresenta avaliação do impacto das novas regras na
composição do Parlamento).
O benefício, em contrapartida, seria mínimo.
Hoje 18% dos parlamentares são mulheres —patamar baixo que envergonha o Brasil.
Mas a cota sugerida para o futuro é de apenas 20% (15% na transição). Na melhor
hipótese, seria uma mudança inócua. É essencial estimular a participação das
mulheres na política e ampliar a bancada feminina no Legislativo. Mas
evidentemente há formas mais eficazes de alcançar esse objetivo. Mais uma razão
para o Congresso rejeitar a PEC da Anistia.
Grandes eventos são aposta certa para
reerguer economia carioca
O Globo
Potencial poderá ser ampliado ainda mais com
melhora na qualidade de acomodação, mobilidade e segurança
Tem se revelado bom negócio a aposta do Rio
no setor de grandes eventos, uma das vocações da cidade que sediou duas finais
de Copas do Mundo, uma Olimpíada, conferências da ONU (como a Rio92) e é
conhecida mundialmente pelas festas de réveillon e carnaval. A Secretaria
municipal de Desenvolvimento Econômico estima que o PIB do município crescerá
3,3% neste ano, turbinado por uma agenda de shows, congressos e feiras que se
estende de janeiro a dezembro.
Só neste ano, a sequência inclui a
comemoração do centenário do Copacabana Palace, a Bienal do Livro, o evento de
tecnologia Web Summit, o Rio Gastronomia, o Vinhos de Portugal e a Abav Expo,
maior encontro de turismo na América Latina. Ainda estão previstos a final da
Copa Libertadores no Maracanã, o show de Paul McCartney, também no Maracanã, e
o projeto Aquarius. Para o ano que vem, estão agendados mais uma edição do
festival Rock in Rio, o Rio Open de Tênis, o Rio2C, o Web Summit Rio e a cúpula
do G20.
A agenda movimentada se traduz em mais
recursos para a cidade. No primeiro semestre, a arrecadação com ISS de
atividades ligadas a turismo e eventos somou R$ 175 milhões, aumento de 40% em
comparação com o mesmo período de 2019, antes do choque da pandemia. A
realização de congressos, feiras, eventos culturais e esportivos tem impacto
direto nos negócios de hotéis, bares, restaurantes e transportes.
É sabido que, pela infraestrutura construída
para os megaeventos e pelo potencial turístico, o Rio tem condições de sediar
grandes eventos. Mas eles não vêm naturalmente. A prefeitura precisa
disputá-los com outras cidades e provar ser capaz de oferecer acomodação,
mobilidade e segurança ao público. Isso passa também pela necessidade de ter um
aeroporto internacional funcionando plenamente. Boa vontade, recepção calorosa
e belas paisagens, que o Rio tem de sobra, não são suficientes para manter a
agenda cheia. Exige-se profissionalismo num mercado hipercompetitivo.
A segurança ainda representa um problema.
Embora nos últimos anos o estado tenha melhorado em vários indicadores, as
constantes guerras entre quadrilhas, tiroteios e roubos de rua afetam a
percepção de segurança de moradores e visitantes. Continuar a melhorar nessa
área será fundamental para manter a agenda cheia.
Está claro que é esse o caminho que o Rio
deve seguir na busca de um círculo virtuoso. O turismo e a realização de
eventos são vocações que não podem ser desperdiçadas para recuperar a economia
da cidade. Quanto mais eventos, maiores as chances de aumentar a arrecadação e
a geração de empregos. Com mais dinheiro em caixa, a prefeitura poderá prestar
melhores serviços a moradores e turistas. Todos saem ganhando.
O padrão Aras
Folha de S. Paulo
Após vexame do nomeado por Bolsonaro, Lula
deveria usar lista tríplice para PGR
Terminou com as inconfundíveis notas de
pusilanimidade a passagem de Augusto Aras pela Procuradoria-Geral da República.
Desde 2019 à frente de uma instituição
responsável por defender os interesses da coletividade e vigiar o poder, Aras
se notabilizou pelo oposto disso: em vez da
independência, a fidelidade canina ao presidente da República; em
vez do espírito combativo, a omissão diante dos mais variados e graves
desmandos de Jair Bolsonaro (PL).
