O Poder Legislativo – com destaque para a
cúpula da Câmara dos Deputados e seus aliados políticos – pratica um fisiologismo
paroquial que, sendo precificado e naturalizado, comete abusos corporativos desafiadores
da paciência dos eleitores. O Poder Executivo reorganiza-se,
institucionalmente, depois de um desmonte, mas o seu timoneiro é conivente com
o fisiologismo, além de ser dado a flertes populistas. E o Poder Judiciário,
esse parece ter umbigo de mel. Ocupa, agora, a sua mais alta posição, alguém
que se julga legítimo representante da sociedade para liderar um pacto
pacificador, exatamente porque não é político e garante não ter aspirações
políticas. Em geral, quem não critica a ideia, duvida.
A juízos negativos de senso comum correspondem contrassensos positivos, fabricados com o mesmo imoderado descuido. O Legislativo, bunker do pragmatismo político, seria fiador natural da governabilidade democrática do país; o presidente Lula seria o estadista do social, encarnação da causa da igualdade, cuja missão é usar sua energia descomunal para fazer contraponto à mesquinha política “das elites deste país”; e o Judiciário seria o zagueiro do estado de direito, ao mesmo tempo o artilheiro que castiga fascistas e emancipa minorias oprimidas.
As percepções públicas do predador, do
mistificador e do guardião crescem na penumbra, desvalorizando a política, cada
qual a seu modo e, de todos os modos, dificultando a revitalização de uma
república democrática que mal acabou de escapar da ruína. Para sustentar a
fabulosa ideia de que está em curso a reconstrução ressurrecional de um país
sob escombros – discurso imoderado, mas bem mais grandioso e glorioso que o de
reerguimento razoável de um país que se manteve vivo nas perdas - acena-se, em
contraponto a cada um dos três espectros, com virtudes superiores que os justifiquem
ou atenuem. O realismo (um imperativo posto ao político que quer pacificar)
seria também o álibi do predador que permite a governos governarem; a representatividade
popular (requisito básico do governante democrata que quer realizar um
programa) purificaria também o mistificador que a tenha como marca identitária
pessoal, condição super-humana pela qual caminha sempre, sem limites, pairando
sobre os fatos; e o saber jurídico (mérito imprescindível a todo magistrado)
seria uma onisciência que torna o guardião intocável na missão de fazer o que a
política não pode, ou não quer.
A delícia dessas fórmulas fabulosas que
chamam predador de pragmático, mistificador de líder e guardião de herói é
blindar, por algum tempo, que pode inclusive ser longo, a reputação e, principalmente,
as ações dos seus beneficiários. Sua dor é não poder revogar os espectros. Eles
sobrevivem no senso comum, como registros subjetivos de realidades que nem a
comunicação política formal, nem o ativismo das redes pode cancelar.
O orçamento público segue sendo ficção, mas
não as demandas públicas insatisfeitas; as urnas consagram e conferem poder,
mas vitórias não fazem vencedores passarem a agir como mandatários de todos; o
estado de direito está de pé, mas não se desfaz a percepção de que a Justiça
tem lado, porque, no cotidiano, costuma parecer que tem, tal a distância
persistente entre pregações e práticas de seus agentes. Além de tudo, todo
mundo sabe que ninguém tem poderes divinos. A capacidade de duvidar é uma
saudável virtude comum aos humanos.
Senso comum e contrassensos fabulosos tentam
simplificar a política, que não é simples assim. Para compreendê-la melhor que
o senso comum é preciso antes de tudo não desqualificar como insensato o que
nele é apenas incompleto. Os espectros do predador, do mistificador e do
guardião, que assombram as pessoas e lhes inculcam aversão ou receio da
política, são riscos, não delírios e, por isso, não podem ser afastados da cena
pela teatralização de virtudes. Mas podem não roubar a cena, se para
contracenar – e conviver - com eles for trazido ao palco, em vez de virtudes
fabulosas, o outro lado da lua. O lado, desprezado em tempos extremos, das possibilidades
abertas pela atitude política que faz conservação e mudança dependerem de
moderação e tolerância. Um script cujo sucesso só se pode conferir na prática.
A metáfora do teatro, além de habitual, é
muito persuasiva como representação da política. Mas não só da má política que,
com alguma razão, o senso comum despreza, pela pequenez, ou teme, pelo poder.
Procurando, sem recurso a fábulas, é possível
achar, no âmbito dos três poderes, outro tipo de contraponto ao que nos
assombra. Isso aparece quando se valoriza juízos e atitudes políticas em ato, não
raciocínios fatalistas e/ou pregações moralistas. Essências, viciosas ou
virtuosas, nessa praia, são um conjunto vazio. Querer faxinar ou sacralizar a
política é perda de tempo que pode levar a perda de futuro. O convite aqui é
baixar a bola e procurar alimentos balanceados para expectativas modestas.
No âmbito do Poder Legislativo é possível
notar um claro contraponto entre as condutas dos presidentes da Câmara e do
Senado. Tornou-se lugar comum apontar a distinção “de estilo”, mas é raro inferir-se,
a partir dela, considerações propriamente políticas. O acento sempre vai no que
haveria de comum, isto é, o corporativismo parlamentar. Embora ele seja fato,
há fartos exemplos de que não impede, no caso do Senado, a liderança da Casa
assentar-se em bancadas partidárias, enquanto na Câmara o comando pessoal vive
da sua fragmentação. A influência de Rodrigo Pacheco cresce com a dos partidos,
a de Lira pela expropriação política dos mesmos. A repercussão de ambas as
situações nas relações concretas entre Executivo e Legislativo é visível a olho
nu, mas não parece sê-lo a olhos analíticos que continuam centrados nos
movimentos do Chefe do Executivo como se a conduta das cúpulas do Legislativo
fosse sua variável dependente.
