segunda-feira, 9 de outubro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais /Opiniões

Ataque terrorista afasta ainda mais chance de paz

O Globo

Invasão de Israel pelo Hamas expõe fracassos do governo Netanyahu na segurança e no campo diplomático

Num ataque terrorista sem precedentes, o grupo extremista palestino Hamas, que controla a Faixa de Gaza desde 2007, invadiu por terra, água e ar o território israelense, lançou mais de 2 mil foguetes e deixou um rastro de destruição em várias cidades. Os alvos foram civis, crianças, mulheres, idosos, homens, o que encontravam pela frente: pelo menos 700 mortos friamente e dezenas feitos reféns. Uma festa com 3 mil jovens foi atacada. Em reação, o governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu declarou guerra, convocou reservistas e retomou bombardeios a Gaza, provocando mais de 400 mortes do lado palestino, a maioria civis, uma lástima.

Não se discutem a justiça da causa palestina em busca da soberania nem os excessos israelenses com a política de assentamentos ilegais e sufocamento da população dos territórios ocupados. Nada disso está em questão. Mas o terrorismo deve ser sempre rechaçado.

Com o ataque, o Hamas mira objetivos estratégicos em dois planos. Externamente, os ataques terroristas favorecem o interesse do Irã, financiador do grupo, ao pôr em xeque a aproximação entre os israelenses e os países árabes que também lhe davam sustentação. Iniciada com os Acordos de Abraão no governo Donald Trump, a iniciativa diplomática estava prestes a concluir, sob Joe Biden, um acordo histórico de Israel com a Arábia Saudita. O ataque tirou do horizonte próximo a chance de paz.

No plano interno, depois de o Hamas consolidar seu governo em Gaza — onde cuida de serviços públicos como educação, coleta do lixo ou segurança —, a meta é aproveitar o momento de divisão na sociedade israelense para se projetar como principal liderança dos palestinos, em desafio à Autoridade Palestina, comandada da Cisjordânia por um Mahmoud Abbas desacreditado pela corrupção em seu governo.

Desde que saiu de Gaza em 2005, Israel mantém — com apoio do Egito — o território isolado. Tem respondido aos ataques periódicos do Hamas de modo a mantê-lo enfraquecido, mas sem desarticulá-lo, pois estrategicamente interessa a Israel a divisão entre os palestinos. Desta vez, porém, houve uma falha inexplicável no serviço de inteligência israelense que costuma prever tais ataques. Foi a maior falha desde a invasão-surpresa do país na Guerra do Yom Kippur, há exatos 50 anos.

Formalmente acusado em três casos de corrupção, Netanyahu comanda um governo com apoio da extrema direita que, ao tentar promover uma reforma descabida no Judiciário, despertou os maiores protestos de rua da história israelense. Segurança interna sempre foi a bandeira em torno da qual tentou unir seu eleitorado. Ao promover a reocupação da Cisjordânia por meio de assentamentos e ao fortalecer as vozes mais radicais em Israel, ele enterrou as negociações com os palestinos. Agora, tenta articular um governo de união nacional em torno do inimigo externo. Mas os ataques do Hamas deixam evidente seu fracasso, tanto na segurança quanto na diplomacia da paz.

Há pouca dúvida de que, militarmente, o Hamas — cujo objetivo declarado é destruir o Estado judeu — tem chances ínfimas contra as Forças de Defesa de Israel. A dúvida é como os israelenses agirão com tantos reféns em poder do inimigo. Se houver tentativa de reocupar Gaza, o conflito se estenderá de modo imprevisível. A solução razoável — dois estados, um israelense e um palestino, convivendo em paz lado a lado — ficou ainda mais distante.

Carências de infraestrutura dificultam o aprendizado no ensino público

O Globo

Outrora artigo de luxo, sistema de ar condicionado se tornou necessidade que faz falta a 70% das escolas

Há anos trava-se um longo, necessário e produtivo debate sobre a baixa qualidade do ensino público. É natural que temas como métodos pedagógicos, programas didáticos ou formação de professores dominem a discussão. Mas não tem sido dada a devida importância à situação física das 178.300 escolas públicas catalogadas pelo Censo Escolar de 2022.