Neste ano, depois que a chefia do governo
federal tinha trocado de mãos, ele resolveu agir. Criou um grupo para
responsabilizar os envolvidos na intentona golpista de 8 de janeiro e abriu
inquérito contra três deputados bolsonaristas recém-diplomados que teriam
incentivado os atos antidemocráticos.
Assim o fez não por convicção, pois não
faltaram oportunidades para demonstrá-la antes, mas por querer se aproximar do
novo presidente da República e, quem sabe, ampliar suas chances de permanecer
no cargo.
Atirou-se nesse mister com tal afinco que nem
se preocupou em preservar algum senso do ridículo. Na segunda-feira (25), um
dia antes de deixar a PGR, Aras exaltou sua atuação para manter o equilíbrio
democrático no Brasil e afirmou que "um dia, adiante", essa história
será detalhada.
Entabulava, com essa referência fantasiosa,
uma conversa com Dias Toffoli, ministro do Supremo Tribunal Federal que, horas
antes, em outra cerimônia, havia
enaltecido "a paciência, a discrição e a força do silêncio" de Aras para
evitar uma ruptura institucional.
Que queira se reinventar é coisa que se
compreende; que Toffoli o ajude a fazê-lo escapa até à imaginação. Onde o
magistrado viu paciência, discrição e força do silêncio havia, de fato,
submissão, apatia e cumplicidade.
Aras nada fez quando Bolsonaro negligenciou
os cuidados mais básicos no enfrentamento da Covid-19. Tampouco reagiu às
reiteradas investidas contra a ordem democrática e a harmonia entre os Poderes.
Se o país se manteve de pé, foi apesar do agora ex-procurador-geral, e não por
causa dele.
O fim de seu mandato abre uma oportunidade
para Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Primeiro presidente a nomear para a PGR
alguém votado em lista tríplice pelos membros da carreira, o petista deveria
retomar essa tradição e mostrar que se diferencia do antecessor no que tange a
compromissos democráticos e condutas republicanas.
Infelizmente, o mandatário não deu sinais de
que seguirá esse curso virtuoso. Pois, se restou um legado positivo de Aras na
PGR é este: não há argumento mais eloquente a favor da lista tríplice do que a
vergonha de seus dois mandatos.
Social com eficiência
Folha de S. Paulo
Bolsa Família pode ter resultados melhores no
combate à pobreza e à desigualdade
Das muitas contribuições para a criação do
Bolsa Família, a do Banco Mundial é das menos lembradas, mas está entre as mais
importantes. Ainda hoje, o organismo acompanha o programa com observações
pertinentes.
Quando Luiz Inácio Lula da Silva (PT) venceu
as eleições presidenciais pela primeira vez, em 2002, seu principal plano
social era um certo Fome Zero —que, de forma burocrática e paternalista, previa
a distribuição de cartões magnéticos a serem utilizados exclusivamente para a
compra de alimentos.
No ano seguinte, o Banco Mundial ajudou a
patrocinar a alternativa que ganharia o apoio da ala liberal do governo então
instalada no Ministério da Fazenda: um programa mais simples e eficaz para
transferir renda diretamente às famílias mais pobres, condicionado a
contrapartidas como vacinação e frequência escolar dos filhos.
Duas décadas depois, o Bolsa
Família tem hoje dimensões inimagináveis na época de sua concepção. Mas,
no entender do organismo multilateral e de estudiosos, ainda precisa de
aperfeiçoamentos para se tornar mais eficiente.
Entre os alvos, destaca-se o piso de R$ 600
mensais por família, herança do auxílio emergencial instituído durante a
pandemia, que se converteu em regra na ofensiva eleitoreira de Jair Bolsonaro
(PL).
A norma improvisada gerou distorções e
injustiças. Pagava-se o mesmo valor a famílias de diferentes dimensões, criando
incentivo, por exemplo, para que um casal se cadastrasse como duas famílias.
Lula prometeu manter o piso na campanha do
ano passado, mas no governo estabeleceu adicionais de R$ 150 por criança e R$
50 para jovens, gestantes e nutrizes. Elevaram-se os custos, portanto, para
mitigar distorções. Ainda assim, famílias menores, em geral menos pobres,
continuam recebendo valores per capita maiores.
