quinta-feira, 28 de setembro de 2023

José Serra* - Políticas de emprego: passado e presente

O Estado de S. Paulo

O FAT, sua institucionalidade, legislação e políticas que o complementam cobram uma inusitada contemporaneidade

Quando, há mais de três décadas, um punhado de parlamentares – incluindo eu – inseriu na Constituição federal de 1988 e legislação posterior o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), não estava no horizonte a ruptura tecnológica que o avanço da Inteligência Artificial e seus desdobramentos representam para o mercado de trabalho.

Em termos contemporâneos, os desafios de então parecem bem menores, ainda que à época ocupassem corações e mentes de forças progressistas. A incipiente globalização, em paralelo aos preâmbulos de uma nova era tecnológica, já insinuava a necessidade de o Estado articular uma série de ações que minimizassem os custos sociais de um mercado de trabalho para o qual vislumbrávamos um futuro em constante mutação.

Com a criação do FAT, o Brasil tornou-se um dos poucos países do mundo a contar com uma fonte de financiamento permanente para ações que, direta e indiretamente, financiariam políticas para as quais os trabalhadores seriam o eixo das variáveis do mercado laboral. Políticas de emprego passivas (seguro-desemprego) ou ativas (intermediação, formação e reciclagem) deixaram de ser uma intenção sem possibilidades de implementação por falta de recursos e tornaram-se realidade.

Como não podia deixar de ser, o marco legal formatado pelo FAT e as políticas públicas decorrentes geraram um amplo debate e pulularam iniciativas de avaliação – com maior ou menor grau de robustez técnica. Os impactos distributivos dos programas, os desdobramentos em outras áreas macroeconômicas (política monetária), a eficácia/eficiência das iniciativas nas áreas de intermediação/formação, etc. foram dimensões vasculhadas no âmbito da academia, de instituições de controle estatais e da opinião pública.

Os balanços foram diversos, mas, não obstante os vaivéns da política nacional, as radicais mudanças ideológicas dos diferentes governos nestes mais de 30 anos não afetaram o FAT e, tampouco, as políticas que giram em torno da sua implementação. Perdurar num contexto com tantas alterações nos faz pensar que, com aqueles visionários, geramos uma política de Estado, patrimônio de todos os brasileiros, sem coloração partidária ou posições ideológicas.

Observando as greves do setor automotriz hoje nos EUA, vemos que as reivindicações dos assalariados estão permeadas por pautas clássicas, como o aumento salarial; outras mais modernas, como a redução da jornada de trabalho; e algumas mais difusas, que manifestam justificado temor diante de um mundo sem parâmetros conhecidos. Esse leque de tópicos pautará, no futuro, as negociações e os conflitos entre capital e trabalho. Seria utópico – com enormes custos sociais e econômicos – deixar que o mercado, mediante as mudanças de preços e salários relativos, autorregule a transição para uma economia menos pautada pelos combustíveis fósseis e mais intensiva em tecnologias.

Realocações entre setores, profissões e áreas geográficas demandarão intervenção pública para azeitar o ajuste no mercado de trabalho, a menos que a sociedade esteja disposta a arcar com altos custos sociais que, sabemos, alimentam o populismo.

O FAT, sua institucionalidade, legislação e políticas que o complementam cobram uma inusitada contemporaneidade. O Brasil conta, em seu arcabouço legal, com instrumento histórico nesse quesito capaz de contribuir com o financiamento de realocações de trabalho e capital. A intermediação profissional, por exemplo, adquire extraordinária relevância para assinalar setores/profissões/espaços geográficos mais dinâmicos. A formação possibilita aos assalariados a inevitável internalização de novas técnicas, formas de produzir e organização da firma.

Como toda política e marco institucional, o FAT requer um aggiornamento. Lembremos, foi pensado há mais de 30 anos, em outro contexto histórico – outra circunstância econômica, política e social –, objeto de muitas avaliações, evidenciando fragilidades e espaços para sua melhoria. As suscetibilidades sobre os impactos distributivos hoje são muito maiores do que no passado. Os desafios colocados pelo setor informal – mais de 40% da nossa força de trabalho nesse segmento – devem ser considerados. Massivos e generalizados programas de formação, sem vislumbrar possibilidades concretas de emprego, podem levar à perda de eficiência e eficácia dos recursos alocados. A experiência do Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador (Planfor) dos anos 90, alguns irão lembrar-se, merece ser levada em conta.

Mas não devemos “jogar fora o bebê com a água do banho”. Os países que avançam econômica e socialmente, na maioria das vezes, combinam elementos de continuidade e mudança institucional. Imobilidades ou rupturas representam riscos num mundo em acelerada transformação. Nem conservadorismo nem voluntarismo. Aproveitemos o que um punhado de homens públicos semeou e que hoje, como as pertinentes mudanças, pode ser instrumento adequado para dar a resposta de que o Brasil precisa diante dos atuais desafios ecológicos, econômicos, sociais e da tão temida e presente Inteligência Artificial.

*Economista

 

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