Se a escola não tiver estrutura mínima para os alunos se preocuparem apenas em aprender, o melhor dos métodos pedagógicos fracassará. É preocupante, por isso, a constatação de que 70% das escolas não são climatizadas. O estresse térmico, atingido quando o calor ultrapassa a capacidade humana de suportá-lo por pelo menos 25 dias no ano, já ocorre em regiões em que vivem 38 milhões de brasileiros. A tendência é o quadro se agravar. Ar-condicionado, outrora um artigo de luxo, se tornou um bem de primeira necessidade para a saúde pública em tempos de aquecimento do planeta.

Das dez maiores cidades que já vivem em estresse térmico — Belém, Goiânia, São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, Salvador, Fortaleza, Recife, Manaus e Rio —, apenas nas três últimas mais da metade das salas de aula da rede pública dispõe de sistemas de ar condicionado. As duas maiores redes estaduais, São Paulo e Minas, têm índices de climatização de 10% e 8%, respectivamente (no estado do Rio, 43%).

Apenas 225 cidades contam com ar- condicionado em pelo menos 95% das escolas, e 764 não têm nenhum aparelho. A maior delas é Diadema, na Região Metropolitana de São Paulo, com quase 1.500 salas de aula nas redes municipal e estadual. A reportagem do GLOBO encontrou situações insólitas em escolas brasileiras. Numa, um estudante leva o próprio ventilador para a aula. Noutra, os professores decidiram fazer um “recreio molhado”, com autorização dos pais, para dar banho de mangueira nos alunos.

As escolas federais de ensino básico são consideradas as melhores em infraestrutura escolar, segundo estudo da Unesco. Mas elas não chegam a 1% da rede pública. A pesquisa constatou evolução nas 131.604 escolas avaliadas entre 2013 e 2017. Mas pouco mais da metade tinha instalações satisfatórias, com laboratório de informática, de ciências, banda larga, biblioteca, impressora multifuncional, quadra coberta, iluminação externa regular, salas arejadas, banheiro em bom estado com chuveiro, parque infantil e refeitório, entre outros itens.

Apenas 20% das escolas foram bem avaliadas, por contar também com pelo menos 20 computadores para alunos, auditório, estrutura adequada para atender alunos com deficiência e material em braille. Na outra ponta da pesquisa, 3,3% — de municípios pequenos em regiões pobres — não contavam com banheiro, conexão à rede elétrica (usavam gerador) ou de esgoto. Em 14,1% dos estabelecimentos, a água vem de poço artesiano.

Não basta manter a tendência de melhorias nas escolas públicas. É necessário acelerá-la, sem esquecer os efeitos a cada dia mais intensos das mudanças climáticas.

Planos de segurança precisam sair do papel e ter continuidade

Valor Econômico

Tráfico e milícias são um risco sério não só para a segurança, mas também para o Estado democrático

O assassinato de três médicos que participavam de congresso no Rio ilustra atos que se tornaram o cotidiano nas cidades do país: a facilidade com que pistoleiros, milicianos e membros de gangues do tráfico de drogas agem livremente para exterminar adversários, supostos ou reais. A escalada desses grupos de assassinos é nacional, e o trágico ataque aos médicos é mais um pedaço de uma história de conflitos sangrentos. Em setembro, mais de 60 pessoas morreram, seja por ação violenta da polícia ou de facções rivais na disputa por territórios cativos para venda de drogas. Esses grupos levaram sua guerra para a Amazônia, território sem lei próximo aos maiores fornecedores mundiais de cocaína, da qual o Brasil tornou-se o principal ponto de escoamento e um dos principais em consumo. O sistema de segurança pública nacional tem sido incapaz de deter essa expansão.