O Banco Mundial sugere uma alternativa que
ele próprio reconhece ser politicamente difícil: pagamento de
R$ 150 por membro da família, mais R$ 150 por menor de idade —de
modo a beneficiar os lares com mais moradores e mais crianças e adolescentes.
Mesmo que o abandono do piso seja implausível nas atuais circunstâncias, parece claro que os recursos recordes de quase R$ 170 bilhões anuais do programa podem atingir resultados ainda melhores no combate à pobreza e à desigualdade. Trata-se de oportunidade que o país não pode desperdiçar
Quando a prudência é ignorada
O Estado de S. Paulo
Nem a Receita Federal confia nas projeções de
arrecadação do governo para 2024.
Entre as propostas que o governo anunciou
para aumentar as receitas no ano que vem, uma das principais é a Medida
Provisória (MP) 1.185, que limita a possibilidade de que empresas utilizem
benefícios fiscais oriundos de um imposto estadual, o ICMS, para pagar menos
tributos federais.
A MP foi editada após o Superior Tribunal de
Justiça (STJ) ter acertadamente acatado a tese apresentada pelo governo no
processo. Brechas legais haviam expandido as possibilidades de uso do mecanismo
por empresas, garantindo que elas deduzissem não apenas investimentos da base
de cálculo dos tributos, mas até mesmo despesas correntes, corroendo
permanentemente a base fiscal da União.
Na certeza de que tinha caminho livre após a
vitória judicial, o governo enviou a medida provisória e previu que a proposta
renderia R$ 35,3 bilhões em 2024. Consultados, especialistas em contas públicas
ponderaram que essa projeção de receitas era demasiadamente otimista, uma vez
que dependia da aprovação da Câmara e do Senado para se materializar. A
Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, por exemplo, estimou que a
proposta renderia R$ 3,5 bilhões para a União – um valor relevante, mas que
corresponde a apenas 10% do que o governo acredita poder arrecadar com a MP.
O que ainda não se sabia, porém, é que até
mesmo técnicos da Receita Federal manifestaram dúvidas quanto às estimativas,
cuja efetivação estaria atrelada a “diversos eventos futuros e incertos”.
Reportagem publicada pelo jornal Valor revelou as ponderações feitas pelos
servidores da própria Receita Federal, responsáveis pela projeção.
Em nota técnica obtida via Lei de Acesso à
Informação, o chefe do Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros (Cetad),
Claudemir Malaquias, e os auditores fiscais Filipe Nogueira da Gama e Roberto
Name Ribeiro mostram como haviam chegado ao número de R$ 35,3 bilhões, sem
deixar de alertar que o cálculo era eminentemente técnico e ignorava a
possibilidade de que os contribuintes reagissem à proposta – algo mais do que
previsível.
“Frente a uma majoração de suas obrigações
tributárias, buscarão ativamente minimizar tal fardo, seja por meios legais,
como questionamentos judiciais e reformulação de estratégias tributárias, ou
até ilegais, como o aumento da evasão ou da elisão fiscal”, diz a nota. “Dessa
forma, recomendase cautela aos formuladores da política fiscal quando da
utilização de tais estimativas, devendo-se ter em mente a possibilidade de
frustração de parcela do aumento de arrecadação decorrente das medidas
analisadas.”
O sensato conselho dos servidores da Receita
Federal não foi suficiente para demover o excesso de confiança do governo
quanto ao sucesso da proposta, tanto que a projeção foi incluída na Exposição
de Motivos anexada à medida provisória, assinada pelo ministro da Fazenda,
Fernando Haddad. Ao apresentar a proposta de Orçamento do ano que vem, o
ministro disse que a Receita tinha sido bastante conservadora na projeção de
receitas – o que era verdade.
Haddad disse, no entanto, que o governo havia
sido “muito fiel” às recomendações das áreas técnicas que embasaram a peça
orçamentária. Não foi bem assim. Ao realismo manifestado pelos técnicos na
projeção das receitas ordinárias recorrentes, o governo respondeu com a
antecipação do pacote de medidas tributárias para arrecadar R$ 168 bilhões no
ano que vem. Já seria algo bastante desafiador se o Executivo contasse com uma
base parlamentar firme e confiável no Congresso, mas não é o caso.
Sem querer abrir mão do poder que conquistou
durante a pandemia, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), já deixou
caducar várias medidas provisórias sem realizar qualquer debate sobre a
pertinência de cada uma delas, bastando, para isso, impedi-las de tramitar.
