quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Conrado Hübner Mendes* - O modelo Rosa Weber

Folha de S. Paulo

Deixasse esse único legado, bastaria para ser a maior do STF pós-1988

STF escalou, na última década, todo um Himalaia de abusividade ética e descompostura. E encontrou em Rosa Weber o seu maior contraponto de integridade. E em Edson Fachin o seu parceiro. Só restou isso para entender que nada daquilo é natural. Que o normal do STF não é aceitável em corte de Justiça nenhuma do mundo. Que interpelar e conter o alpinismo transviado de juízes é uma urgente causa democrática.

O descalabro ético afeta a capacidade de o tribunal cumprir seu papel de defesa da Constituição. Interessa a forças não republicanas e retrógradas do país. Deve ser denunciado pelo jornalismo responsável, pela crítica acadêmica e pela sociedade civil. Pois não o será pela profissão jurídica servil nem pela advocacia lobista, que brinda a magistocracia nos jardins do Lago Sul, nos teatros de Lisboa, nos terraços da Sardenha.

Uma corte que revogou a noção de conflito de interesses; em que ministro-empresário pede patrocínio a agentes econômicos, emprega magistocratas, constrói rede de influência política; em que filhos e esposas de ministros oferecem porta de acesso à corte por meio de honorários-pedágio, a taxa do parente, sem a qual se tornou difícil advogar em Brasília; em que ministros fazem negociações de constitucionalidade em público e frequentam coquetéis do poder privado.

Rosa Weber denunciou o descalabro não pela palavra, mas pelo exemplo.

Há compromissos que ministros do STF poderiam assumir para uma revolução na corte. Em 2019, imaginei um pacto por autorrespeito e rituais de imparcialidade; por discrição e compostura fora dos autos; por práticas republicanas contra o patrimonialismo judicial; por democratização do Judiciário e combate a privilégios.

Rosa Weber é o maior símbolo de compromisso com esse pacto no STF pós-1988. Estabeleceu um parâmetro ético e definiu onde deve ser colocado o sarrafo. Enquanto outros ministros aceitam convite de qualquer botequim para palestrar em Nova York, como se a audiência pagante estivesse lá para escutar as ideias da palestra, Rosa não negocia.

Sua discrição não é só traço de personalidade, mas opção pelo comportamento judicial apropriado ("judicial propriety"). Um pesadelo para repórteres que se acostumaram ao acesso fácil a ministros boquirrotos sabendo do desvio ético por trás da fofoca em off, Rosa Weber não vulgarizou seu papel público. Deixasse esse único legado, bastaria, mas deixou mais.

Suas contribuições jurisprudenciais e institucionais merecem respeito. Em seu curto mandato na presidência do STF e do CNJ, que mal completou um ano, foi autora de mudanças transformadoras.

Rosa Weber propôs e aprovou no plenário do STF resolução que limitou o uso estratégico do pedido de vista para obstrução individual. No CNJ, propôs e foi derrotada em resolução que tentava limitar as festas da Justiça, as palestras remuneradas (direta ou indiretamente) sem transparência e a promiscuidade de sempre.

Mas conseguiu, na última semana de seu mandato, aprovar resolução que cria paridade de gênero para promoção de juízes a tribunais (pesadelo do quase-desembargador paulista). Uma mudança revolucionária em tribunais que, em média, nunca tiveram mais que 20% de desembargadoras.

Na sua condução da pauta do STF, tirou das gavetas casos urgentes do PIBB (Produto Interno da Brutalidade Brasileira), como o marco temporal e o porte de drogas. Na jurisprudência do STF, esteve do lado vencedor em todos os casos que o tribunal celebra como progresso em direitos fundamentais. Na jurisprudência constitucional trabalhista, foi a mais arejada voz contra a precarização do trabalho.

Seu ímpeto pela reconstrução do plenário destruído em 8 de janeiro foi seu maior gesto de responsabilidade política. O voto no caso do aborto é seu maior legado intelectual, e passa a integrar o cânone global sobre o tema. Nesse voto, homens poderão aprender o que é a dimensão social da maternidade, justiça reprodutiva e cidadania feminina.

Que Lula cogite trocar essa mulher por membro do centrão magistocrático mostra que ele não entendeu com quem está lidando. Nem a esfinge lava-jatista. Depois de tudo.

*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

 

2 comentários:

Daniel disse...

Texto excepcional. Como é bom ler um texto com saber jurídico e filosófico, claro, muito bem escrito e argumentado. Muitos outros colunistas apenas querem nos vender seus preconceitos ou suas ideologias, disfarçadas de análises (falo especialmente de Magnoli, Rosenfield, Sardenberg e Waack, entre outros). Parabéns ao autor e ao blog por divulgar tanta qualidade!

ADEMAR AMANCIO disse...

O colunista é excelente.