A guerra aberta de facções na Bahia e o caos crônico que elas provocam no Rio levaram o governo federal a acrescentar outra sigla às várias que designam a política da área da segurança, com o lançamento do Enfoc, Programa Nacional de Enfrentamento às Organizações Criminosas. Ele destinará R$ 900 milhões, o que parece pouco, para ações que há tempos constam do diagnóstico do combate aos traficantes no país. A saber: a integração de estrutura e de informação entre todos os órgãos de segurança, o aumento da eficiência de órgãos policiais, fortalecimento da investigação criminal e da atividade de inteligência e outras mais, em 5 eixos, com prazo para apresentação de prazos e responsabilidades em 60 dias.

É quase um consenso nacional que o enfrentamento policial direto nas ruas e morros com bandidos e traficantes, ainda que devam integrar ações pontuais de segurança, não está dando certo, nem substitui um planejamento estratégico, com o auxílio da ampla tecnologia disponível hoje, para enfrentar de forma inteligente o narcotráfico e suas ramificações, dentro dos limites legais. É importante que o Enfoc reúna a melhor experiência acumulada até agora, mas, ainda mais importante, é que saia do papel. De planos natimortos para a segurança o país está cheio - e quem mais sofre são as comunidades mais pobres, dominadas pelas facções.

A situação é pior hoje do que ontem. As duas facções-mães do narcotráfico se tornaram rivais, adquiriram dimensão nacional e tornaram a Amazônia e o Norte do país novas fronteiras de disputa, com seu cortejo de assassinatos. Diversificando negócios, associaram-se a garimpeiros ilegais e madeireiros clandestinos para destruir o ambiente, ao mesmo tempo em que ocuparam as rotas próximas das fontes de fornecimento (Colômbia, Bolívia, Peru). O Amapá é hoje o Estado com maior número de mortes violentas intencionais (50 por 100 mil habitantes). A Bahia, há 16 anos governada pelo PT, é o segundo, com 47,1. A taxa de homicídios no Amazonas é 38% mais alta do que a da média do país. No Sul e Sudeste, as taxas, porém, diminuíram.

Na Amazônia Legal, o governo destinará R$ 2 bilhões do Programa Amazônia Segurança e Soberania (Amas), para ações que incluem a instalação de bases policiais terrestres e fluviais. Para o Rio, o governo voltou ao receituário paliativo já utilizado várias vezes, o uso da Força de Segurança Nacional, cujos resultados positivos se esgotam tão logo ela deixa de atuar. O Rio teve a experiência importante das UPPs, abandonada quando o Estado desistiu de dar continuidade à sua iniciativa de se fazer presente com infraestrutura social e policiamento em áreas antes abandonadas ao tráfico e às milícias - que reocuparam o espaço. Também parece promissor o Pronasci, lançado em março, que concentrará esforços e inteligência nos 163 municípios mais violentos do país, responsáveis por 50% das mortes violentas, desde, claro, que seja executado com seriedade e perseverança.

O governo Bolsonaro nada fez para tornar a segurança pública eficaz, apostando no enfrentamento policial e na liberação do porte de armas - o registro de armamento passou de 197 mil quando assumiu para 783,3 mil quando deixou o poder, quase meio milhão a mais e não exatamente nas mãos de “cidadãos de bem”. No período, os gastos com segurança avançaram 1,66%. As despesas com segurança são arcadas pelos Estados, e a União completa o bolo com 11,5% (2022). O dispêndio total no ano passado foi de 1,26% do PIB, ou R$ 124 bilhões.

O Estado tem como enfrentar por meios legais o tráfico e as milícias. Nem Bolsonaro, nem o PT, como demonstra o exemplo baiano, tiveram políticas bem planejadas e eficientes. Um governo democrático precisa demonstrar que o lema “bandido bom é bandido morto”, dos populistas de direita, que ressurgirão nas eleições, apenas manterá o Brasil na difícil situação em que está, ou pior. Até porque tráfico e milícias já se infiltraram no aparelho de Estado, começando pelas polícias e estendendo-se à representação política, onde hoje ameaçam, nas eleições, candidatos considerados rivais nas regiões que dominam. Eles são um risco sério não só para a segurança, mas também para o Estado democrático.

Supremo prudente

Folha de S. Paulo

É correta cautela sobre aborto, a ser tratado preferencialmente pelo Congresso

Esta Folha defende a descriminalização do aborto nas primeiras semanas de gravidez, por decisão da mulher. Trata-se de tema que precisa ser examinado, sobretudo, pela ótica da saúde pública.