Para piorar, segundo a Coluna do Estadão, a Câmara está em obstrução há duas
semanas e ficará sem apreciar nenhum projeto até que as indicações do deputado
ao comando da Caixa sejam concretizadas.
Seja por razões técnicas, seja por motivos
políticos, fica cada vez mais difícil acreditar no alcance do déficit zero em
2024.
A pindaíba dos municípios
O Estado de S. Paulo
Pressionadas por gastos obrigatórios com
saúde e educação, prefeituras clamam por mais repasses federais. Mas engordam
suas folhas de pagamento em período pré-eleitoral
Prefeitos de mais de 4.000 cidades preparam
uma marcha a Brasília em outubro para pressionar o governo Lula da Silva por
maiores repasses federais. A choradeira nada tem de novidade, mas tem
relevância. Expõe paradoxos ainda não superados ao longo dos 35 anos de
vigência da Constituição Cidadã. A correta transferência de atribuições sociais
aos municípios pela Carta de 1988 jamais encontrou respaldo em uma equação
federalista que garantisse às prefeituras as receitas necessárias para a
execução dessas e outras políticas essenciais aos cidadãos. Quem sofre com essa
omissão é o munícipe.
Reportagem do Estadão, integrante da série
Desigualdade – O Brasil tem jeito, expôs a dificuldade enfrentada pela maioria
dos municípios para quitar sua própria folha de pagamento – não raro, sobrecarregada
e vitaminada em períodos eleitorais. De janeiro a junho deste ano, o gasto com
os 7 milhões de servidores públicos das 5.568 cidades do País totalizou R$
208,5 bilhões. Os repasses federais, resultantes da partilha do Imposto de
Renda (IR) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), cobriram 74,8%
dessa conta.
Não há dúvida de que uma elevação casual dos
repasses da União aos municípios apenas enxugaria gelo. Cobriria o déficit na
folha de pagamento, que somente no primeiro trimestre deste ano cresceu mais de
16%, sem grandes chances de suprir a carência de investimentos urbanos nem de
melhoria no atendimento básico de saúde e educação. Obviamente, em razão de
interesses eleitorais, não se vislumbram cortes de servidores municipais.
A questão de fundo certamente está na equação
dos repasses federais e do acesso à parcela devida do Imposto Sobre Circulação
de Mercadorias e Serviços (ICMS) estadual, sobretudo pelo fato de que as
obrigações constitucionais de prover os serviços de saúde e educação recaíram
sobre os municípios desde 1988. Dados do Observatório de Informações Municipais
(OIM) mostram que, de 1972 a 2022, os dispêndios orçamentários das prefeituras
com saúde saltaram de 5,67% para 25,49%. No caso da educação, passaram de
14,82% para 26,76%. Os inevitáveis cortes recaíram, sobretudo, nos serviços
urbanos, com queda de 27,41% para 9,89%.
A compressão do Orçamento pelos gastos com
saúde e educação, entretanto, não é o único vetor da pindaíba das prefeituras
desfalcadas de recursos até mesmo para essas áreas, além dos cruciais
investimentos em saneamento básico e na infraestrutura urbana e rural.
Igualmente grave é a incapacidade de os municípios construírem, ao longo desses
35 anos, estruturas arrecadadoras eficientes dos tributos que lhes competem.
Nos mais pobres, é preciso considerar que a cobrança de IPTU é inviável; a do
ISS, nula; e a do ITBI, surreal. Fato é que a maioria dos municípios que
abrigavam mais de 50 mil habitantes de 2015 a 2019 não conseguiu coletar mais
do que 10% do seu orçamento, segundo o OIM.
A situação de Araguainha (MT), pinçada com
destaque pela reportagem, ilustra esse quadro. A prefeitura da cidade, onde
vivem 1.010 brasileiros, emprega todos os trabalhadores formais da localidade,
cujos salários consomem 64% dos repasses federais. Em contrapartida, cerca de
94,5% da população não tem acesso a esgoto tratado, a única escola está em
ruínas, não há creche e falta asfalto nas ruas. É admirável haver candidatos à
sua prefeitura.
