segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Bruno Carazza* - Os trens da alegria de Randolfe e de Pacheco

Valor Econômico

Projetos pessoais de políticos criam benesses e armam pauta-bomba para o país

São tantas as notícias surreais que abalam o Brasil a cada semana, de crises institucionais entre os Poderes da República a execuções sumárias por engano, que outros absurdos acabam passando despercebidos da opinião pública.

Há algumas semanas, o Senado aprovou a PEC nº 07/2018. A iniciativa facilita ainda mais as condições de integração de servidores dos antigos territórios federais de Rondônia, Roraima e Amapá à folha de pagamentos do governo federal. Parece uma tecnicalidade, mas é bom preparar seu bolso para a fatura.

Trata-se de um processo que vem desde 1988, quando a Assembleia Nacional Constituinte acabou patrocinando um “trem da alegria” que converteu em servidores públicos federais, com direito a estabilidade e outras regalias, todos os contratados pela administração pública federal nos cinco anos anteriores, sem a necessidade de terem prestado concurso.

Uma década depois, a Emenda nº 19 tratou de acoplar um vagão ao trem da alegria constitucional. Segundo seu art. 31, policiais militares e servidores estaduais e municipais que estavam atuando nos ex-territórios do Amapá e de Roraima na época de sua transformação em Estados seriam convertidos em servidores federais. Daí veio a Emenda Constitucional nº 79, de 2014, que ampliou o comboio ao permitir a entrada também para quem tinha trabalhado nos cinco primeiros anos de vida dos dois novos Estados.

Já em 2017, numa insólita parceria entre os senadores rivais Randolfe Rodrigues e Romero Jucá, o Congresso aprovou a Emenda Constitucional nº 98. Essa nova norma deu passe livre para se tornar servidor público federal qualquer pessoa que tenha tido qualquer vínculo, efetivo ou temporário, em qualquer órgão público ou estatal federal, estadual ou municipal do Amapá (terra de Randolfe) ou de Roraima (domínio de Jucá) entre outubro de 1988 e 1993.

Numa outra prova de que o populismo fiscal une extremos, a PEC nº 07/2018 acabou de ser aprovada numa aliança capitaneada pelo lulista Randolfe Rodrigues (sem partido-AP) e pelo bolsonarista Marcos Rogério (PL-RO). Caso seja referendada pela Câmara, todos aqueles que tenham trabalhado como servidores, comissionados, celetistas ou terceirizados, em qualquer órgão federal, estadual ou municipal, e ainda em estatais ou bancos públicos, nos primeiros dez anos de existência dos Estados do Amapá, Roraima e Rondônia poderão ser convertidos em servidores públicos federal.

Para ter direito a um lugar no novo trem da alegria, basta ter trabalhado pelo menos 90 dias numa repartição pública e apresentar qualquer tipo de contrato, recibo, comprovante de depósito ou declaração - abrindo as portas para todo tipo de fraude. Mesmo quem já estiver aposentado, ou receber pensão de um parente que faria jus à conversão, será equiparado a servidor público federal, sem concurso público.

A PEC nº 07/2018 é tão generosa que tem o potencial de pendurar na folha de pessoal da União boa parte dos habitantes dos três Estados. A conta será paga por todos os brasileiros, mas Randolfe, Marcos Rogério, Alcolumbre e os demais senadores do Amapá, Roraima e Rondônia só querem saber dos votos que receberão após tanta generosidade.

Outro absurdo em vias de ser aprovado vem do próprio presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). O político mineiro engajou-se nas últimas semanas numa campanha para ressuscitar uma PEC antiga, já arquivada, que concede um adicional mensal de 5% aos salários de magistrados, membros do Ministério Público e defensores públicos para cada cinco anos de carreira (o famoso “quinquênio”).

Pacheco tem dito à imprensa que é preciso valorizar o trabalho de juízes, promotores, procuradores e defensores públicos. De acordo com dados publicados pelo Conselho Nacional de Justiça, 94,8% dos juízes, desembargadores e ministros de todos os tribunais estaduais, federais, do trabalho e militares do país tiveram um rendimento médio mensal líquido (levando em consideração abatimentos, contribuição previdenciária e imposto de renda) superior aos ganhos dos ministros do Supremo. Se a PEC nº 63/2013 for ressuscitada, não haverá nenhum juiz no Brasil ganhando menos do que um membro do STF.

Em 2016, na esteira das críticas ao auxílio-moradia dos magistrados e membros do MP, uma comissão do Senado propôs um projeto para limitar os penduricalhos e fazer valer o teto salarial no serviço público. Já aprovado na Câmara, o PL nº 2721/2021 só depende da boa vontade de Pacheco para ser votado. Mas mesmo se for aprovado, será de pouca valia: o lobby das principais carreiras da elite do funcionalismo plantou nada menos do que 32 exceções ao teto. Se aprovada, a PEC do quinquênio será a 33ª exclusão.

Muitos dizem que Pacheco apoia a PEC do quinquênio para, assim, agradar os juízes e receber seu apoio para uma futura indicação ao Supremo. É bom lembrar também que Pacheco é um advogado criminalista de sucesso, que iniciou sua carreira política bancando do próprio bolso um gasto de R$ 2.887.872,17 para se eleger deputado federal em 2014. Dois anos depois, na tentativa frustrada de ser prefeito de Belo Horizonte, foram mais R$ 4,6 milhões de recursos próprios torrados na campanha. E em 2018, quando assumiu a cadeira de senador, aplicou mais R$ 777,2 mil.

Se o plano do STF não der certo e Pacheco um dia precisar voltar à advocacia privada, o quinquênio de juízes, promotores e defensores públicos que todos nós pagaremos certamente lhe abrirá outras portas no Judiciário quando necessário.

*Bruno Carazza é professor associado da Fundação Dom Cabral e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.

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