No Brasil, como se sabe, a interrupção da gravidez só é permitida nos casos de estupro, risco de vida para a gestante e feto anencefálico. Fora dessas hipóteses, o ato gera punições previstas no Código Penal para a gestante e para terceiros que dele participem.

A despeito dos ditames da lei, milhares de abortamentos ocorrem todos os anos no país, em residências ou clínicas clandestinas, não raro sem os devidos equipamentos, segurança e orientação. As mulheres de baixa renda são as mais sujeitas a se ferirem ou mesmo a morrerem nos procedimentos.

Não à toa, o caminho da descriminalização já foi trilhado pela maior parte dos países desenvolvidos e parcela expressiva dos emergentes, aí incluídos vizinhos como a Argentina e o Uruguai.

Tudo isso considerado, porém, é compreensível —e mesmo elogiável— a decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luís Roberto Barroso, de não marcar a retomada de julgamento sobre o assunto na corte.

O STF examina desde 2017 ação que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez. No mês passado, a então ministra Rosa Weber, que se aposentaria compulsoriamente pouco depois, votou favoravelmente à tese.

Barroso interrompeu o julgamento com um pedido de vista e, conforme declarou a este jornal, entende que o tema precisa de mais debate na sociedade. É prudente.

Há argumentos jurídicos para que o Supremo delibere sobre o aborto, em especial no que se refere ao direito da mulher à intimidade e à liberdade. Essa não é questão incontroversa, porém.

Uma intervenção da corte em matéria tão explosiva na arena política poderia facilmente ser interpretada como mais um episódio perigoso de ativismo judicial a invadir o terreno do Legislativo —ainda mais quando se julga até o período de gestação no qual a interrupção seria autorizada.

Não apenas é saudável a autocontenção do Judiciário como se mostra mais sólida a via congressual. Exemplo didático é o dos Estados Unidos, onde a Suprema Corte revogou no ano passado um entendimento firmado em 1973 pela legalidade do aborto.

Esta deveria ser uma oportunidade para que o Brasil comece a superar um enorme atraso nesse debate. Por aqui, mesmo lideranças e partidos que se dizem progressistas e abraçam as causas feministas e dos direitos humanos têm medo de perder votos defendendo a descriminalização.

Corrida ao dólar

Folha de S. Paulo

Divisa dispara na Argentina, onde presidenciável promete renunciar ao peso

Agravou-se, nos últimos meses, a derrocada econômica argentina. A disparada do dólar e da inflação ganhou impulso extra após a ascensão do radical Javier Milei. O primeiro turno das eleições presidenciais ocorre em 22 de outubro, e o autodenominado anarcocapitalista lidera as pesquisas ao lado do governista Sergio Massa.

De fato, entre julho e agosto, a taxa mensal de inflação quase dobrou, de 6,3% para 12,4%. Nos 12 meses até agosto, a alta de preços atingiu 124%, a maior desde 1991. O banco central reage com atraso, tendo elevado a taxa de juros em pesos de 97% para 118% ao ano.

A razão de fundo para o descontrole é o financiamento dos gastos públicos por meio da emissão de moeda, crescente nos últimos anos.

Sem disposição para cortes profundos nas despesas, não há outra alternativa de financiamento do governo, já que a Argentina não dispõe de mercado local de dívida pública e já exauriu o acesso a novos financiamentos internacionais.

O esgotamento das reservas cambiais, aliás, foi o rastilho que acendeu a chama da desvalorização acelerada do peso. Em tom farsesco, o governo peronista se limita a instituir mais controles inócuos e a colocar a polícia nas ruas para combater o mercado paralelo do dólar.

A sensação de escalada da crise é real, portanto, na medida em que se aproximam as eleições. É certo, também, que a possibilidade de vitória de Milei e seus extremismos são outro fator de insegurança.