Em parte, a reforma tributária poderá
contribuir para elevar a receita da maioria dos municípios, ao garantir a
arrecadação do novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) no destino do consumo,
conforme estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Mas há que
considerar seriamente a revisão das leis que regulamentaram a acertada decisão
do constituinte de 1988 de garantir maior protagonismo aos municípios no
federalismo brasileiro. A Carta, tal qual promulgada, é irretocável nesse
quesito. Mas, a bem do cidadão, falta ser aplicada.
A elucidação do blecaute
O Estado de S. Paulo
Conclusão técnica do ONS torna ainda mais
constrangedora teoria conspiratória de ministros
O blecaute do dia 15 de agosto começou com
falha técnica numa linha de transmissão da Chesf no Ceará, como já havia
adiantado o Operador Nacional do Sistema (ONS) no fim daquele mês. Mas o que
transformou o problema, com potencial reduzido de danos, em um dos maiores
apagões de energia das últimas duas décadas foi a incapacidade de parques de
geração eólica e solar espalhados ao longo da linha de controlar de forma
eficaz a mudança de tensão.
O efeito cascata deixou às escuras todo o
território nacional, à exceção de Roraima, ainda fora do sistema interligado. E
imediatamente acionou uma onda de ataques oportunistas à privatização da
Eletrobras por ministros de Estado, que aproveitaram para disseminar teorias
conspiratórias ligando o apagão aos atos antidemocráticos de 8 de Janeiro. Uma
enxurrada de bobagens sobre a qual a identificação do “evento zero”, antecipada
pelo ONS, jogou uma providencial pá de cal.
Agora que o operador do sistema explicou em
detalhes a causa da amplificação dos estragos, que normalmente ficariam
restritos ao entorno do equipamento de transmissão, faz-se necessário refletir
sobre o rápido alastramento das usinas de geração eólica e fotovoltaica. Não
para frear sua expansão, absolutamente necessária para diversificar e tornar
ainda mais limpa a matriz energética nacional, mas para organizar um mercado
ainda incipiente.
Quando o ONS quantifica em “centenas” as
providências a serem tomadas até julho do ano que vem, inclusive pelo próprio
órgão, para reforçar a segurança do sistema e evitar novos blecautes, essa
contagem dá a dimensão de como é fragmentado o mercado recém-incorporado ao
sistema, formado por unidades geradoras de pequeno porte, ainda mais se
comparadas à capacidade das hidrelétricas.
De acordo com a avaliação técnica, modelos
matemáticos apresentados por parques geradores para orientar simulações feitas
pelo ONS e Aneel não corresponderam ao que ocorreu na operação real. São
revisões em pontos como esse que estão sendo propostas para evitar que o
problema se torne estrutural, o que elevaria o risco de novos apagões.
O relatório Energy Report, publicado pela
consultoria especializada PSR logo após a falha ocorrida em agosto, destacou a
reconstituição trabalhosa dos incidentes que ocorreram em milésimos de segundo
no dia 15 de agosto para, com estes sinais, chegar ao cerne do problema. O
inevitável vácuo de informações sobre o que havia de fato ocorrido contribuiu
para que autoridades lançassem “ruídos” que aumentaram a apreensão geral.
De acordo com o documento, nem haveria como atribuir a falha à privatização da Eletrobras porque “simplesmente não houve tempo para qualquer mudança nos procedimentos e responsabilidades operacionais da empresa”. Ou seja, as ilações espalhadas por Alexandre Silveira (Minas e Energia), Flávio Dino (Justiça) e Rui Costa (Casa Civil), mesmo que em alguns casos como meras insinuações, foram tão inconsequentes quanto propositais. A capacitação energética é questão muito séria para ser turvada pelo radicalismo político.
Ata indica que condições para queda da
inflação pioraram
Valor Econômico
A ata é mais pessimista do que a anterior
sobre o futuro, o que sugere que o viés do BC passa longe de admitir um ritmo
maior de afrouxamento monetário
A ata da reunião do Comitê de Política
Monetária esteve a um passo de afirmar que estão ameaçadas as condições para
manter cortes sucessivos de 0,5 ponto percentual por um longo período - além
das duas próximas reuniões, nas quais praticamente se comprometeu com esse
ritmo. O cenário externo tornou-se menos favorável, com a alta dos preços do
petróleo, os juros de longo prazo americanos, que tendem a reduzir o afluxo de
capital para o Brasil e elevar o prêmio de risco dos ativos brasileiros, e a
desaceleração da economia chinesa, que deve deprimir preços de commodities e o crescimento
global. Mas é o cenário doméstico que desafia o Banco Central sobre o rumo
futuro dos juros.