Com essa desatenção para com o contraponto
político cotidianamente exposto no Congresso, perde-se um critério comparativo
para entender por que as relações do Chefe do Executivo com a cúpula do Senado
são institucionalmente regradas e civilizadas enquanto a pública guerra fria
com a Câmara enseja, nos bastidores, lances típicos de uma conversa entre dois
mandões. Perde-se também uma chave para compreender por que a oposição que saiu
das urnas era virtualmente mais relevante no Senado e, no entanto, tem
demonstrado menos poder de fogo parlamentar do que o karaokê da Câmara, sem que
tal tenha resultado de atitude oficialista, ou belicosa com a oposição, por
parte de Pacheco. É que o bordado político ali são coalizões parlamentares, não
ajuntamentos ad hoc. Se, com exagero, chamarmos isso de partidocracia, o termo
perderá sentido negativo para ser contraponto positivo ao personalismo. É
lógico inferir que não será sem consequência Pacheco e Lira fazerem ou não seus
sucessores. Se o primeiro for bem sucedido, o Senado seguirá atenuando a
percepção pública da predação. Já o êxito de Lira prorrogará a percepção de que
no e do Congresso nada se recebe sem dar.
A detecção de uma racionalidade política
moderada, alternativa aos espectros negativos da política, não obedece, a
rigor, a sinalizações ideológicas. Assim como no Congresso, onde a
centro-direita liberal predomina, essa disposição aparece no Poder Executivo,
onde vigora uma forte hegemonia da esquerda lulopetista. Por restrição de
espaço limitar-me-ei a mencionar, sem analisar, ministérios setoriais, embora importantes,
ocupados por petistas (caso de Camilo Santana, na Educação) ou por aliados
(Alckmin, na Indústria e Comércio e José Mucio, na Defesa) e mesmo um
ministério sistêmico, como o do Planejamento e Orçamento, onde está Simone
Tebet, uma aliada com maior expressão política. Vou me deter, contudo, no caso
relevante e emblemático de um ministro petista que atua no núcleo duro do
governo. Fernando Haddad é responsável pelo ministério que tem, de longe, a
maior visibilidade social e política, exercendo uma influência intrínseca à sua
relevância, tanto sobre agentes da economia e da sociedade como sobre atores
políticos, incluído o próprio governo. É influência recíproca, sempre em mão
dupla, aí não só pela posição estratégica objetiva do Ministério da Fazenda, como
pela disposição subjetiva, que o ministro demonstra, de operar através de uma
práxis (o termo aqui não é gratuito) de política democrática positiva,
oferecendo um contraponto tranquilizador ao espectro da mistificação.
Numa entrevista recente ao Canal Livre (Band
TV e Bandnews, em 17.09.23) Haddad reiterou, de modo organizado e sistemático,
demonstrações que tem dado com frequência de que é a mais expressiva representação
do lado racional e realista do atual governo. A lucidez estratégica, sem
dúvida, destaca esse realismo como fator moderador de fricções habituais
resultantes de posições disruptivas presentes no campo político que integra. É
uma disposição mental que tem lhe permitido destacar-se também como bom
articulador em áreas externas e avessas àquele campo e, nessa toada, firmar uma
reputação, ou ao menos a expectativa de que consiga fixar uma personalidade
política própria, autônoma, ainda que politicamente solidária ao partido e ao
seu chefe maior. Exatamente nesse ponto, a atuação do ministro da Fazenda tem
sido exemplo de juízo político capaz de atenuar o espectro da mistificação que
se reavivou em várias incursões pessoais do presidente sobre assuntos da pasta.
Cabe desejar ao ministro um sucesso politicamente rentável também para o dono
do cargo. É o modo do contraponto ao espectro não se dissipar e seguir trazendo
mais confiança (ou menos desconfiança) pública na política.
Na cúpula do Judiciário não há um contraponto
tranquilizador contra o espectro da guardiania que seja tão visível como os que
Rodrigo Pacheco e Fernando Haddad oferecem, respectivamente, aos espectros de
um Legislativo predador e de um governo mistificador. Essa relativa
invisibilidade não seria tão preocupante se a visibilidade, inclusive política,
não houvesse se tornado uma marca do STF.
Celsos de Mello de há muito fazem falta e é compreensível também que observadores e torcedores amantes da moderação tenham lamentado a aposentadoria de Rosa Weber. Com ela parece ter se arquivado o recato enigmático em que, outrora, se amparava a autoridade moral da Corte. Atualmente são outras as vias de legitimação perseguidas pelos mais notórios ministros, destacando-se duas. A mão pesada da Justiça politicamente ativa contra os inimigos da democracia é o argumento alexandrino. Já a aposta barrosiana é a proteção iluminista contra o conservadorismo social, iluminismo cuja universalidade é flexível o bastante para acolher demandas identitárias. Se essas duas tendências atuarem em aliança estável desenharão uma hegemonia longeva sobre o plenário.
Paradoxalmente pode estar nos perfis das indicações
de Lula a possibilidade de amenizar essa tendência. No momento, o ministro
Gilmar Mendes é a nuance visível num cenário de recrudescimento de pretensões guardiânicas,
mas dentro de pouco tempo ele será memória. Na percepção pública da política
que toca ao Judiciário as assombrações não devem cessar tão cedo. Espera-se
que, se não é possível desfritar o ovo da politização do Judiciário, o
invólucro político da omelete não venha a ter como recheio missões governamentais.
O juízo de eleitores e elites políticas não deve tirar, de seus radares de
risco, essa hipótese de guardiania.
*Cientista político e professor da UFBa.
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