Sua plataforma é de ruptura geral com as instituições fiscal e monetária do país. Propostas pouco realistas no panorama político, como corte drástico de gastos, fim de subsídios e privatização em massa têm encontrado respaldo em parcela crescente do eleitorado.

Entre as promessas, a mais assustadora é o puro e simples fechamento do banco central, visto como inútil pelo candidato. Sem autoridade monetária, postula-se, haveria circulação de meios de pagamento concorrentes.

Na visão de Milei, os argentinos escolheriam a moeda de preferência, o dólar. O governo abriria mão de soberania em assuntos monetários e deixaria de contar com financiamento além da coleta de impostos, e estaria impossibilitado de manter déficit permanente.

Nenhum país de alguma dimensão optou por tal regresso a um primitivismo fiscal e monetário. O que se pode antever, sob qualquer resultado eleitoral, é mais instabilidade econômica e social.

Não haverá paz com Hamas existindo

O Estado de S. Paulo

Assalto terrorista a Israel busca sabotar diálogo entre árabes e israelenses, que não interessa ao Irã, patrocinador da barbárie; hora é de intensificar a diplomacia para isolar os radicais

A guerra voltou ao Oriente Médio. O assalto terrorista a Israel coordenado pelo Hamas, a organização islâmica que controla o enclave costeiro palestino de Gaza, foi de uma brutalidade sem precedentes. Ao menos 600 israelenses morreram e mais de 2.000 foram feridos por mísseis e tiroteios indiscriminados, e dezenas, talvez centenas, entre eles mulheres e crianças, foram sequestrados. A resposta foi massiva. Mais de 300 palestinos foram mortos por ataques aéreos de Israel, que já recobrou os territórios invadidos e prepara uma incursão em Gaza.

É dificilmente coincidência que o ataque tenha sido lançado no dia seguinte aos 50 anos da Guerra do Yom Kippur, quando Egito e Síria lançaram uma ofensiva surpresa. À época, como agora, as forças árabes atacaram covardemente em um feriado religioso e houve uma falha massiva da inteligência. Nunca como naquele outubro de 1973, Israel esteve tão perto de ser varrido do mapa. Não há esse risco agora. O Hamas não tem esse poder. Mas, se em 1973 os ataques atingiram áreas ocupadas por Israel, o atual aconteceu dentro de seu território e foi o mais sangrento desde a sua fundação, em 1948.

O objetivo foi disseminar o terror e sequestrar civis para usá-los como escudos humanos e forçar sua troca por terroristas presos. Além disso, o Hamas almeja descarrilar as negociações entre Israel e países árabes, como a Arábia Saudita, em vista de uma normalização diplomática que teria como efeito fortalecer a dissuasão da teocracia xiita do Irã.

Israel enfrentará escolhas duras. O premiê Benjamin Netanyahu prometeu “responder com fogo em uma magnitude que o inimigo não conheceu”. Retornar ao status quo de antes do assalto daria uma oportunidade ao Hamas de se rearmar e promover mais ataques. Mas uma invasão a Gaza pode custar muitas vidas e ameaçar, ante a comunidade internacional, a legitimidade dos esforços de defesa de Israel. E há o risco de que uma escalada leve a uma conflagração regional, se as milícias xiitas do Hezbollah no Líbano atacarem no norte. Assim como o Hamas, o Hezbollah é financiado e armado pelo Irã, mas tem um arsenal mais sofisticado, que poderia pressionar as defesas aéreas de Israel, o Domo de Ferro, ao ponto do colapso.

O conflito impõe escolhas difíceis também aos aliados de Israel. Se seguir o seu padrão, a Casa Branca garantirá alguns dias de retaliação massiva, e depois manobrará para que o governo israelense recue. Mas a covardia e a truculência do ataque do Hamas são sem precedentes, e Israel tem direito a uma ação sem precedentes para neutralizar o Hamas e eliminar riscos imediatos ao seu povo.