Há mudanças significativas entre a ata de
agosto e a da reunião de setembro. A primeira discutia as condições para se
iniciar um ciclo de redução dos juros e sua velocidade. A conclusão foi que
havia espaço para que a Selic fosse cortada em um ritmo moderado, de 0,5 ponto,
nas próximas reuniões. A ata de setembro reavalia ao sabor dos últimos dados se
essa política pode persistir. A resposta foi sim, até o fim do ano, mas
sinalizando problemas no horizonte.
Em agosto, o BC ainda apontava que o conjunto
de indicadores sugeria um “cenário de desaceleração gradual da atividade”, com
retração no comércio, estabilidade na indústria e “certa” acomodação em serviços.
Não mais. Há “maior resiliência” da atividade econômica, os setores não
cíclicos da economia “mantiveram dinamismo”, e houve expansão da demanda
referente ao consumo das famílias. O comércio continua perdendo ritmo, o que
não acontece com a indústria, que teve “moderada reaceleração”, e os serviços
apresentaram estabilidade. A inflação arrefeceu nos serviços e nos núcleos, mas
componentes sensíveis ao ciclo mantêm-se acima da meta.
O Copom avaliou os motivos de indagação geral
- por que a atividade está mais forte do que seria esperado depois de um aperto
monetário muito forte? Ainda que com diferentes posições, os membros do Copom
examinaram quatro possibilidades. Embora não cheguem a uma conclusão
definitiva, os elementos da ata sugerem que a economia pode estar crescendo
mais do que seria adequado para consolidar a derrubada dos preços em direção à
meta.
Os reflexos da forte expansão agrícola em
setores industriais, em primeiro lugar, “não justificam toda a magnitude da
surpresa” do crescimento. A elevação da renda resultante da queda dos preços
dos alimentos, do desemprego, e da ampliação das transferências de programas
sociais foi considerada “muito relevante” e foi corroborada pela “resiliência
no consumo de serviços das famílias”. Essa parece ser a explicação principal,
mas a ata para por aí, para acrescentar ainda a chance de a taxa neutra de
juros ser maior do que a atual, hipótese a ser examinada, assim como a de o
crescimento potencial da economia ser maior do que o estimado, em decorrência dos
efeitos das reformas realizadas.
Obviamente, como a ata reflete, as quatro
possibilidades têm implicações diferentes para a política monetária. A
primeira, do impulso agrícola, é um choque de oferta positivo que ratifica a
decisão de cortes sucessivos na Selic. A da taxa de juros neutros maior, por
outro lado, indicaria que o aperto monetário tem sido menos intenso do que o
necessário e exigiria a interrupção da queda dos juros ou pelo menos sua
manutenção no nível atual por um bom tempo. A de crescimento potencial maior
favoreceria a política atual, já que o avanço do PIB poderia prosseguir sem
insuflar a inflação.
Resta então a hipótese da elevação da renda,
que parece ser a principal do BC e que é objeto indireto de outras apreciações
da ata do Copom, que praticamente anula a chance de um maior PIB potencial. “O
Comitê julga que o hiato do produto está mais apertado do que o estimado
anteriormente”, registra a ata, e “há elementos que elevam a incerteza das
estimativas e adicionam um viés para cima nas revisões das estimativas do hiato
do produto utilizadas pelo Comitê”. No documento da reunião de agosto, notou-se
apenas que tão importante quanto o nível do hiato era a velocidade com que ele
se fecharia, uma observação inconclusiva.
Outros elementos foram adicionados e inclinam
a posição do BC para o lado conservador. O El Niño pode ser pior do que o
esperado e reativar a pressão sobre os alimentos, para o qual concorreria
ademais a elevação dos preços do petróleo e desvalorização cambial. A
desancoragem prolongada da inflação, ao lado da resistência da economia, levou
alguns membros do BC a afirmar que elas “não permitem extrapolar com convicção
o comportamento benigno recente” da inflação. Além disso, preocupações quanto à
performance da política fiscal e à leniência do BC em relação à inflação - mais
dois membros serão substituídos em dezembro - estariam colaborando para o
desalinhamento das expectativas inflacionárias.