A lamentável consequência será um congelamento nas políticas para aliviar a situação de Gaza. A longo prazo, a comunidade internacional e as autoridades mais sensatas em Israel sabem que a solução virá quando os palestinos tiverem o seu Estado. Mas dois anos após Israel ceder o controle de Gaza à Autoridade Palestina, em 2005, o Hamas tomou o controle em um golpe sangrento, e intimida e mata quem se opõe a seu intento de aniquilar Israel. A curto prazo, nenhum governo israelense pode se permitir ceder mais controle de um território que pode se tornar uma plataforma de ataque do Hamas.

O assalto é ainda um lembrete ao mundo dos riscos da complacência com o Irã e também das ameaças às nações democráticas. A comunidade internacional não pode se furtar a esforços para desescalar o conflito e intermediar uma estabilização regional. Isso implica pressionar o Líbano a controlar o Hezbollah e intensificar as tratativas entre israelenses e árabes, sobretudo a Arábia Saudita.

Mas que ninguém se engane nem se perca em falsas simetrias. O mundo precisa estar atento a eventuais excessos de Israel, mas seu contra-ataque é um esforço legítimo de proteger seus cidadãos contra o assalto não provocado de uma milícia terrorista que oprime seu povo e quer varrer o Estado judeu do mapa. Os palestinos têm direito a um país, e a solução de dois Estados ainda é o caminho para uma paz duradoura. Mas, enquanto o Hamas existir, essa paz sempre estará ameaçada.

Boicote na segurança pública

O Estado de S. Paulo

Está em curso uma tentativa de retirar as câmeras dos uniformes da polícia paulista. Além de retrocesso civilizatório e republicano, é opção por uma polícia disfuncional e violenta

Existe no governo paulista um embate entre duas visões sobre a polícia, embate este que pode ter reflexos muito além dos limites territoriais do Estado de São Paulo. Desde 2014, vem sendo implementada a política de câmeras nos uniformes dos policiais. Os resultados são muito positivos e, em certo sentido, disruptivos. Quando a atuação policial é registrada por câmeras de vídeo, há um outro horizonte probatório. Entende-se a dinâmica da abordagem com enorme riqueza de detalhes. São colhidos mais elementos, como a presença de testemunhas que não haviam sido mencionadas num primeiro momento. De alguma forma, tem-se aquilo que sempre foi buscado e, por limitações tecnológicas, antes não era possível ter: o registro objetivo da atividade policial.

No entanto, o novo patamar de conhecimento sobre a atividade policial vem causando não pequeno desconforto em quem se acostumou aos moldes antigos, sem transparência. Era um cenário – não há como negar – confortável para os maus policiais. Não havia contraprova. Era apenas a voz do agente estatal a respeito dos fatos, contra a versão dos “bandidos” e “criminosos”.

Esse embate ficou muito nítido na Operação Escudo, realizada no Guarujá, que em 40 dias matou 28 pessoas. Foi a operação policial mais letal no Estado de São Paulo desde o massacre do Carandiru, em 1992. Há suspeitas de abusos e de execução sumária por parte da polícia. Do outro lado, o governo estadual paulista afirma que todas as mortes decorreram da reação de criminosos à incursão da polícia. O fato é que ninguém sabe ao certo o que ocorreu, por uma simples razão. A maioria das mortes ocorreu quando os policiais não estavam usando as câmeras corporais nas fardas – ou mantinham os equipamentos desligados.

Para muitos, o que ocorreu no litoral paulista evidencia a necessidade de manter e reforçar a política de bodycams nos policiais. Se as cenas tivessem sido registradas, os agentes que atuaram corretamente estariam protegidos das atuais suspeitas sobre sua conduta e aqueles que eventualmente se excederam, ou agiram além do que a lei e o treinamento policial orientam, seriam devidamente responsabilizados.

No entanto, paradoxalmente, há quem veja na experiência da Operação Escudo a oportunidade para a reversão da política de câmeras nos uniformes policiais que vem sendo implementada há quase uma década. A operação seria a grande prova do “risco” que os policiais correm com as câmeras, como se o que pudesse ter sido registrado fosse dificultar o seu trabalho.

Não há como tapar o sol com a peneira. A resistência às câmeras é uma declaração de que a polícia, para fazer o seu trabalho, precisa dispor de certo nível de invisibilidade. Nem tudo o que ela faz deveria vir à luz do dia – isto é, nem tudo deveria ser acessível à população –, pois, nesse caso, os agentes já não teriam a liberdade de fazer “o que precisa ser feito”. É a defesa da polícia à margem da lei.