A ata é mais pessimista do que a anterior
sobre o futuro, o que sugere que o viés do BC passa longe agora de admitir um
ritmo maior de afrouxamento monetário. Se há algo que ela sugere é que o ritmo
atual possa ser menor no ano que vem.
CNJ dá meio passo à equidade na Justiça
Correio Braziliense
A decisão estabelece que as cortes devem
utilizar duas listas para promoção por merecimento, sendo uma exclusiva de
mulheres e, alternadamente, outra mista, como tradicionalmente ocorre
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou,
apesar das resistências, a paridade de gênero no Judiciário. A decisão
estabelece que as cortes devem utilizar duas listas para promoção por
merecimento, sendo uma exclusiva de mulheres e, alternadamente, outra mista,
como tradicionalmente ocorre. Não deixa de ser um avanço, mas, ainda assim,
retardará a formação equânime dos tribunais de segunda instância, tornando
igual o número de mulheres e homens que aplicam as leis.
A mudança de meio passo para a equidade de
gênero em todas instâncias está longe de dar cumprimento à Convenção sobre a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, editada pela
Organização das Nações Unidas (ONU), em 1979, e ratificada pelo Brasil em 1984,
com caráter constitucional. A Constituição Federal de 1988 também contempla
paridade de gênero em todas as instâncias de poder, mas também não é cumprida
como, supostamente, pensaram os constituintes.
Entre os marcos legais e a realidade, há um
fosso sistêmico construído e mantido pelo patriarcalismo. A regra é sublimar a
capacidade masculina e depreciar as potencialidades femininas. Uma norma que
destoa das leis e ignora a composição do tecido demográfico nos aspectos étnico
e de gênero. Prevalece a inspiração eurocêntrica e machista, em que homens
brancos são os mais competentes e, portanto, indicados para os cargos de poder.
Muito eventualmente, uma mulher ou homem afrodescendente chega aos postos de
decisão na estrutura do Estado.
Hoje, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem
uma composição hegemonicamente masculina. Ao longo dos seus 138 anos, a Corte
teve só três mulheres que ocuparam uma cadeira da Alta Corte — Ellen Gracie
Northfleet (2000-2011), Cármen Lúcia (desde 2006) e Rosa Weber (2011 até este
ano), e igual número de homens negros — o último deles foi o ministro Joaquim
Barbosa, hoje aposentado. Com a aposentadoria da presidente, ministra Rosa
Weber, nesta semana, 108,7 milhões de mulheres e 38% delas entre os 16 mil
magistrados estarão representadas só pela ministra Cármen Lúcia.
A alteração desse cenário, para que haja
equidade de gênero e étnica, independe da vontade dos integrantes do STF. A
composição da Corte se dá por indicação do presidente da República e aprovação
do Senado Federal. Se o chefe do Executivo escolher um homem para compor o
Supremo, a desigualdade fica preservada. Aliás, este tem sido o padrão dos
presidentes, que optam por homens brancos para o Supremo, uma tradição
firmemente construída e difícil de ser substituída por uma decisão voltada à
paridade de gênero.
Com a saída da ministra Rosa Weber, há claros
sinais de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva manterá o padrão: indicará
um homem branco para a vaga da ministra. Ele declarou que não pretende
considerar gênero nem etnia para a sua escolha. Presume-se que a movimentação
das mulheres, como a das ministras do STF, das que estão no Executivo e da
sociedade civil, não será capaz de levar o presidente a escolher uma mulher
branca ou negra para sentar na cadeira de Rosa Weber. Aliás, nenhuma preta
chegou neste patamar, embora muitas, na atualidade, tenham formação e estejam
capacitadas, pela atuação no Judiciário, para ocupar uma vaga no STF.
A queda das barreiras à ascensão de mulheres
e negros não ocorrerá tão cedo em um Brasil que cultiva, às vezes, por
descuido, outras, premeditadamente, os valores coloniais, como o machismo, a
misoginia, o racismo, enfim, um elenco de preconceitos. Sem um expurgo desses
valores superados, o país terá dificuldades de efetivamente ser democrático,
justo e orgulhoso pela sua diversidade.
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