Sob nenhum ponto de vista é justificável reduzir intencionalmente a transparência da atividade estatal. A câmera no uniforme dos agentes ajuda a garantir os direitos dos cidadãos durante as abordagens e ações policiais. Também contribui para a produção de provas judiciais e para a formação e treinamento dos agentes públicos. Além disso, a transparência beneficia o bom trabalho dos policiais. Com o registro em vídeo dos fatos, as ações policiais em defesa da lei podem ser facilmente justificadas. Em vários julgados, o Poder Judiciário tem incentivado o uso da tecnologia como meio de dissipar dúvidas e assegurar direitos.

A história das câmeras nos uniformes dos policiais paulistas mostra que mesmo um indiscutível avanço gera resistência – uma resistência motivada não por efeitos colaterais indesejados, mas precisamente pelos resultados positivos. Como as bodycams estão conseguindo expor como os policiais atuam, há quem queira desativá-las.

Não basta desenvolver uma boa política pública. É preciso resistir perseverantemente ao boicote de quem estava muito satisfeito com o ancien régime.

O esperneio do Rio

O Estado de S. Paulo

Ceder à ameaça do RJ de suspender pagamento de dívida com a União é ultraje aos Estados adimplentes

O governador do Rio de Janeiro, Claudio Castro, informou ao Ministério da Fazenda não ter como pagar a parcela de R$ 8,6 bilhões da dívida do Estado com a União em 2024. Alegou queda de receitas, sobretudo do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Castro não se ateve aos argumentos de ordem tributária. Empurrou ao governo federal as possíveis consequências de não ouvir seus apelos por flexibilização nas regras acordadas. E enumerou as tais consequências: “suspensão de salários” de servidores, “fome” e “quebradeira” no Estado.

Não é a primeira vez que o Rio de Janeiro, notório por sua irresponsável gestão fiscal e omisso em relação a reformas, recorre ao governo federal para não honrar acordos da dívida. O passivo do Estado atualmente alcança R$ 186 bilhões, incluindo os avais da União a seus financiamentos. A novidade está na ameaça de Castro de jogar a população fluminense contra Brasília e lavar suas mãos a propósito de qualquer responsabilidade sobre a crise fiscal.

É certo que o Rio de Janeiro sofre perda de arrecadação do ICMS desde a aprovação da Lei Complementar 194/2022, sob os auspícios do então candidato à reeleição Jair Bolsonaro, do mesmo PL de Castro. Ainda em vigor, a legislação reduz as alíquotas do ICMS sobre combustíveis, energia elétrica e telecomunicações. Houve perda de R$ 2,7 bilhões nessas receitas de janeiro a setembro deste ano. No total, a arrecadação estadual recuou em 5,2% em relação a igual período do ano passado.

O cenário não é muito diferente, quando se trata do ICMS, para os demais Estados. Sobretudo, aos que cortaram gastos nos últimos anos e conferiram maior eficiência a seus aparatos tributários para aliviar o peso da dívida com a União e apresentar à sociedade orçamentos factíveis. Há que considerar, entretanto, o fato de o próprio governo federal ter aberto a brecha para a rebeldia de Castro, a ser oportunamente explorada pelo Rio Grande do Sul e Goiás.

O Ministério da Fazenda esboçou em julho passado uma reformulação do Regime de Recuperação Fiscal (RRF), programa de alívio no pagamento de dívidas com a contrapartida de esforço para o reequilíbrio das contas públicas, no qual o trio de Estados está pendurado desde o ano passado. O rascunho previa mais facilidades aos endividados, em claro desrespeito às unidades federativas empenhadas no contínuo ajuste de suas contas, e atenderia à necessária reconstrução do pacto federativo, demolido pela gestão de Bolsonaro. O governo Lula, porém, sustou o envio do projeto de lei ao considerar a extrapolação de benesses pelo Congresso Nacional. Castro aproveita-se dessa sinalização.

Não há dúvidas sobre a mais nova crise fiscal do Rio Janeiro, acompanhada por outra, a da segurança pública no Complexo da Maré. Esse contexto certamente será avaliado pelo Ministério da Fazenda. Mas ceder, quando a própria União se contorce para atingir a meta de déficit zero em 2024, não reforçará o pacto federativo. Ao contrário, premiará unidades federativas negligentes no compromisso de ajuste de suas contas públicas.

Um desafio necessário

Correio Braziliense

A regulamentação do trabalho por aplicativos é uma discussão necessária que deve ser abordada com seriedade e responsabilidade

As relações trabalhistas que imperam na lógica dos aplicativos de entrega e de transporte, como a Uber, são frágeis e precárias. Neste novo modelo promovido por essas empresas de tecnologia, o profissional presta o trabalho conforme a demanda surge no celular. Os motoristas e entregadores enfrentam longas jornadas de trabalho, que chegam a 17 horas por dia, muitas vezes em situações de trânsito estressantes. Arcam com todos os riscos inerentes à atividade e não possuem nenhuma garantia ou direito trabalhista, além de receber pouquíssimo por cada serviço.

Com as sucessivas crises econômicas que o país enfrentou, com destaque para a provocada pela pandemia, muita gente buscou nesses aplicativos uma forma de subsistência. Os números dão a exata dimensão dessa parcela de trabalhadores. Hoje, a Uber tem entre 500 mil e 700 mil motoristas cadastrados em todo o Brasil, segundo a Justiça do Trabalho — a empresa garante que são cerca de 1 milhão. Outros aplicativos, como iFood e 99, têm números tão impressionantes quanto. Para evitar formar qualquer vínculo trabalhista, as empresas vinham alegando que eram meras intermediárias na prestação de serviço. O resultado são inúmeras ações na Justiça questionando o desamparo dos trabalhadores, e paralisações promovidas por parte dos motoristas para chamar a atenção para a baixa remuneração.

A regulamentação dos aplicativos de entrega e transporte foi promessa de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, como forma de aproximação desse novo grupo de trabalhadores que se consideram empreendedores e se afastam da lógica tradicional da CLT, e vem sendo discutida há cerca de quatro meses em Brasília, em um grupo que envolve representantes do governo, das empresas, dos sindicatos e dos funcionários. O debate corria bem. Em setembro, os envolvidos chegaram a acordos sobre a remuneração dos prestadores de serviço, incluindo o pagamento pela chamada "hora logada", quando o motorista está ativo no aplicativo, mas não recebeu nenhum chamado, uma das principais reivindicações da categoria e um dos pontos mais sensíveis de toda discussão.

Por isso, não repercutiu bem na imprensa a fala do ministro do Trabalho, Luiz Marinho, durante uma audiência pública da Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados na última quarta-feira. Além de sugerir que os Correios criassem um aplicativo para concorrer com os demais, ele afirmou que, caso a Uber queira sair do Brasil após a regulamentação, o problema seria apenas da empresa. Na sexta-feira, ele se justificou, dizendo que "não falou para a Uber ir embora" e que a gigante do transporte não tem planos de deixar o país — considerado pela companhia como o seu principal mercado, à frente de Estados Unidos (EUA) e União Europeia.

A Uber e as demais empresas envolvidas não se pronunciaram após a fala do ministro, mas fica a torcida para que a situação não jogue por água abaixo o esforço do grupo de trabalho que discute a questão. Afinal de contas, a regulamentação do trabalho por aplicativos é um desafio necessário, que deve ser abordado com seriedade e responsabilidade. Para os trabalhadores, essa é a chance (talvez a única) de negociarem questões de dignidade, como controle de jornada, previdência e proteção social, além da segurança, uma vez que acidentes e lesões são riscos reais nesse setor. E para a sociedade, é uma oportunidade de criar um equilíbrio entre a inovação inegável que essas empresas trouxeram aos seus nichos de mercado e a proteção dos direitos trabalhistas, garantindo benefícios a todos os envolvidos. Que o diálogo siga prevalecendo.



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